Um Conto (inteiro) e um Poema de Ana Valéria Fink
Aquarela de Luciane Valença |
MEIO
A MEIO
Não sei muito
bem como contar. Porque não sei muito bem como começar. Porque não sei muito
bem como devo referir-me a eles – penso que desconheço a moderna nomenclatura
para os pares. Até onde estou inteirada, se isso ainda voga, se dois se
relacionam sem nenhum tipo de compromisso, seriam ficantes; se admitirem uma constância, passariam a namorados; se
cometerem a promessa de compromisso, mais adiante, mas ainda vivem cada qual no
seu local, noivos; se oficializam a parceria, via lei dos homens ou divina,
esposos, ou marido e mulher. Mas, e quando se envolvem, não oficialmente, e
vivem sob o mesmo teto? Mais: sob o mesmo forro, que é o mesmo abrigo, mas
visto de dentro, o que conota muito mais intimidade? Ou seja, partilham o mesmo dormitório, mas
não se limitam a usá-lo somente para o que a denominação sugere? Decididamente,
os termos pejorativos (concubinos, amásios) recuso-me a utilizar, e, amantes,
até que soa bem, mas usualmente não se aplica a quem compartilhe morada.
Portanto, em
meio a tantas opções, mas na falta de terminologia mais adequada, diria que ela
era meio casada. Ou diria que tinha meio que um marido. Maria Aparecida, o nome
dela – e fazia questão de que a chamassem assim. Na verdade, ela só atendia quando se dirigiam
a ela com a pompa, pelo nome composto. O único que não o fazia, e não havia
meio de convencê-lo, era ele, o tal meio que marido. Chamava-a por meio nome,
melhor – ou pior –, por metade ainda do meio nome: Cida. Ela bem que às vezes
esboçava uma revolta, e pensava em não responder. Mas como ele já quase não lhe
dava atenção, não convinha perder a pouca que tinha, quando tinha. Não podia se
dar ao luxo de correr o risco de embolar mais ainda o meio de campo. Difícil,
uma relação pela metade, sempre aos entremeios. Sentia que ele só tinha para
ela meia-escuta, pois às suas perguntas respondia com meias palavras... isso
quando não acontecia dela fazer uma indagação, e ele deixar a resposta pelo
meio.
Mesmo quando a
olhava, era um olhar de soslaio, de canto de olho, de esguelha. Se ela insistia
num olhos nos olhos, mais demorado, ele semicerrava os dele, como se estivessem
à meia-luz, como se não a enxergasse. Como se houvesse uma meia-sombra
permanente sobre ela.
Ao meio-dia,
apesar de morarem perto do trabalho dele, era raro que viesse almoçar em casa. Mais
comum que comesse um prato comercial, num boteco por lá mesmo. Por mais que se
esforçasse pra agradá-lo, por mais que se esmerasse, tudo que ela preparava ele
largava, a metade no prato. E não era falta de apetite, até que ele andava bem
acima do peso. Mas a culinária dela, comia, como se diz, com meia boca.
Cida, desculpe,
Maria Aparecida passou a lembrar de quando o conhecera. Estava no meio da rua,
atravessando-a, para chegar ao cinema. Na época ela ainda estudava, e, como
trabalhava só meio período, e também recebia só meio salário, e do mínimo, só
podia ver filmes no dia de promoção, em que todos só pagavam meia entrada. Ele
estava em frente ao cinema, sentado no meio-fio, tentando descolar o resto da
meia-sola do sapato, que estava desgrudando. Ela tinha de passar bem no meio,
entre ele e o poste. Como o espaço era pequeno, pediu licença, e ele, depois de
elevar um pouquinho o queixo, não foi capaz de levantar-se; por estar só de
meia, só conseguiu encolher meia perna. Com isso, deu-lhe somente meia
passagem, e ela, que tropeçou de leve, recebeu um meio sorriso. De escárnio ou
de simpatia, meio um, meio outro. Mesmo assim, ela agradeceu. Ele respondeu,
baixinho, num meio-tom. Ela entrou na sessão, que estava começando, para
assistir “Oito e meio”. Era a primeira vez que estava indo assistir um filme
sozinha, porque não conseguiu, no meio em que vivia, nenhuma companhia disposta
a uma película de Fellini. Nem seu meio-irmão, por parte de mãe, que vivia
querendo dar uma de intelectual, quis ir com ela. Tentou chegar a tempo da
sessão das seis e meia, mas o único meio de transporte disponível,
especialmente para seu bolso, o ônibus, estava sempre lotadíssimo nesse
horário. O jeito foi pegar a sessão das oito e meia. Cinema lotado, sentou-se
na primeira poltrona vaga que avistou; apesar de ser na última fileira, já
estava meio escuro, e não conseguiria escolher lugar melhor, na penumbra. No
meio do filme, enlevada com a charmosíssima imagem do Mastroianni, nem percebeu
quando ele sentou-se na cadeira ao lado. Só se deu conta quando o filme acabou
e as luzes foram acesas. Quando o viu, dessa vez foi a vez dela esboçar um meio
sorriso, embaraçada. Alguma coisa nele a deixou meio atordoada, talvez a
surpresa, não imaginou que o veria de novo; ou até um certo medo, de que ele a
tivesse seguido. Tentou sair depressa, e em meio à aflição, enroscou-se na
poltrona da frente, o que lhe causou um grande rasgo na meia-calça. Estavam na
meia estação, e à noite sempre esfriava um pouco, por isso optara por vestir um
vestido de meia-manga, com a meia-calça combinando. Agora, com a meia furada,
sua elegância estava comprometida. Então percebeu que em meio ao temor que
estava sentindo, também havia uma certa dose de atração.
Então resolveu
sair mais rápido ainda. Chegando à porta do prédio, foi que viu como chovia!
Torrencialmente, de fato! E, como já era quase meia-noite, com certeza perderia
o último lotação, esperando a chuva passar. Teria de sacrificar quase metade de
seu salário, e pegar um táxi. Mas mesmo assim, parar um carro, com aquela
chuva, não seria moleza. Então ele apareceu do seu lado, oferecendo-lhe meio
guarda-chuva. Propôs que ficassem juntos, no meio da faixa de pedestres, até
que conseguissem parar um táxi para ela, depois ele acharia um meio de ir para casa.
Enquanto aguardavam, trocaram algumas poucas palavras. Até que ele pediu seu
telefone. Ela não quis ser evasiva, era verdade: estava sem celular, o seu
havia caído na pia do banheiro, inutilizado. Ele sugeriu que ela lhe passasse
seu e-mail, e ela não viu perigo em dar seu endereço eletrônico. Ele era
praticamente desconhecido, mas era um meio de comunicação seguro. Na pior das
hipóteses, deletava o sujeito.
Passou-se meia
semana, até que recebeu a primeira mensagem. Meia página. Por meio de recados,
dia sim, dia não, foram se conhecendo. O primeiro encontro foi marcado. No
jantar, no restaurante, pediram meia jarra de vinho, e uma pizza, média, meia
portuguesa, meia quatro queijos. Havia uma meia lua no céu. Continuaram se
vendo, por meio ano, e, volta e meia, falavam em dividir a mesma casa.
Até que
decidiram. Construíram uma meia-água, no terreno comprado a meias com o
meio-irmão dela. No meio do ano, ela engravidou. A gravidez foi até o meio.
Cida teve mais cinco abortos espontâneos. Abafou a metade do entusiasmo que
restava. Perdeu metade de sua disposição.
No meio da
semana, ele jogava futebol. Era meia-direita no time. Ela ia levando sua
vidinha de meia-tigela. Ele dizia que ela o conhecia por inteiro. Meia verdade:
ela conhecia bem, sim, com detalhes, de cor e salteado, sua metade de trás.
Porque era o ângulo em que mais o via, pois que ele sempre lhe dava as costas.
Principalmente na cama, que agora, na meia-idade, ele andava a meio-mastro. Do
carinho que ela sentia por ele, só restava metade. A outra foi se perdendo,
pelo meio do caminho.
No meio daquela manhã,
ela sentiu que não poderia mais aguentar viver no meio termo. Lembrou-se do
tratamento para depressão, que largou pela metade. Consultou, sim, com o
psiquiatra; mas o medicamento, tarja preta, era caro. Pagara metade, a outra
parte viria na fatura que vencia no meio do mês. Ainda não tomara nenhum.
Pensou nisso enquanto saía para ir ao mercado. Deu meia volta. Estava mesmo
meio farta. Ou farta e meia. Pegou o remédio e tomou. Finalmente, algo por
inteiro. Tomou a caixa inteira. Seu fim. O fim, justificado por tantos meios.
* Conto vencedor do 9° Concurso Literário Celso Sperança, de Cascavel, PR, em 2018.
Aquarela de Luciane Valença |
LUTO
o
que pra mim sempre foi verbo
fez-se
carne
e
sangra
substantivo
concreto
(contrariando
a gramática)
Ana Valéria Fink natural de Curitiba -PR. Pentamãe. Formou-se em Odontologia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - PR. Mora atualmente na Bahia e trabalha como revisora. Participou da Antologia de Poemas Novelo (Editora da UEPG/1995). Terceiro lugar no Concurso da Companhia Editora de Pernambuco com o livro infantil, A História de Uma Boca. Publicou, Regando os Jardins do Senhor e outras crônicas (Via Litteratum/2015) e Mosaico,livro de poesia, (Edições Marianas/2018).
Amei, poema e conto!
ResponderExcluirAdorei!
ResponderExcluirAmei conto e poema
ResponderExcluir