Gelo e fogo se abraçam na instigante Poesia de Michelle Ferret, em seis Poemas
Wendell Well
FRIO
O
dia escureceu os meus olhos
Não tinha mais fogo para acendê-los Todos os
fósforos foram usados
Não sobrou nada
Procurei pelos isqueiros Mas eles não tinham
gás
Nenhum
incêndio foi possível hoje
Abro
demoradamente
porta
por porta
de
todas as gaiolas
e
desafio a gravidade
atravessada
de silêncio
avisto
outro
país, outro planeta
este,
agora
em
esperas
mesmo
depois de tantas (v)idas
Todo
parto tem seu peso
e
todo tempo
sua
vertigem
imersos
na coragem
da
criança que pula
o
abismo de todas as manhãs
seguimos
Todos
os versos
são
planos de fuga
despedida
do corpo em riste
alucinando
as vias públicas, ora vazias
asfaltadas
no peito
O
inferno de Dante
é
pouco
para
tanta chama acesa
e
inaugura nossa febre em continuar, apesar de tudo.
Avisto
Os
rios limpos, o céu mais azul e as pessoas menos mortas
RESTO
A
chuva não caiu na noite
secou a saliva, o suor,
a loucura secou o medo
do escuro
e a solidão disfarçada secou o mundo
o tempo as vestes o vento
secou o corpo as certezas
o vazio as lentes
não sobrou
quase nada a não ser essa cidade
Toda
vez que o gelo derrete
consigo ter
a dimensão das
coisas idas a despedida concreta
do
tempo
de como se toca uma saudade com as mãos e boca
desse suave instante em existir, evaporar e ser
sólido
antes
de tudo
quando o gelo esvai tudo some
e no seu reservatório
em ser nada permanece uma
vontade latente de encher de novo
e
de novo
até
que tudo seja intocável.
DESABAR
Todas as coisas estão sujeitas
A
desabamentos
Prédios, pontes, desejos
Todas as coisas tem limites
Margens
Estamos sempre
à beira Do rio, da rua
De atravessar
a casa O pensamento
Nas
madrugadas estreitas
Os alargamentos
podem não ter portas
E entramos em pequenos curtos
E entramos em pequenos curtos
Circuitos
de nós
De
voz, da avó, dos ancestrais
Que tocam os tambores na memória
Na veia
E correm
soltas na nossa capacidade
de
sonhar
E remar
E remar
Irrigar as seivas calmas do corpo
Do
centro
Nos infinitos movimentos de ir
Vir
Permanecer
Tudo está por um triz
Já
diz Maluz Tudo que reluz
Pode ser
espelho Banho de mar
Delírio
E esses desabamentos Servem para lembrar
Da fragilidade de tudo o que é suporte
Seja a
perna da cadeira
Ou a minha
Seja aquele
muro de concreto Ou o braço
suado do rapaz
Que
carregava o saco de cimento
Para
a construção do prédio que se ergue na esquina.
O calor se espalha nas
montanhas da alma
E a lua que sorri
É pequena para os lábios do
mundo Todo mundo quer muito
e
perde muito do que se deseja
...
O calor se perde nas montanhas
da alma É preciso escalar a prece
E
ver o lado de lá da fé
Porque aqui
é tudo muito seca
Sem água para apagar a pele O fogo
escorre nas vestes
E
a gente vai se perdendo na gente...
Está quente essa cidade...
esse
mundo todo está quente
...
Fotografia por Márcia Bezerra
Michelle Ferret: Poeta e
Roteirista. Formada em Jornalismo e Artes Cênicas. Assinou os roteiros dos
curtas "Adeus, te amo" (2016) e "Enquanto o Sol se Põe"
(2018) e do longa "Fendas. Ex integrante do grupo Rosa de Pedra (RN), com
em atuações com os grupos Poesias e Flores em Caixas e Os Insurgentes o qual tem
a poesia como instrumento de voz. É autora do livro "Amor Substantivo
Abstrato" (2016) do selo Burritos (SP). E prepara para lançar o livro
autoral “Febre”. Em 2019 circulou com a oficina “Poesia e Memória”,
através do projeto Arte da Palavra promovido pelo Sesc pelas cidades: Passo
Fundo (RS), Pesqueira (PE), Rio Branco (AC), Boa Vista (RO) e Manaus (AM).
Michelle é pura poesia. Coisa linda!
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