A vendedora de balas - Conto
A vendedora de balas
por Vanessa Ratton
*Baseado no Conto A pequena vendedora de Fósforos
de
Hans Christian Andersen
Era a última tarde do ano. Fazia um calor insuportável. Os carros passavam apressados pela rua como se quisessem deixar o tempo mais veloz para acelerar o Réveillon. Ninguém reparava na franzina menina à beira da pista vendendo balas. Ela passava por entre os carros, tão magrinha, tão pequena que aparentava uns doze anos, mas na verdade acabara de completar quinze.
Sua
pele era negra, os cabelos eram crespos e teimavam em sair do coque que ela
mesma fizera. Quando sua mãe era viva, os cabelos eram mais bonitos. Ela os
lavava e passava um óleo cheiroso, depois prendia e pronto. Ficava sempre
bonita. Que saudade tinha da mãe. Quanta tristeza ela guardava no seu pequeno
coraçãozinho, depois que os anjos a levaram de pneumonia.
Ficara
morando com a avó, pois o pai passou a beber mais e quase nunca parava em casa.
Ele ficou seis meses fora, sem nem dizer adeus, quando voltou não era mais o
mesmo. Bebia muito, batia e a menina chorava de dar dó. A vó intercedia, mas só
piorava as coisas. Ela acostumou e não vinham mais as lágrimas. Só torcia para ele dormir logo e ia
então se acomodar na cama que dividia com a avozinha. Ela lhe fazia cafunés até
que dormisse e era essa a maior alegria que a menina tinha.
O
arroz com feijão e farinha não faltava, mas era só. O resto da pensão da avó, o
pai bebia e fumava. Às vezes, ele trazia para ela um sonho do bar, e ela ficava
radiante, comia metade à noite e a outra parte, só na manhã, para que durasse
mais aquela sensação gostosa do açúcar na boca. Isso sim era felicidade!
A
menina oferecia balas para os motoristas que nem a enxergavam, olhos grudados
nos celulares, quando paravam no trânsito. Outros davam uma moeda e falavam para
ela limpar o nariz, que estava sempre molhado, depois de uma longa gripe,
sentia-se cansada só de andar no calçadão de uma praia a outra. Antes conseguia
fazer toda a orla só na manhã. Hoje havia andando uma hora e parecia não sair
do lugar. Como doíam os pezinhos, nos chinelos de borracha gastos. Se não
vendesse bem hoje, não iria voltar para casa. O pai já havia avisado: sem
dinheiro, não tem janta. Como ia ser noite de Ano Novo, ele queria os trocados
para ir ao bar. Ela pensava mesmo que o melhor era passar a noite na praia. Era
onde dormia quando o pai chegava bêbado, querendo evitar mais uma surra.
Hoje
ia ser diferente das noites de inverno quando o vento frio trazia a areia
cortante como chicote. Nem ia ser noite de chuva fria como na Primavera, nem o
banco seria gelado como orvalho do Outono. As noites da primeira quinzena do
Verão eram bem secas.
Ficou
alegre, também teria companhia, um mundaréu de pessoas, todas vestidas de branco,
com flores nas mãos, olhos brilhando de felicidade e sorrisos reluzentes. Ela
poderia até ganhar um bom dinheiro, porque muitos compravam e nem levavam as
balas. Depois, ela veria o céu mais lindo do mundo, fogos de todas as cores e
formas, todo mundo se abraçando e cantando. Ela se sentia tão bem!
Costuma
vir sempre com a avó, mas como ela já estava idosa não aguentava mais caminhar.
A menina esperava a multidão voltar para suas casas e ficava imaginando como ceavam
com fartura.
Uma
vez chegou a ver pelas grades de uma mansão de frente para a praia, uma sala
toda de vidro. Um lustre reluzia e embaixo dele, uma mesa gigante com toalhas
brancas, louça de porcelanas, taças de cristais e no centro um enorme peru
dourado. Quando tinha fome, pensava que saboreava aquela iguaria e mastigava
seu pão com os olhinhos fechados na esperança de um ter o desejo realizado.
Como não sabia o gosto verdadeiro do peru, o faz de conta era mais fácil. De
qualquer forma, o Ano Novo era especial, na madrugada, quando a praia ia
ficando deserta, sua brincadeira era pegar as flores e perfumes que as pessoas
deixavam no mar para Iemanjá, a deusa africana do mar, e dar de presente
para a avó.
A
pequena vendedora de balas respirou bem devagar porque as lembranças dos outros
anos tornaram o ar difícil de encher os pulmões. As mãozinhas trêmulas de fome
tocaram a testa que estava quente, devia ser do sol pensou, ela não podia estar
com febre de novo. Viu estrelas brancas pequeninas invadirem seus olhos que se
fecharam, fazendo-a cair sem sentidos. Deve ser assim que as pessoas morrem
pensou.
Podiam
ser os fogos do Réveillon, ela ouvia o zumbido, antes deles estourarem no céu,
caindo em cascatas vermelhas, douradas e azuis. Como deviam ficar felizes os
anjos, pensava, vendo todo aquele colorido que os homens faziam na esperança de
um ano bom. Ela também queria pedir um ano bom, como quando ela podia ir ao
colégio aprender as letras, merendar e brincar com os amiguinhos.
Nenhuma
criança devia trabalhar na rua ou morar em palafitas, casas de madeira montadas
sobre o mangue, que às vezes, era invadida pela maré. Pensava nos turistas que
vinham passear na praia, ele só olhavam o mar, não conheciam os perigos das
casas sob a maré. Só ela sabia do que já escapara.
Quando sentiu o gosto doce do sangue na boca,
os olhos não mais se abriram. O cheiro do óleo doce que a mãe lhe penteava os
cabelos se espalhou pela rua e seu último esforço foi para abrir um sorriso. Tinha
certeza que a mãe viera lhe buscar para levá-la a um lugar onde não há miséria,
nem fome, nem preocupação alguma.
Na
manhã seguinte os jornais estampavam os fogos de artifício, nenhuma nota sobre
a pequena vendedora de balas cujo corpo frio jazia na calçada e a doce alma
seguia o espírito da mãezinha.
Vanessa Ratton é professora, jornalista e psicopedagoga. Escreve poemas, resenhas e literatura infantil e juvenil, com pseudônimo de Tatá Bloom. Tem o blog www.tapetemagico.com.br e uma coluna quinzenal no jornal A Tribuna de Santos-SP. É organizadora de Coletâneas do Mulherio das Letras.
Eu simplesmente amei! Trabalho o texto original, mas irei trabalhar este com minhas turmas. Parabéns Vanessa Ratton.
ResponderExcluirQue releitura forte, bela! Afetado por esse texto, Vanessa! Obrigado!
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