Uma colher de chá pra ele - Alberto Bresciani


| uma colher de chá pra ele - 01 |


Seis poemas insubordinados e inéditos 
- por Alberto Bresciani


SÍTIO

Já havia mortes traçadas nas tatuagens
de rapazes e moças, silêncio opressivo
sob a crosta de muita fala, muito ruído,
toda zombaria e dança em cada praça.

E nada era engano, ilusão. Não.
Era o desastre, discreto, chegando,
acumulado nas balas de festim.
Como se Deus enfim assumisse
seus erros, a deformada geometria.

E assim começou o cerco, a noite
infiltrada nas tardes, a gravidade
insuportável para ombros frágeis,
enterrando o que ria e se comemorava,
um escuro invisível, chumbo embora.
Os videntes anunciando em desespero
o rompimento dos muros, dos diques,
a fome, a sede, o desamor, epidemias.

Na cidade sitiada, esse homem
é o louco das ruas, perdido, anda
enfiado em pedras, coberto de papel,
colecionando caixas de remédio,
vazias como um sorriso póstumo.
Passa o tempo costurando,
umas às outras, as asas dos insetos,
sem razão, corre atrás dos carros
e fala sozinho dentro de mim.


***


ABATE

E o medo nos infestando,
vindo por baixo, subindo
pelas pernas, penetrando
os sulcos, cada reentrância.
O medo que nos rouba
o último fio de realidade,
força aos cantos, rasga
as roupas, que não usaremos,
embora as quiséssemos tanto.

O medo nos derruba e apaga
no estômago dessa turba,
o medo do que sequer entendemos,
enredo sem back-up, arrastando
para longe de todo agora.

Há uma bandeira rasgada
e tigres brancos nos vigiam.

O medo é o que nos doutrina
e que aceitamos, mansos,
porcos felizes a caminho do abate.



Salvador Dali

RESSUSCITADOS

Os chamados nos atordoam,
somos quase tragados pelo inverno
que nos prende os pescoços
aos quartos onde nos abandonaram.

Mas, repara, nas clareiras que se abrem,
há inocentes que ignoram
todas as manobras de paralisia
e se despem à primeira ordem.

Precisamos do ruído, rugidos.
Todos nós nos salvaremos da armadilha
e atearemos fogo ao mau caminho,
as facas cairão das mãos intrusas.

Os lagos de piche se abrirão
e velhos fósseis terão vida.
Uma fera antiga sorrirá ao mal
com dentes de sabre.


***


SUPERAÇÃO

Cacos de vidro
sobre os muros,
lanças afiadas
das grades,
arame farpado
e cercas elétricas:
mesmo com as unhas
arrancadas,
nós ainda as transporemos,
como se fôssemos alados.

A longevidade
dos recém-nascidos
nos instruindo
os pulsos.


Salvador Dali

DEPOIS DOS MORTOS

Depois da epidemia, passei a lavar os corpos dos mortos,
perfumá-los e cobri-los de linho, atavios, artefatos.
Faço isso por minha conta, à sombra, para que não sejam
descartados aos abutres nas amarguras do burgo.

À noite, vamos pela cidade deserta, nossas testas
siamesas se encostam e uma frase sua é meu juramento.
Você está aqui, seguro sua mão durante os bombardeios.
Vamos virando esquinas a caminho de casa.
Os mortos descansam nos meus ombros. Eu, nos seus.


Salvador Dali

ANTÍGENO

Quase não há escape: nós,
homens, mulheres e crianças,
vítimas do cerco, confinados
à cidadela, enquanto as mentiras
e pedras incendiárias
sobrevoam os muros.
É difícil enxergar as luzes:
meus olhos adoeceram desde então.

Todos sabemos.

Por sorte, vou aos seus joelhos
e uma palavra de adormecer
arranca de mim esse sudário,
tão sujo de lodo e lama.




Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. É autor de Incompleto movimento (José Olympio Editora, 2011), Sem passagem para Barcelona (José Olympio Editora, 2015, finalista do prêmio APCA de Literatura - Poesia de 2015), Fundamentos de ventilação e apneia (Editora Patuá, 2019) e Hidroavião (Editora Patuá, 2020). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminações (Dobra editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá, 2014), Pássaro liberto (Scortecci Editora, 2015), Pessoa – Littérature brésilienne contemporaine (Revista Pessoa, édition spéciale – Salon du Livre de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016). Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da internet e em revistas e jornais impressos.

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