Um conto forte e tocante - por Mara Magaña
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Sonhos de Porcelana
por Mara Magaña
Isadora concebia filhos de um marido
monótono. As crianças cresciam pela casa, entrechocavam-se nos corredores,
choravam por nada. Isadora desdobrava-se para conservar os miúdos limpos, mas
sem paixão pela faina. À tarde servia o jantar para o marido, lavava a louça,
tomava uma xícara de café antes de dormir e deitava-se sem nenhum enlevo. Mesmo
assim, sonhava com porcelanas chinesas, seu grande desafio. Do dinheiro do
leite dos pequenos, sempre dava para tirar algum para a caixinha, que ficava
atrás do bule na cristaleira. Um dia iria pé ante pé até a loja de Dona
Izildinha e compraria o jogo de chá. Podia ser simples, sem as colherinhas de
prata, que também a encantavam, mas nem tanto. Um dia.
De manhã acordava com o primeiro
que lhe pedia uma mamadeira aos berros. Removia fraldas, fervia o leite, varria
o chão e aí é que chamava o marido. Punha a mesa para ele, esquentava o pão,
passava manteiga, escutava o que ele dizia sobre a gripe de um, a malcriação de
outro e concordava com tudo. Logo ele saía, deixava o suficiente para o dia.
Ela ia com ele até a porta, o coração disparado, sem beijo de despedida, e a
nota de cinco, rápido, às escondidas, indo para trás do bule. Punha as crianças
para fora, que se matassem em paz, e consumia boa parte da manhã a contar o
guardado.
Semana sim, semana não podia
acontecer outro miúdo. Isadora passava mal nesses dias. Tinha dores de cabeça,
fraqueza nas pernas, não cozinhava direito, tremia inteira,
levava sopapos e esquecia da porcelana de Dona Izildinha. Porém, sempre acabava
consentindo, já que não tinha outro jeito.
Um dia acordou leve, faceira,
sorriu mesmo para o pequeno que lhe pediu o peito. Inclusive cantou enquanto
varria a casa, fervia o leite, esquentava o pão, passava manteiga. Escutou
pacientemente o bê-á-bá do marido e teve mais calma para acompanha-lo até a
porta. Não precisou da nota de cinco. Fez uma extravagância e mandou um dos
maiores ir até a padaria comprar sorvete. Distribuiu-o entre a garotada, até
riu com eles e só então empurrou-os delicadamente para o quintal.
Ao se ver só, retirou o bule da
cristaleira, pegou a caixinha, rasgou-a inteira e deixou cair no chão o monte
de notas de cinco. Contou-as minuciosamente. Beijou-as carinhosamente,
afagou-as e acomodou-as em seu colo. Depois esticou uma por uma, passou as
notas a ferro, guardou-as cuidadosamente em sua bolsa. Tomou um banho,
perfumou-se, colocou o vestido que usara no último batizado, a sandália baixa,
para não tropeçar na volta, e dirigiu-se decidida para a loja da Dona
Izildinha. Ao chegar, parou em frente à vitrine a contemplar aquele mistério.
Pela porcelana fina e definitivamente chinesa espalhavam-se arvorezinhas que
formavam um bosque, e um cavalinho azul exibia as patas levantadas coiceando o
ar, o focinho empinado, a crina que se imaginava sedosa, em riste. Os dentes
fortes ela adivinhava. Isadora amava o animal. Ficou olhando um tempão até que
as lágrimas abundaram e molharam o rosto ressequido de emoções.
Isadora entrou. Dona Izildinha não
fez caso, muitas vezes vira a moça na porta ou mesmo chegando ao balcão e
perguntando o preço, cem vezes, duzentas vezes, perdera a conta. Mas Isadora
tirou o dinheiro e pediu a porcelana. Dona Izildinha surpreendeu-se e, no
final, sentiu uma certa dor ao separar-se do jogo há tantos anos no mostruário.
Mas, pensou, foi melhor: quem iria querer uma coisa tão cafona como aquela?
Isadora queria. Saiu da loja
andando devagar, com medo de deixar a caixa cair, quebrar seu sonho. Chegou em
casa antes do almoço e foi para o quarto, não esquecendo de trancar a porta.
Dispôs as xícaras uma a uma na cama, com seus pires lado a lado. Não vieram as
colherinhas. Não fazia mal. Colherinhas tinha aos montes espalhadas pela casa.
Ajoelhou-se frente a elas numa atitude de adoração, chegou a rezar pela louça.
Depois enfiou-as de novo na caixa e escondeu-as embaixo da cama. Preparou um
almoço qualquer, às pressas, meia dúzia de ovos foi o suficiente, um arroz
branco meio empapado. As crianças não gostaram, choramingaram, fizeram birra. Exasperou-se
com elas, jogou tudo fora, mandou-as brincarem, que não fossem à escola, que a
deixassem livre.
Nem lavou a louça. Correu ao
quarto, tirou novamente as xícaras da caixa e repetiu o ritual matutino.
Venerou-as até a hora do jantar. Lembrou-se dos pequenos, chamou-os e lavou-os
como se fossem gatos, fez um jantar mais apressado que o almoço. O marido
chegou, comeu, ralhou com os filhos, fazendo-os deitarem-se logo. Isadora então
entendeu. Podia ser a hora de mais um. Mas ela não queria, não podia fazer
aquilo justamente naquele dia. Não hoje, pensou. Isadora jurou que não.
Pretextou dor de cabeça, cólica de fígado, terminou apelando: estava naqueles
dias. De nada adiantou, era agora e pronto.
Ela tinha obrigação.
Arrastou-a para o quarto, jogou-a entre
os lençóis. Isadora não podia. Mas o marido era forte. Isadora não.
Enfraquecera com os anos gerando meninos que roubavam sua força. Outro não.
Chega, não aguentava mais crianças, não viria mais nenhuma. Ele que se
arranjasse.
O tapa que recebeu deixou-a louca,
não mais obediente como antes. Lutou com o marido, encontrou resistência
escondida não sabia onde. Tentou golpeá-lo. Mas o marido a subjugava. Caíram no
chão. Tateando, deu com a caixa embaixo da cama. Pensou nelas, perdeu a
vontade, o caráter, a vergonha. Outra lágrima desceu do seu olho, a segunda vez
que chorava no dia. Não. Detestava ser mãe. Sempre detestou. Odiava cada fralda
que lava, cada criança que sujava a fralda. Tinha ânsias de vômito quando ouvia
algum menino lhe pedindo para ajudá-lo no banheiro. Não suportava as risadas ou
lágrimas infantis. Pegou a primeira xícara e golpeou o marido. Depois outra, a
terceira. Os pires. O jogo todo, a caixa. O marido ria. Por fim, esbofeteou-a,
que já estava perdendo a paciência. Isadora parou de lutar. Ele fez o que quis.
No outro ano nasceu Isabela, a menina que podia voar.
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Mara Magana, nasceu e reside em São Paulo, é jornalista, professora de Português e Espanhol, tradutora, ghost-writer. A literatura sempre foi o grande fascínio. Participou de alguns concursos, e ganhou um ou dois deles. Tem contos e poemas em Antologias. Participou do primeiro coletivo de mulheres ao lado de Rosa Maria Mano, Dona Anna de Oliveira, Ruth do Carmo, Maitê do Prado, Rosely Deienno, Maria Elizabeth Cândio e outras, em 1982, Com essas poetas, participou do livro Fruto Mulher, da Semente Edições. O jornalismo a tirou do caminho literário por bastante tempo, mas volta esse ano com um livro de poemas e outro de contos. Entre um e outro, prepara seu primeiro romance.
Nossa, que lindo! Um show!
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