Artes integradas de Tere Tavares - Um Conto e uma tela

Tere Tavares - Observadores (técnica mista)

Quotidiano

por Tere Tavares


Via o vulto límpido da realidade se abrir lentamente. A morte
é apenas uma linha que se precisa atravessar; o silêncio depois que a
respiração cessa. Nada se pronunciava que não viesse eternizar o que
havia em si de venerável. Manteve-se curioso. Não perdeu a capacidade
de encontrar motivos. Nenhum romantismo o visitava desde a última
decepção. Imaginou ter encontrado na reclusão uma forma de relacionar-se
melhor com os intervalos entre razão e emoção. Estudava uma
forma de jogar com ambas, no momento certo. Cria ser esse o ponto
de equilíbrio mesmo que ausente da precisão imaginada mais propícia.
[O jovem caminha mais rápido pela estrada, mas o ancião conhece os
detalhes do percurso]. Ele se chamava Hully. Perdia-se nas inglórias que
se instilavam na sua pele e lhe soletravam a vacuidade suspensa na testa,
nas várzeas que as geadas cobriam. A paixão o devorava como os
escaravelhos ao atacarem os roseirais.

Relutava no que lhe parecia uma ruptura da rotina, um ensinamento sobre
um presente antigo, rente às toadas das estátuas tépidas,
dolorosamente táteis como se extensões da memória estendida na fria noite
em que Bóreas passeava entre as araucárias, o sul e seus ventos álgidos.

Hully pedia sem suplicar. “Faça-se uma festa, somente uma, como
se a maturidade fosse um brado afogado e débil. Faça-se um esforço para
desatar a assombrosa rota dos desabrigos. Não vejo nenhuma luz que não
necessite de mais luz. Não imagino como não poderia haver, na luz, algo
além de uma verdade, mas há os que se deixam asfixiar pelos holofotes
e encandecem. Enquanto a crença em algo bom retrocede e os arcos se
posicionam junto ao mar, os desafetos amordaçam-se a par de um portão
trancado com a lama detida pelas canoas. Todos se extraviam para cair
de joelhos sobre promessas e incúrias. Não restam delimitações, os faróis
parecem inúteis, Einstein, Camões e Pessoa não são mais que estímulos
anárquicos. Esperanças que sempre são prostituíveis se incineram no
antilivro. Navego, curvadas as costas e a honra, como se matilhas uivantes
por amanhãs que jamais chegam. A trapaça infla o que deveria ser justiça.
Cada um se projeta na própria e intangível defesa e não afrouxa os nós
das contundências o fluxo do pântano fétido e assassino. Não há decência
nessa pátria de párias que a todos assola. Não há como dizer que tudo
isso seja uma fórmula que se distancie da morte indigna da narrativa turva
de uma história vergonhosa e aviltante”.

Hully sussurrava o cálice espumoso em que se declarava como
um eco convulso e caía rústico no Concerto de Aranjuez porque tudo era
superior nas bordas da praia em que se mantinha a fina concha depois da
rede oca. Da legitimidade, do verdadeiro, temos apenas indícios. Talvez
a vida seja mais método do que lei.


“O que expõem as manhãs? Quem trará a proximidade? Estagnar
é atrair o desalento. Somos seres moventes. A tristeza pode ser bela se
não a deixarmos durar. Beijo a página como se fora a derradeira vez que
pressinto o ar e o aspiro como se um lírio florisse nas minhas fases opacas.
O que vivi é do passado e é só um detalhe pequenino desse coração de
girassol, de um tempo distante em que as mãos eram dignas e perenes
como o sal”. Como rei dos verbos. Hully – mesmo na balbúrdia
a entontecer-se de sorrisos – a mais bela das manifestações humanas.



Tere Tavares, escritora e pintora, radicada em Cascavel, PR, autora dos livros Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas (2011), A linguagem dos Pássaros (Ed Patuá 2014), Vozes & Recortes (Ed Penalux 2015), A licitude dos olhos (Ed Penalux 2016), Na ternura das horas (Ed Assoeste 2017) Campos errantes (Ed. Penalux 2018). Conta com publicações em antologias, jornais e sites literários nacionais e internacionais. Integra a Academia Cascavelense de Letras.
Blog: http://m-eusoutros.blogspot.com.br
https://www.facebook.com/tere.tavares.1



Comentários

  1. Gratidão, Lia Sena e Chris Herrmann pela oportunidade, pelo vosso maravilhoso trabalho na divulgação da Literatura e da Arte, através da "Revista Feminina MulherArte de Arte Contemporânea". Honrada por fazer parte. Desejos de sucesso e continuidade. Forte abraço!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

PUBLICAÇÕES MAIS VISITADAS DA SEMANA

De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena

Mulher Feminista - 16 Poemas Improvisados - Autoras Diversas

200 palavras/2 minicontos - por Lota Moncada

Nordeste Maravilhoso - Viva as Mulheres Rendeiras!

Cinco poemas de Catita | "Minha árvore é baobá rainha da savana"

A vendedora de balas - Conto

DUAS CRÔNICAS E CINCO POEMAS DE VIOLANTE SARAMAGO MATOS | dos livros "DE MEMÓRIAS NOS FAZEMOS " e "CONVERSAS DE FIM DE RUA"

A POESIA PULSANTE DE LIANA TIMM | PROJETO 8M

Preta em Traje Branco | Cordel reconta: Antonieta de Barros de Joyce Dias

UM TRECHO DO LIVRO "NEM TÃO SOZINHOS ASSIM...", DE ANGELA CARNEIRO | Projeto 8M