Um Conto inédito de Sandra Godinho


Aquarela por Luciane Valença

Três Quartos de Um Amor

‘O primeiro me chegou como quem vem do florista’[1], mãos de afeto desenhando no meu corpo um mapa de desejos inconfessáveis, escalando montes, escavando vales em febre e furor até devassar meus pudores. Foi o desfolhar das camadas que me surpreendeu. O afago fingido na roda com os amigos, o beijo belicoso para selar uma discussão inoportuna, a carícia carente, roubada no meio da noite, imposta como penitência mal cumprida. O calor mal desabrochado na madrugada morria ao alvorecer, no gozo frio adormecido no leito.

‘O segundo me chegou como quem chega do bar’[1], a boca trazia o destemor, poesias embaladas no vinho, marinadas com a sede do mundo, engolindo sua fome de possessão com suor e saliva enquanto sua seiva me alimentava de desejo. Foi o primeiro tapa que me surpreendeu. Eu, ainda embaçada com a promessa descumprida de que o acontecido nunca tornaria a acontecer. Depois do tapa, o soco, cedendo a um abismo de fundo opaco, tão turvo que a tristeza não se dissolvia, empoçada num vórtex escuro e secreto. Depois do soco, o pontapé vestido de ferida: suma daqui. Só ficou a boca sangrando a ausência do corpo armado.

‘O terceiro me chegou como quem chega do nada’[1] e atingiu minha solidão inacessível com um silêncio que calou as cinzas de uma sombra acautelada que se formou ao meu redor. Surgiu assombroso feito rocha, fiz dele a pedra angular onde erigi uma catedral, um lar cujas paredes me sustentavam, sustentavam meu amor. Ele me preencheu. Eu, tão prenha de sentidos e de sentimentos, apreendi o amor que ancora o tempo, que derruba barragens, que suspende a letargia dos dias. Só não suspendeu sua morte, seu corpo engasgado com a correnteza, pescado pelo mar.



No quarto restou a saudade e seu cheiro almiscarado nas roupas vazias, em suspensão nos cabides assim como eu. No quarto santo, cheio de pecados inconfessos que velaram meu sono, que baixaram minha febre, que entoaram cânticos sem palavras ou orações, busco minha ressurreição ou outra forma de existência. No quarto, decorado de nostalgia, minhas frestas fundem-se às janelas, minhas frinchas fundem-se às dobradiças que rangem à minha passagem enquanto vago errante com o ventre se avolumando a cada mês, na esperança de que esse farol possa me transcender e me transformar.



[1] Referência à música Teresinha de Chico Buarque



Sandra Godinho nascida a 27/07/1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas de contos, sendo agraciada com alguns prêmios . Publicou O Poder da Fé (2016), Olho a Olho com a Medusa (2017), Orelha Lavada, Infância Roubada foi o único livro de contos finalista na Maratona Literária (2018) do Carreira Literária, agraciado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019) e semifinalista do Prêmio Guarulhos de Literatura (Escritor do ano 2019), O Verso do Reverso ganhou o Prêmio de Melhor Conto Regional da Cidade de Manaus 2019, Segredos e Mentiras (inédito) foi finalista no Prêmio Uirapuru 2019, Terra da Promissão foi publicado (2019) e As Três Faces da Sombra foi o romance ganhador do concurso da Editora Fora da Caixa (2019), no prelo.



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