imagem de autoria de Nestor Villacampa
Libertação imperdoável*
por Ivy Menon
Eu tinha dezesseis anos e ainda morava
numa casa miserável perto do buracão de lixo, no fim da rua. O banheiro no
meio do bananal. Não sofríamos com as faltas próprias dos que habitavam abaixo
da linha da pobreza. “O amor cobre multidão de pecados”, aprendemos no texto
sagrado. Meus pais se amavam. E também a nós.
No meio da miséria e da consequente invisibilidade, a perversidade se
alastrava. Tínhamos muitos vizinhos. Quase todos espancavam suas mulheres.
Vivíamos sob o signo do “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. O
pai não permitia que sequer conversássemos com os meninos da vizinhança sobre o
assunto. Baixávamos os olhos às marcas roxas no rosto das nossas parceiras de
fome e dor.
Assistíamos, desesperados, a violência
sofrida por Dona Arlete e suas oito crianças que moravam do lado. O homem da
casa, aquele que mandava em tudo e arrebentava, no cacete, a mulher e os
filhos, tivera um dos braços decepado no corte de cana. A sensibilidade fora
junto com o membro deposto. O infeliz, ainda assim, tinha mais força que a
mulher. Homem cruel a manejar o chicote de couro trançado.
Católico, gabava-se de ir à missa três
vezes por semana. Nem santos nem eucaristia eram capazes de aplacar sua ira.
Chegava revoltoso: prendia a mulher, com o cotoco do braço, e a açoitava com
sua única mão insana. As crianças deles gritavam e apanhavam junto. Nós
tremíamos. Há dores indescritíveis. Impotência e medo eram as mais desgraçadas
tragédias que vivíamos, diante de tamanha violência.
Dona Arlete, com trinta anos, se cansou da
vida e tomou veneno. Urrou. Todos ouvimos a morte chegar para libertá-la. Os
filhos berravam mais que nunca. Corremos até a casa dela, porque o marido tinha
saído. Vimos uma espuma branca que vazava de sua boca. E uma paz imensa nos
olhos semiabertos.
Fomos ao velório, realizado na casinha de
pau a pique. O marido, com o cotoco, a receber as condolências. O padre se
negou a benzer o corpo. “Suicídio é pecado imperdoável”, eu ouvia os cochichos.
Um disparate, aquele ser miudinho baixar à sepultura, sem o refrigério da água
benta a tocar-lhe, pela última vez, a pele menina. O inferno a esperá-la para
punir sua libertação. Não poderia ser verdade. Deus a amava, eu tinha certeza.
Quase meio século, depois da morte de Dona
Arlete, as coisas pouco mudaram. Sobrevivi à brutalidade da fome. À escravidão
do trabalho infantil e suas nefastas consequências, por ter sido amada. Sou
mulher. Nunca apanhei. Porém, continuo a sofrer, todos dias, as visíveis e
impunes marcas roxas dos punhos masculinos. Vivo um dia de cada vez. Ainda
acredito em mudanças. Choro sim, mas denuncio. Sempre.
*Uma das crônicas classificadas no Prêmio Alap 2019, da Academia de Letras de Paranavaí.
Que crônica intensa. Gostei imenso. bj
ResponderExcluirObrigada, pela leitura, Virgínia. Grande abraço.
ExcluirCrônica maravilhosa. Dá pra sentir na pele!
ResponderExcluirUma terrível realidade que, ainda hoje, pulula pelo Brasil e mundo afora. Obrigada, Lia, pela leitura e retorno.
ExcluirGostei. Crônica forte e com uma bela narrativa.
ResponderExcluirObrigada, Sandra. Abraço.
ExcluirTriste realidade. Grande crônica.
ResponderExcluirSim, Chris, e ainda hoje, infelizmente. Obrigada.
ExcluirConto violento e magnifico! Mais que um desenho! Obrigada!
ExcluirObrigada, Eliane. Abraço.
ExcluirIntensamente Ivy!
ResponderExcluirGratidão, Silvana. beijos
Excluirmuito bom, um relato de vida extraordinariamente bem descrito e escrito. parabens
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirMe fez sentir cada episódio, como se eu fosse uma das crianças a assistir tão triste realidade que levou a vida de dona Arlete antes mesmo do veneno que a enterrou...Ivy gratidão por compartilhar essa crônica reflexiva e que nos prende até o final.
ResponderExcluirObrigada, Josyane, pela leitura e pela sensibilidade. Abraço, querida .
ExcluirE as arletes, marias, das dores, da penha... continuam a serem violentadas pelas ações de cotocos de mente, de coração... A propósito da crônica... (sem palavras...)
ResponderExcluirE as arletes, marias, das dores, da penha... continuam a serem violentadas pelas ações de cotocos de mente, de coração... A propósito da crônica... (sem palavras...)
ResponderExcluirQue linda e triste!!
ResponderExcluirObrigada, Professora Ana!
ExcluirIvy, você escreve com tanta veracidade que me desperta sentimentos de ódio pelo ser sem braço, de pena ou raiva pela submissão da mulher que deu fim à vida e de enorme compaixão pelas crianças inseguras sem pai nem mãe.Comovente, querida Ivy! Parabéns!
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