O martelo de Adelaide – Marília Kubota


MOSAICO Coluna 02   Resenha

O martelo de Adelaide
por Marília Kubota

O martelo (Garupa, 2017), de Adelaide Ivanóva, recorre à metáfora de uma ferramenta considerada arma branca entre os povos primitivos. Na Revolução Industrial, torna-se símbolo da classe operária: é um instrumento para pregar pregos. Na era moderna, ao lado da foice  do camponês, transforma-se no ícone da bandeira comunista.
Há duas referências  para as quais o livreto (com 82 páginas e  29 poemas) aponta.  O martelo do juiz, que  representa o poder de proferir sentença nos tribunais, batendo com força em vítimas de estupro e o livro O  martelo das feiticeiras, manual no qual a Inquisição da Igreja Católica  se baseava para caçar hereges, entre eles, “mulheres que haviam feito pacto com o demônio” ou adúlteras. 
O livro amplifica estas duas vozes, a da estuprada e a da adúltera. Estas mulheres, segundo o  Imperador  Constantino, eram consideradas foras-da-lei. As vozes femininas são anônimas, mas  uma delas pode pertencer à judia alemã Henriette Herz de Lemos, que no século 18 promovia um salão literário, frequentado pelo naturalista Alexander von Humboldt, um suposto admirador.  Humboldt representa  os homens notáveis, com a honra imaculada, a não ser por acidentes da vida privada. 
Uma série de poemas reconstitui os personagens do rito de um processo jurídico de estupro: a delegada, escrivã, o corpo de delito, o grupo de ajuda, o advogado, as testemunhas,  o juiz e a sentença.


A sentença
duas releituras de duas odes de ricardo reis

I

pesa o decreto atroz, o fim certeiro.
pesa a sentença igual do juiz iníquo.

pesa como bigorna em minhas costas:

         um homem foi hoje absolvido.



se a justiça é cega, só o xampu é neutro: 

quão pouca diferença na inocência

do homem e das hienas. deixem-me em paz!

antes encham-me de vinho

a taça, qu´inda que bem ruim me deixe
ébria, console-me a alcoólica amnésia
e olvide o que de fato é tal sentença:
a mulher é a culpada.


II

pese do fiel juiz igual sentença
em cada pobre homem, que não há motivo
para tanto. não fiz mal nenhum à mulher e
foi grande meu espanto

quando ela se ofendeu, exagerada, agora
reclama, fez denúncia e drama, mas na hora
nem se mexeu. culpa é dela: encheu à brava
a garbosa cara.

se a justiça é cega, só só a topeira é sábia.
celebro abonançado o evidente indulto
pois sou apenas homem, não um monstro! leixai
à mulher o trauma.




O rito encaminha para o dejà-vu, a condenação apriori da vítima.  Ivanóva usa a ironia para desmascarar os clichês : a delegada que pergunta se a vítima quer instaurar o inquérito, a escrivã, por que bebeu tanto e não gritou, a indiferença dos médicos no exame de corpo de delito,  as mentiras das testemunhas e a injustiça do juiz.

Fig. 3: Paula Rego, Sem título, 1998
Paula Rego, (sem título), 1998.


Além de aludir a personagens históricos, os poemas evocam crimes de ódio, como  assassinatos de homossexuais e travestis   o estudante americano Matthew Shepard, assassinado em 1998 e a brasileira Laura Vermont, assassinada em 2015. Para a Inquisição, homossexuais e adúlteras eram considerados bruxas. No último verso do último poema, o martelo retorna à sua função utilitária, de pregar cabeças de pregos. Mas segundo as estatísticas de feminicídio,  é uma das armas mais  usadas para matar  mulheres.  Este pequeno livro é grande, por abordar um tema que não tem evoluído desde eras primitivas. 

o martelo

o papa quando morre
leva uma
marteladinha
na testa eu nunca
martelei
ninguém
nem papa nem príncipe nem rei
quando a procissão
tem que seguir
o capataz dá três
marteladas
no andor e os
costaleiros seguem
martelo
é um decassílabo heroico
com tônicas nas posições
três seis e dez quando
o atleta termina o
molinete três voltinhas
em torno de si mesmo
pode lançar o
martelo
que pesa sete kilos
duzentos e sessenta gramas
marx nunca falou sobre
martelo
algum quem já viu
escola de pensamento ter
símbolo qual seria o símbolo
da escola de frankfurt se
adorno tivesse escolhido um?
quando thor bate seu
martelo
é sinal de chuva e trovão
mas é a flor do mandacaru
que anuncia chuva no
sertão para o tubarão-martelo o
martelo
funciona como uma asa
estabilizando seus
movimentos além disso
o ritual de acasalamento
dos tubarões-martelo
é muito violento
na bandeira da albânia
comunista substituíram o
martelo
por um fuzil o
martelo
é um objeto ótimo
que serve pra dormir bem
ou pregar pregos.

Comentários

  1. Matéria maravilhosa. Gostei de tudo!

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  2. Parabéns por tudo que foi dito. O martelo que mata tudo que escapa a norma de épocas. As bruxas. as adúlteras, os homossexuais, o genocídio, e por aí vai......

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