Cinthia Kriemler - 5 poemas pra não esquecer
Carmen Luna |
Natureza morta II
A mulher chinesa
estática na fotografia em p&b
é diferente de mim
Não sorri não fala português não
diz palavra não tenta ser minha amiga
no Facebook
A mulher chinesa usa um chapéu de cone
para colher arroz e umas calças largas
que eu não quero usar
Porque eu sou gorda e as calças largas
avolumam ainda mais os visuais arredondados por
carnes em acúmulo
A mulher chinesa não quer ter filhas,
só filhos, porque as meninas são inúteis
para a revolução
Mesmo que a revolução já seja tão velha
quanto a minha memória mais antiga
do que seja uma revolução
A mulher chinesa se deita todas as noites
e chora sem ruído por alguma coisa que ela
não conhece e que faz falta
Tem medo que descubram que ela sonha
com viagens com livre-arbítrio e com campos
de girassóis
bem mais bonitos que os campos
de arroz que tornam plana a paisagem
dos dias chineses
Enquanto limpa o sangue vivo que o seu corpo
expele em ciclos exatos
de 28 dias
A mulher chinesa pensa em quanto sangue mais
terá que escoar para alcançar o campo insubmisso
e profano de girassóis.
Estática, na foto em p&b, a mulher
chinesa
sou eu.
Carmen Luna |
Coisas de dentro
Quando eu tinha onze anos ganhei o meu primeiro sutiã.
Azul-claro
e acolchoado. Dessas coisas que as meninas gostam aos
onze anos.
Mamãe me disse que os sutiãs serviam para proteger os
seios
Só não me disse de quê.
Na porta de casa, levantei a blusa e mostrei ao meu tio
padre
como era lindo e azul-claro e alcochoado o meu primeiro
sutiã
Som e fúria, ele me disse que Deus fez as coisas de fora
e as coisas
de dentro, e que as de dentro foram feitas para ficar
escondidas
Da primeira vez que eu transei não tirei o sutiã. Nem da segunda.
Em todas as outras apaguei a luz
A psicóloga das sessões de quarta-feira quer entender por
que
eu não consigo falar digerir vomitar as coisas de dentro.
Nem por que
eu não gosto de azul
Ela não sabe da repressão da boca de um padre.
Carmen Luna |
Suicídio
cortar os pulsos do céu, esguichar o sangue sagrado
como a água nos aspersores de jardim
até que a morte
nos separe do cordão umbilical de Deus
que nunca aceita corte
o suicídio do eterno nos
libertará de mugir
Tomasz Alen Kopera |
hoje é dia de fim, bebê
atrás da
primeira porta o leão furioso de Judá rompe
as amarras do
livro dos sete selos e arranca de uma vez
sete segredos –
quatro cavalos coloridos de fome
guerra conquista
morte
atrás da
segunda porta visões históricas, histéricas de corpos
que definham
pútridos jorrando pelos poros bocas bundas
falos trapaças
apostas blefes
e ranger de
dentes
atrás da
terceira porta Deus Todo-Poderoso
Alá [o
Magnânimo], Shiva [o Destruidor] e um astronauta
imaginário (da
intrépida trupe de von Däniken) rosnam mantras
rogam pragas,
profetizam a partilha das 144 mil almas em espólio
(imaculadas)
após o último
portal o metal afinado de seis trombetas improvisa
numa jam
session o final do juízo e seis serafins bêbados
de apocalipse
varrem do salão, com suas asas enormes
cavalos e
eleitos
num canto do
Nada soa
em silêncio
a sétima
trombeta
Imagem Pinterest |
Verschränkung
O gato de Schrödinger
brinca ou padece de vivomorto
encarcerado entes as paredes
de uma caixa hermética.
Estado quântico emaranhado,
oscila entre a dor insabida da morte
e a solidão da vida
nas mãos dos humores de um contador
Geiger, de um martelo
e de um frasco de cianeto.
Crueldade
é capricho do animal humano
os gatos prisioneiros só pensam
em derrubar paredes.
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Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (Contos, 2020). Tudo que morde pede socorro (Romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (Poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); e Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.
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