Um conto - por Henriette Effenberger
Imagem: Arte de Luciane Valença |
A
velha da sacola
Todas
as segundas-feiras o ritual se repetia.
Saía
de casa por volta das dez da manhã, carregando aquela cesta de lona listrada
que tinha ido à feira por décadas, e seguia, dirigindo o próprio carro, em
direção à periferia, onde escolhia, ao acaso, uma família que recebia o
presente.
Na
cesta, um tabuleiro com lasanha ao molho branco, uma peça de lagarto ao molho
madeira, uma cumbuca de salada mista com molho de maionese. Separada, em um
saquinho desses de supermercado, outra vasilha continha pudim de leite
condensado.
Na
primeira vez, a chegada da velha senhora oferecendo comida surpreendeu os
moradores daquele bairro pobre. Na semana seguinte, quando estacionou o carro
debaixo da amoreira, as crianças da família presenteada anteriormente já
chegaram mais perto do automóvel, sorrindo e tentando descobrir o que havia na
sacola.
A
mulher não correspondeu aos sorrisos, passou por elas e ofereceu o conteúdo a
uma moça que a observava da janela.
E
assim, escolhendo ora uma família, ora outra, mal se importando com a procissão
de famintos que a seguia, como se ela estivesse carregando um andor, e não
apenas uma sacola velha, é que a oferta se dava.
Se
as famílias não se repetiam, também as refeições eram variadas: tutu de feijão,
arroz, lombo de porco assado e couve na manteiga eram acompanhados por manjar
branco. Quando o cardápio continha massas e frango assado, a sobremesa era
pudim: de leite, de coco, de chocolate ou de frutas.
No
dia seguinte ao Natal, levava peru ou tender, acompanhado por arroz com
amêndoas e champanhe e uma grande mousse de
chocolate. No dois de janeiro de cada ano, além do leitão ou bacalhau (nunca
aves, pois ciscavam para trás), levava lentilhas, para trazer fartura, e
distribuía folhas de louro aos membros da família escolhida, dizendo que as
conservassem dentro da carteira durante o ano todo, e assim o dinheiro não
acabaria.
Na
sacola também sempre havia refrigerantes e, eventualmente, algumas latinhas de
cerveja.
Porém,
naquela segunda-feira, anos depois da primeira, as pessoas estranharam quando
outro automóvel parou debaixo da amoreira. Diferente do carro branco a que se
acostumaram, o que chegou ali foi um táxi prateado, do qual saltou a senhora de
sempre, com a invariável sacola.
Como de hábito, não sorriu, nem falou com
ninguém. Apenas entregou o farnel: macarronada com brajolas, salada verde e mousse de maracujá. Deixou ainda um
litro de coca-cola e algumas latas de cerveja.
Voltou
ao táxi e nunca mais apareceu por ali.
Nos
primeiros momentos, moradores do bairro especulavam entre si se a velha da
sacola tinha desistido deles ou simplesmente tinha morrido. Bastou a ausência
em poucas segundas-feiras para que a esquecessem.
No
entanto, a história voltou a correr de boca em boca, anos mais tarde, quando um
daqueles meninos cresceu, tornou-se jornalista e foi designado para uma matéria
em um dos asilos da cidade. E foi lá que ele reencontrou a Velha da Sacola.
Embora
não tivesse sido reconhecido por ela, que mal olhou em seus olhos e ainda se
recusou a contar sua história, ele se lembrou das mãos de unhas bem tratadas
que, um dia, apresentaram a ele um manjar dos deuses: mousse de chocolate!
Ali,
naquele quarto de asilo, depósito de abandonados, quase podia sentir um cheiro
de sobremesa vindo daquela mulher. Disse isso a ela, mas não a comoveu, nem a
demoveu de seu voto de silêncio.
Por intermédio de uma das empregadas mais
antigas do asilo é que soube parte da história e deduziu a restante.
A
mulher se internara lá, por contra própria, há muitos anos. Resolvera sozinha
os trâmites burocráticos, transferindo ao asilo a aposentadoria que recebia
mensalmente. Também pediu a um tabelião para alterar o testamento, deixando a
instituição como única beneficiária de seus bens, pois, disse ela, não tinha
mais ninguém para deixar a herança.
Ainda
segundo a funcionária do asilo, soube-se depois que, sim, ela não era sozinha, tinha
família. Mas optou pelo asilo, após esperar, todos os domingos, por anos a fio,
a visita do sobrinho com a esposa e filhos, a qual, invariavelmente, era
substituída por telefonemas.
Como tudo o que escreve Henriette, é a vida passando pelas letras!!!
ResponderExcluirMaravilhoso conto!
ResponderExcluirQue lindo! <3
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