Suspense e emoção no conto de Rosângela Vieira Rocha
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Sombras tenebrosas
O
castelo em Edimburgo era enorme, com pesadas cortinas de veludo vinho. Havia
almofadas por toda parte, de brocado dourado. As janelas davam para um parque
amplo, cheio de flores vermelhas. Ela vestia uma camisola fina, branca,
enfeitada de fitas. Trazia os cabelos presos no alto da cabeça, o que lhe
emprestava um ar mais maduro. Caminhava pelos quartos, com seus chinelos
macios, sem fazer barulho. Talvez procurasse alguém.
Avistou-o.
Vinha pelo parque com sua capa negra, nariz adunco e grandes entradas na testa.
Passou por ela, olhou-a e subiu as escadas. Suas pernas tremiam. Mesmo no
inverno, vestia-se com um tecido transparente. Os fascinantes olhos lhe faziam
mal, mas não podia desviar o olhar. Gostava daquele homem, embora o temesse.
Ele sobe para o quarto, onde há um grande esquife no centro. É quase de manhã e
deita-se, apressado.
Zilá
acorda. Quase todas as noites sonha com o vampiro Barnabas Collins, personagem
principal de Sombras Tenebrosas.
Não perde um capítulo sequer do seriado, transmitido tarde da noite. Regula o
botão de volume no mínimo, para que sua madrinha não implique. O padrinho, este
dorme há horas, acostumado a deitar-se cedo.
Desde
que a buscaram na fazenda, para estudar na capital, faz de tudo para imprimir
novo ritmo à vida. Como não tiveram filhos, os padrinhos se encarregaram de sua
educação, logo que completou catorze anos. Com o lucro da revendedora de
carros, puderam comprar um apartamento de cobertura, onde sobram quartos e
obras de arte.
Sente
saudade da vida livre que levava antes, andando pelos matos e córregos da
pequena propriedade de seus pais. Passava o tempo ordenhando vacas, catando
contas de lágrimas, apanhando flores e taboas. Cultivava uma horta com almeirão
e couves gigantes, que adorava. Isso sem falar nos vasos de samambaia chorona,
que, de tão viçosos, atraíam a atenção de quem passava na estrada. Raramente
calçava sapatos ou punha vestidos, metida em largas camisas e calças de brim.
Tinha apenas um irmão mais novo, que carregava em suas andanças.
O
único problema da roça era a falta de escola, depois dos primeiros anos de
aprendizado. Praticamente, só era possível aprender a ler, receber noções
básicas de Aritmética e de Geografia e História. Em geral, as moças e rapazes
da região ficavam por ali mesmo, repetindo as tarefas aprendidas com os pais,
permanecendo na casa após a morte deles.
Para
Zilá, os padrinhos queriam um futuro diferente: teria de se formar em Direito
ou Medicina. Provavelmente por causa da pouca idade, ela não sabia que
profissão escolher. No momento, preparava-se para os exames de segundo grau,
sob a vigilância da madrinha, que tentava fazê-la citadina, a todo custo. Até
os longos cabelos teve de cortar, para ficar na moda. Sentiu vontade de chorar
ao ver as longas mechas de suas antigas tranças caírem ao chão, no melhor
cabeleireiro da cidade. Mas segurou as lágrimas, como sempre fazia perto da
madrinha. Achava que, se ela conhecesse sua vulnerabilidade, estaria perdida
para sempre.
A
melhor hora era a do seriado. Ansiava pela noite e o dia lhe parecia meio
solitário, pois sua timidez a impedia de fazer amigos. Gostava das aulas no
cursinho que frequentava e estudava bastante, até porque era impossível escapar
aos olhos da madrinha. Agradava-lhe a ideia de ir para uma universidade. Mas só
vibrava mesmo com Barnabas Collins, tentava decorar as falas da atriz que
representava sua vítima em potencial, uma jovem de seus vinte e cinco anos,
sempre envolta em transparências. Queria ser como ela, loura, e ficava
treinando na frente do espelho para ver se conseguia imitar sua gesticulação.
O
que mais a impressionava no vampiro, além dos olhos, eram as mãos brancas,
grandes, de dedos longos e finos, diferentes de todas as mãos masculinas que
conhecia, fortes e queimadas, a maioria cheias de calos. Mãos solares,
acostumadas ao trabalho duro. As dele lhe pareciam verdadeiramente
aristocráticas, noturnas, como as dos nobres dos contos de fadas. Passou a
reparar todas as mãos que encontrava. Invariavelmente se decepcionava, pois
ninguém as tinha iguais.
Não
quis procurar informações sobre o ator da série e tampouco sobre a atriz
principal. Decididamente, seu interesse era pela personagem, achava o vampiro a
personificação da sensualidade. Até a capa negra, com o lado avesso vermelho,
lhe parecia máscula. Nas suas fantasias, imaginava que o Pimpinela Escarlate,
cuja história havia lido na fazenda, vestia-se com uma capa parecida. Barnabas
e Pimpinela fundiram-se numa só figura.
Os
padrinhos estranhavam sua falta de curiosidade pelos colegas de sala, pelos vizinhos
e pelos bailes organizados no clube, próximo à casa. Por sorte, atribuíam o
descaso à sua falta de vivência na cidade grande e não insistiam muito. Apenas
uma vez, o padrinho não seguiu a regra e praticamente forçou-a ir com eles à
casa de um amigo, embaixador em um país vizinho, que tinha um filho de
dezesseis anos. De novo o acaso lhe foi favorável: o rapaz era tão arrogante
que só conversava em francês, o que irritou até mesmo os padrinhos. Daí por
diante resolveram deixá-la agir da maneira que quisesse. Fazia quase tudo que
eles desejavam e cumpria à risca os horários combinados. Não se importava em
seguir as normas da casa, desde que pudesse continuar assistindo a Sombras Tenebrosas.
Quando
terminava o capítulo, nem o leite morno, com o qual se habituou na fazenda,
queria tomar mais. Era imperioso que dormisse depressa, só para sonhar que era
amada por Barnabas, no castelo escocês. Passou a buscar livros na biblioteca
sobre a Escócia, estudou os guias de Edimburgo, e aprendeu de cor o mapa da parte
velha da cidade. Jurou conhecer um dia o palácio de Maria Stuart, que inventou
ser vizinho ao castelo do vampiro. Leu as crônicas antigas sobre a cidade,
inteirou-se da história do jogador que resolvia as dívidas de jogo matando as
pessoas às quais devia dinheiro. Decidiu que falaria inglês como se fosse seu
próprio idioma. Investia em tudo que pudesse aproximá-la, mesmo remotamente, de
Barnabas.
Certa
noite, ligou a televisão no horário costumeiro e nada de seriado. Sem nenhuma
explicação, o programa havia saído do ar. Dormiu frustrada, dizendo a si mesma
que haveria outros capítulos. Na noite seguinte, contudo, o fato repetiu-se.
Quase não pôde dormir, tal a ansiedade para esperar a manhã surgir, pois havia
decidido telefonar para a emissora a fim de entender o ocorrido. O mal humorado
funcionário explicou-lhe que o baixo índice de audiência afastara os
patrocinadores: acabou, senhorita, enfim esse seriado de quinta categoria
saiu do ar, até o título é horrível, já pensou, um programa de televisão
chamado Sombras Tenebrosas? Ninguém quer mais saber de vampiro, coisa mais
démodé, o povo agora quer ver é mulher nua, sexo, carnaval, alegria. Vampiro é
o maior vodu, um atraso de vida.
Depositou
o aparelho no gancho, as pernas moles. Então nunca mais veria Barnabas? Durante
a semana, não conseguiu comer direito. Ficava fingindo perto da madrinha,
elogiando comidas que nem provara, como se houvesse um sapo na sua garganta,
que a impedia de engolir. Passou a sucos e líquidos, perdeu peso. Por fim, teve
de inventar que estava com uma inflamação nos olhos, inchados de chorar. Dormia
pequenos períodos e acordava chorando de saudade. Sentia-se ridícula por sofrer
por alguém cuja existência sabia falsa, ainda mais sendo um vampiro. Mas o
conhecimento não lhe aplacava a dor.
Para
piorar a situação, a irmã da madrinha, pianista, residente em outra cidade,
veio passar uns dias com eles. Recentemente chegada da Europa, onde dera
concertos em vários países, participara, no verão, do festival de música de
Edimburgo. Trouxera fotos, que mostrava com orgulho, pois havia adorado a
cidade. Falava sobre as rosas, enormes como repolhos, de como os escoceses
apreciavam jardinagem, elogiava a iluminação das ruas, meio amarelada e
poética, de uma “melancolia doce”, repetia, encantada. Zilá sentia uma profunda
inveja da irmã da madrinha. Inveja, ciúme e raiva, nessa ordem. Edimburgo era sua, como essa pianista ousava
roubá-la? Sua e de Barnabas, por justiça. Não era ela que perdia o sono
pensando no castelo? E o número de tardes passadas na biblioteca pesquisando
sobre a cidade? Então o amor não era regido pelo merecimento?
Começou
a fazer a novena de Santa Terezinha do Menino Jesus, santa cuja humildade e
amor pelas rosas sempre admirara, para que a visita fosse embora. Não conseguia
mais conter as lágrimas, que queriam descer a todo custo, cada vez que a
palavra Edimburgo era pronunciada. Sentia-se duplamente perdedora: Barnabas
havia desaparecido de sua vida e Edimburgo agora fazia parte das lembranças de
outra pessoa, que tinha estado lá de verdade e não em sonhos, como ela. Embora
não tivesse recebido a rosa, alcançou a graça solicitada e a pianista partiu
cheia de vida, como sempre, não sem antes dizer ao cunhado olhe, não deixe
de levar minha irmã a Edimburgo, ela vai adorar.
No
final do mês seria o seu aniversário de quinze anos, mas não quis festa. A
tristeza ainda a impedia de sorrir, mas já começava a se alimentar direito. Na
biblioteca, evitava cuidadosamente as prateleiras dos livros em inglês, por
medo de encontrar referências a Edimburgo. Sabia que ainda era cedo para tocar
na ferida. Havia um movimento diferente na escola, pois o quadro de docentes
iria passar por uma transformação e novos professores seriam contratados, com a
ampliação das instalações. Os alunos estavam excitados com as novidades.
Numa
manhã chuvosa e fria, a diretora entrou na sala de aula, para apresentar o novo
professor de inglês, Jonathan, recém-chegado de Londres. Devia ter uns vinte e
sete anos, pálido, por falta de sol, calça preta e suéter vermelho, nem bonito
nem feio. Os alunos não lhe deram muita atenção, achando-o desinteressante, com
ar de almofadinha, brilhantina nos cabelos, os sapatos igualmente brilhando.
Enquanto fazia perguntas para avaliar os estudantes, Zilá deu de ombros,
desanimada, pois andava cansada de mestres.
Mas
alguns momentos depois - quando ele segurou o giz, com gestos elegantes - ela
percebeu a brancura de suas mãos grandes, dedos finos, compridos, requintados e
sensuais. A capa, ele devia usá-la em segredo. Adivinhou-lhe hábitos noturnos,
supôs que, ao chegar em casa, bem que um esquife podia estar à sua espera.
Sentiu
a forte tontura, que já lhe era familiar. Reforçou sua atenção a cada gesto
desse já meio seu Jonathan – desprovida de tanta coisa, esperança e desejo não
lhe faltavam.
Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG e vive em Brasília desde 1968. Tem treze livros publicados, sendo seis para adultos (cinco romances e um de contos) e sete, infanto juvenis. Além de escritora, é jornalista, Mestre em Comunicação Social, bacharel em Direito e professora aposentada da Universidade de Brasília. Recebeu vários prêmios e o de maior destaque foi o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG/1988, com o Romance, Véspera de Lua.
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