Um conto sensível e instigante - por Divanize Carbonieri


Laurent Folco



MESA-REDONDA

 por Divanize Carboniere 

Olhando a foto, tenho a impressão de que existe certa deformação em meu corpo. Não é apenas o caso de ser feia. É mais do que isso. Um corpo que parece errado de qualquer modo, quase uma monstruosidade. Todas as outras estão bem, se não bonitas, pelo menos sem nada na aparência que as desabone. Uma mulher vale pelo quanto aparenta bem. Uma mulher não vale nada realmente. O que importa se tem boa aparência ou não? O máximo que se pode almejar sendo mulher é merecer ser estuprada. Tudo o que se pode desejar é ser uma bela tolinha, já se sabia faz tempo. Mas nem sempre é possível, por mais esforço que se faça. Não para todas. Algumas aparentam estar apaziguadas em relação a tantos padrões. Provavelmente nem é toda a verdade. Mas nunca experimentei sequer um verniz desse conforto. Sempre em guerra com minha imagem, evitando espelhos e não olhando para baixo ao tomar banho. O corpo, o grande inimigo. Campo de batalhas perdidas. O incômodo maior. Apenas um suporte para a cabeça, com suas ideias fervilhando, com sua sede insaciável de conhecimento. Sigo passando de uma foto à outra no álbum do facebook. Pareço horrível em todas, como já era esperado. No registro da mesa-redonda, os braços estão medonhos, a boca torta, o cabelo desgrenhado, o corpo grande demais, a pele esburacada. O que interessa o que eu disse? Quem é que me ouviu? Naquele dia, a professora que dividia a mesa comigo falou primeiro. Era alta, magra, linda. Perfeita em todas as fotos. Nenhum ângulo a desfavorecê-la. A roupa muito bem escolhida, a maquiagem leve numa tez irretocável. Ao lado dela, eu fazia uma triste figura, gorda e mal-vestida. Minutos antes ela tinha me revelado a sua preocupação. Sua palestra estaria acima das possibilidades daquela audiência. A professora vinha de uma capital, e não era incomum nessa situação subestimar os locais. Tentei tranquilizá-la, mas eu também era uma local, e talvez o que dissesse não contasse. Só o que deveria prevalecer era sua impressão de pessoa que vem do grande centro, da grande universidade, para falar para um grupo de interioranos que só agora teve acesso ao ensino superior, à pós-graduação. O fato é que a professora tinha trazido a conferência pretendida digitada, páginas e páginas, colocadas ali na mesa, perto do microfone. Ela, convidada de fora, teve a prerrogativa de iniciar os trabalhos. E não leu o que trazia. Deixou ali mesmo, do meu lado. Esticando os olhos, mas sem me mexer, fui capaz de ler o título e toda a primeira página. Algo bastante elaborado a respeito de uma autobiografia em língua alemã. A fala foi numa direção completamente diferente. Foi quase afetiva. Sobre sua experiência de professora de literatura em tempos em que ninguém mais lê. Como fazer os alunos despertarem para a leitura. Era preciso, é claro, diminuir a quantidade e o tamanho dos textos. Fazer com que lessem na sala de aula porque em casa não tinham mais tempo. Ler com eles, discutir suas impressões. Nada de muita teoria porque isso só afugenta o encantamento. Voltar a abordar a literatura como um repertório que dá sentido a nossa vida, que apresenta algumas respostas aos nossos questionamentos. Ou pelo menos como algo que suscita reflexões e que pode nos fazer mudar de ideia a respeito de um problema. Enquanto falava, ia fixando os estudantes no olho, mirando de um a outro. Todos em absoluto silêncio. Eu também esquadrinhava a sala em busca de algum sinal de dissidência ou displicência em seus rostos. Nenhum. Todos concentrados nas palavras da professora forasteira, embevecidos com o que dizia, sem saber que recebiam dela apenas um prêmio de consolação. Ela se saía bem, contava histórias pessoais, fazia piadas que despertavam o riso geral. Nos olhos dos estudantes, via-se o brilho do fascínio. Talvez o que contou tenha sido a beleza. Possivelmente as roupas de grife. Tento não acreditar que seja assim. Mas, fora isso, só me resta a alternativa do pensamento mágico: um gás invisível que embriagava a todos. Menos eu. A única imune, observando tudo sem me deixar enganar. Ultrapassou o tempo reservado a ela em vários minutos, mas não foi incomodada pela mediadora da mesa. Falou o quanto quis e terminou quando bem entendeu. Ao final, foi ovacionada, com palmas entusiasmadas. Chegou a minha vez. Abri meu texto digitado, disposta a manter-me fiel a ele. Iniciei a leitura. Alguém poderia dizer que foi justamente isso que tornou os jovens inquietos, mas talvez seja injusto, pois mal tinha lido a primeira página e já estavam completamente desconcentrados, olhando para várias direções, menos para mim. Alguns tinham se levantado e saído. A reação deles foi instantânea, posso jurar. Uma transformação radical: da mais perfeita concentração para a dispersão completa. Ninguém prestava atenção ao texto que tinha demorado quatro semanas e muito estudo para escrever. Li com bastante cuidado, pronunciando bem as palavras, enfatizando as mais importantes. Não creio mesmo que estivesse enfadonho. Nada adiantou. A balbúrdia se elevava no auditório. Senti o mal-estar das mulheres sentadas próximas de mim. Começaram a se agitar, se coçar, balançar as pernas ininterruptamente. Não me abalei, acostumada que estou a ser subestimada ou ignorada. Uma couraça se formou em mim ao longo dos anos, e a hostilidade, que sempre sou capaz de detectar, não me atinge mais. Tenho certeza de que não extrapolei o tempo, mas logo fui avisada pela mediadora que deveria concluir. Assim o fiz. Recebi palmas espaçadas sem muita ênfase. Na hora das perguntas, todas foram endereçadas à minha companheira de mesa, que as respondeu com desembaraço. Antes de ir embora, ela ainda me cumprimentou pelo que chamou de uma excelente apresentação de uma pesquisa muito bem realizada. Mas tenho certeza de que era apenas ironia. Assim como são irônicos os comentários embaixo das fotos, me elogiando, dizendo como eu estava bonita e elegante. Por toda parte só sarcasmo. Mas consigo perceber com clareza o que realmente querem dizer, o que estão de fato pensando por trás de suas palavras amáveis. Nunca me equivoco a respeito do modo como me consideram desprezível. E sempre me consideram desprezível, por mais que digam o contrário. Passei há muito da fase da revolta. Só ainda me pergunto o porquê.

* Um conto que está no livro Passagem estreita



Divanize Carbonieri é autora dos livros de poesia Entraves (2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, Grande depósito de bugigangas (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, A ossatura do rinoceronte (2020) e Furagem (2020), além da coletânea de contos Passagem estreita (2019), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi segunda colocada na categoria conto na edição de 2019 e finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019. É uma das editoras da revista literária digital Ruído Manifesto e integra o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras/MT. Site: https://www.divanizecarbonieri.com.br.







Comentários

  1. Divanize, você deu voz a muitas mulheres, quando escreveu este texto. No rastro das suas palavras, muitas se identificaram. Parabéns, pela sua lucidez e por não se deixar seduzir pelos falsos aplausos da burrice alheia.

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