Um Conto da maranhense Lindevania Martins
Colheita
Lindevania Martins
O
garoto levantou o braço, apontando o revólver de novo para Josefa, que
perguntou:
—
Vai ser agora?
Ele
permaneceu mudo. Era uma lágrima caindo dos olhos avermelhados? Era quase um
menino. Teria quatorze, quinze, dezesseis anos? Ela reclamou:
—
Vai demorar?
Ele
subiu o outro braço até a cabeça, afastando a franja que caía na fronte. Abriu
a boca e fungou:
—
Não tenho pressa.
Uns
quatro metros de canteiros intercalados entre tomate e manjericão o separavam
dela. A essa distância, ele não erraria.
—
Meu pai diz que a gente tem que colher com os dentes para comer com a gengiva.
—
Alguns nunca conseguem colher – Josefa replicou.
—
Não é o seu caso.
Ao
lado dela, no chão, o cesto de palha com os tomates recém colhidos. O revólver
metálico, um calibre 38 muito lustroso, tremia na mão do garoto.
—
Conto até cinco e você sai correndo. Talvez eu atire, talvez não.
—
Não consigo correr. Meus joelhos são ruins. É o reumatismo. Por isso me achou
tão fácil.
Silêncio.
Eles se mediam. Josefa, muito menor e muito mais velha que o garoto, rugas na
testa, cabelos grisalhos em desalinho, vincos ao redor dos lábios, vestido
simples de algodão. Ele, magro e alto, o rosto com marcas de espinhas, aparelho
nos dentes, calça jeans e camisa xadrez. Os olhos claros lembravam o pai.
Abaixou a arma mais uma vez.
—
Não pode correr? Você dificulta as coisas. O que tinha que vir até a nossa
fazenda? Não sabia que podia encontrar um de nós?
—
Você sabe. É a fome. Teu pai nos impediu de plantar em nossas terras quando
desviou o curso do rio.
Os
vegetais mais altos se vergavam sob o efeito do vento. Ela falou de novo:
—
Escuta, garoto. Vou me virar e vou embora. Vou devagar, está bem? Ninguém
precisa saber que estive aqui.
—
Meu pai vai saber. Ele sabe de tudo. E vai perguntar porque não fiz nada se eu
deixar você ir.
Josefa
balançou a cabeça:
—
Vim porque não tive outra opção. Não gosto de fazer o que fiz.
—
Está roubando de nós.
—
E o que você pretende fazer não é muito pior?
Ele
bufou de raiva:
—
É dura a vida aqui.
—
E a nossa vida não é mais dura ainda?
—Temos
que zelar pelo que é nosso. Meu pai sempre diz. Vocês destroem tudo que
construímos.
—
E vocês nem nos deixam construir.
Mais
silêncio. Ele suava e os cabelos grudavam na testa.
—
Nada do que eu diga te fará mudar de ideia, não é, garoto?
—
Não.
—
Então por que ainda conversamos?
—
Porque eu quero. Porque estou em vantagem. Porque sou eu que tenho a arma na
mão.
Josefa
abaixou o corpo devagar, na direção do cesto:
—
Posso comer um tomate enquanto espero?
Ele
hesitou, parecendo surpreso. Depois respondeu:
—
Pode.
Ela
pegou um tomate bem vermelho, limpou na barra do vestido e mordeu:
—
Às vezes, resolvemos grandes problemas de forma simples.
—
Este não tem uma solução simples.
—
Você não tem nenhuma obrigação de ser igual ao seu pai – cuspiu um pedaço ruim
do tomate.
—
Sou filho único. Vou herdar tudo que é do meu pai.
—
Não precisa herdar o ódio também.
—
Por que não está com medo?
—
Quem disse que não estou?
—
Acha que não terei coragem?
—
De desafiar seu pai?
—
Coragem de te matar.
Ela
jogou o tomate mordido no chão:
—
Você é quase um menino. Acha que consegue me matar e viver bem com isso?
—
Você já está velha. Não vai durar muito.
—
Veja! Esse é uma caminho sem volta. Vai te mudar para sempre.
—
E quem é você para querer me ensinar alguma coisa?
—
O que você ganha se atirar em mim compensa o que você perde?
—
No fim, todos morrem.
—
Mas não se vão do mesmo jeito. Meu primeiro filho morreu aos cinco meses.
Desnutrição. Minha mãe morreu quando eu nasci, aos quinze anos. Um parto sem
qualquer assistência médica.
Josefa
interrompeu a fala quando ouviu o clique. Ele armara o cão do revólver. Seria
agora? O garoto ergueu a arma com a mão vacilante, fazendo pontaria. Ela achou
que não iria tremer, mas sentiu o sangue acelerar em suas veias, enquanto suas
pernas oscilavam. Ele atirou três vezes. Mirou no solo. Ficaram três marcas no
chão, as cascas das balas caídas pelos canteiros. Então, ela ouviu a voz
adolescente, em meio ao cheiro de pólvora:
—
Minha mãe também morreu de parto. Vou dizer a meu pai que atirei, mas você
correu.
Josefa pegou o cesto e saiu caminhando em passos lentos, arrastando a perna esquerda. Observando sua figura se
afastar, o garoto ergueu o revólver novamente e testou a mira. Percebeu que
eram os olhos da mulher que o enfraqueciam. Com ela de costas, suas mãos eram
firmes, sua coluna estável, sua respiração ritmada. Disparou um tiro certeiro.
Viu quando os joelhos reumáticos se dobraram em direção ao solo e os tomates maduros
escorreram do cesto pelos canteiros de manjericão. O corpo caiu e se encolheu
como o de uma barata que acaba de ser abatida. O garoto se aproximou. Notou que
os olhos dela estavam fechados e que um buraco vermelho passara a lhe enfeitar
as costas do vestido. Descarregou as duas balas restantes. O pai teria do que se orgulhar
Fotografia que ilustra o conto por Marcelo Sena
Lindevania
Martins nasceu em Pinheiro-MA. É graduada em Direito com Mestrado em Cultura e
Sociedade. Ex-delegada de polícia, é defensora pública atuando no Núcleo
Especializado de Defesa da Mulher e População LGBT da Defensoria maranhense. Contista
e poeta, é autora dos livros de contos “Anônimos” (Prefeitura de São Luís,
2003), “Zona de Desconforto” (Editora Benfazeja, 2018) e “Longe de Mim” (Sangre
Editorial, 2019). Autora do livro de poesia “Fora dos Trilhos” (Ed. Venas
Abiertas, 2019).
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