RESENHA do livro FIOS DE AÇO - a poesia impactante de LĺGIA SAVIO
por Nic Cardeal
Em FIOS DE AÇO, livro publicado pela Editora Letramento (Belo Horizonte/MG) em 2019, LÍGIA SAVIO expõe sua poética mais 'realista' - mesmo assim sempre recheada de metáforas e de sensibilidade - traduzida pelo olhar no "duro, por vezes violento, exercício de viver". Como muito bem diz Carina Marques Duarte, na apresentação, "(...) os poemas do livro que ora apresento aos leitores são os fios de aço capazes de sustentar quem está na corda bamba, são os fios que, tal como o de Ariadne, indicam o caminho (...)" (pág. 6).
O livro é dividido em 5 partes.
Em Personagens (1), os poemas ganham 'identidade própria', seres viventes que respiram infernos e paraísos, cada um a seu tempo e modo - desde o gosto amargo da noite em claro, a descida ao Hades sem resgate, o fantasma que sobrou nas trevas 'daqui mesmo', ao amor por Rimbaud, por Saturno e pela Lua, sempre tão fugitivos de (todos) nós. Desde a Rainha da Neve, o corpo envolto em roxo manto antes da descida ao sepulcro, a queda em labirintos metálicos, o amor samurai, a bailarina de vento (Eólica), little girl blue, Daimon de asa torta, pele de asno, até a saída "do nada/ para coisa nenhuma/ por baixo do fundo" (pág. 23).
EÓLICA
Passavam algas pelo teu rosto
e isso era vento e luz.
Teus traços verdes
tua mão de conchas
isso era vento e som.
A bailarina
que descansa exausta
a mulher que deixa o palco
um modelo de Renoir.
Passavam rios pela tua testa
e estavas perto e longe
sonhando sonhos de um outro mundo.
Eras o esboço
de um quadro impressionista.
Uma aura brilhante te envolvia
e isso era vento e sol.
Passavam peixes por tuas vestes
e não havia limites
entre o real e o teu contorno.
E eu fiquei te olhando
e eras infinita
com algas no rosto e rios na testa.
(pág. 18)
Em Palavreado (2), Lígia costura cada poema com o fio do silêncio - ora linha tênue, ora grosso barbante que arranha a mão que tenta afrouxá-lo para o necessário respiro - onde a palavra é a morada original dos (seus) sentidos, 'inda que ditos em terceira voz, mas sempre a sua. A palavra muitas vezes maldita, mal entendida, quase sussurrada de sofrimento e dor de parto - porque o viver da palavra também (ou quase sempre) sangra. Por isso ela grita, sozinha, 'palavras mudas', ou 'vomita então agora', porque "palavras às vezes/ serão rastros/ sulcos cansados no rosto/ poeira nos lábios gretados (...)" (pág. 33). Sim, porque é preciso até habitar, para sobreviver, em 'casa de palavras':
CASA DE PALAVRAS
Foi esta a casa que ficou:
Entre uma janela e outra
uma corda bamba.
Andar no fio da navalha
é a única regra possível.
Casa acolhedora? Transparente.
Contorno feito a giz no chão
estrutura de ar e de sargaços
muitos mergulhos,
rotas, direções imprevisíveis
na casa que sopra
a água das palavras.
(pág. 37)
Em Em pedaços (3), a autora junta os cacos depois (ou mesmo antes) do incômodo (tão certo) do verbo, já que poeta é, quem sabe, "no mapa do labirinto/ um rito de passagem/ mas sem fios/ sem ninguém/ que te decifre/ a geografia desta viagem(...)" (pág. 54). Se assim for, de fato, poeta - um 'rito de passagem' - há que sentir a mesma sede, aquela dos seres sensíveis, para poder então, finalmente, "lavar a alma na água da vida" (pág. 45)!
VOLTA
No dia que eu vim m'embora
achei um vidrinho de perfume no ônibus
que eu fui usando devagarinho,
poupando.
Enquanto durasse o perfume,
havia a esperança de voltar,
mesmo que tivessem se despedido de mim com um certo alívio.
Eu sei, eu não era cordata,
pensava diferente
e fui me tornando incômoda.
Não correspondi ao que se imaginava
e só me restava voltar.
Arrumei a mochila
cheia de sentimentos esfarrapados
e me despacharam no terminal dos objetos perdidos.
O perfume foi minguando,
o que existia foi desaparecendo
e fui procurar meus companheiros de entulho.
Nunca mais voltei.
(pág. 41)
Em Fio de esperança (4), a poesia de Ligia agarra-se com 'unhas e dentes' (das palavras) na poética da existência, traduzindo-se em versos que espelham (e espalham) a fé até no depois do agora, e eis que o mesmo fio de aço, quase inflexível, também pode - e busca - o ensinamento esperançoso do bambu que verga ao soprar do vento, mas não quebra, resiste e retorna ao centro. Porque é preciso (sempre) acreditar que um dia, quem sabe, "talvez eu brilhe" (pág. 60); ou se possa "voltar ao lugar perdido/ e esperar por algum sol" (pág. 62).
Não fui adiante.
Nem o áspero progresso
nem o lírico amanhecer.
Voltei sobre meus passos.
Pedi perdão quantas vezes foi preciso.
Re-considerei
sideras minhas,
antigas estrelas novas.
Me desculpei de travas rudes
que se soltaram.
Refiz o que precisava.
Desmanchei a teia de Penélope
pra me trazer - Eurídice - de volta.
(pág. 65)
Finalmente, em Exorcismo (5), é hora da revolução do feminino - quando a crueldade do mundo machista exige de toda mulher o levante, a resistência, a reação "das mãos que fiam e bordam/ e aceitam as palavras/ e servem os senhores (...)" (pág. 76). Mesmo que doa, que ardam os pés "sobre brasas vivas" (pág. 78), é hora de deixar "crescer as unhas" (pág. 79) e rasgar, "enfim, suas gargantas" (pág. 79)! Porque há que cumprir seu destino, mulher - para, finalmente, a exemplo de Sísifo, "rir dos carcereiros" (pág. 85), e finalmente "poder começar a viver" (pág. 86)!
Meus pés são de Peixes.
Minha Lua também.
Nenhum príncipe jamais poderia calçar neles
sapatinhos de cristal.
É por isso que eu serei eternamente a Gata Borralheira.
Faz de conta que é mais divertido.
Er(r)a uma vez...
(pág. 77)
Foto: arquivo pessoal
Em Personagens (1), os poemas ganham 'identidade própria', seres viventes que respiram infernos e paraísos, cada um a seu tempo e modo - desde o gosto amargo da noite em claro, a descida ao Hades sem resgate, o fantasma que sobrou nas trevas 'daqui mesmo', ao amor por Rimbaud, por Saturno e pela Lua, sempre tão fugitivos de (todos) nós. Desde a Rainha da Neve, o corpo envolto em roxo manto antes da descida ao sepulcro, a queda em labirintos metálicos, o amor samurai, a bailarina de vento (Eólica), little girl blue, Daimon de asa torta, pele de asno, até a saída "do nada/ para coisa nenhuma/ por baixo do fundo" (pág. 23).
EÓLICA
Passavam algas pelo teu rosto
e isso era vento e luz.
Teus traços verdes
tua mão de conchas
isso era vento e som.
A bailarina
que descansa exausta
a mulher que deixa o palco
um modelo de Renoir.
Passavam rios pela tua testa
e estavas perto e longe
sonhando sonhos de um outro mundo.
Eras o esboço
de um quadro impressionista.
Uma aura brilhante te envolvia
e isso era vento e sol.
Passavam peixes por tuas vestes
e não havia limites
entre o real e o teu contorno.
E eu fiquei te olhando
e eras infinita
com algas no rosto e rios na testa.
(pág. 18)
Foto: arquivo pessoal
Em Palavreado (2), Lígia costura cada poema com o fio do silêncio - ora linha tênue, ora grosso barbante que arranha a mão que tenta afrouxá-lo para o necessário respiro - onde a palavra é a morada original dos (seus) sentidos, 'inda que ditos em terceira voz, mas sempre a sua. A palavra muitas vezes maldita, mal entendida, quase sussurrada de sofrimento e dor de parto - porque o viver da palavra também (ou quase sempre) sangra. Por isso ela grita, sozinha, 'palavras mudas', ou 'vomita então agora', porque "palavras às vezes/ serão rastros/ sulcos cansados no rosto/ poeira nos lábios gretados (...)" (pág. 33). Sim, porque é preciso até habitar, para sobreviver, em 'casa de palavras':
CASA DE PALAVRAS
Foi esta a casa que ficou:
Entre uma janela e outra
uma corda bamba.
Andar no fio da navalha
é a única regra possível.
Casa acolhedora? Transparente.
Contorno feito a giz no chão
estrutura de ar e de sargaços
muitos mergulhos,
rotas, direções imprevisíveis
na casa que sopra
a água das palavras.
(pág. 37)
Foto: arquivo pessoal
VOLTA
No dia que eu vim m'embora
achei um vidrinho de perfume no ônibus
que eu fui usando devagarinho,
poupando.
Enquanto durasse o perfume,
havia a esperança de voltar,
mesmo que tivessem se despedido de mim com um certo alívio.
Eu sei, eu não era cordata,
pensava diferente
e fui me tornando incômoda.
Não correspondi ao que se imaginava
e só me restava voltar.
Arrumei a mochila
cheia de sentimentos esfarrapados
e me despacharam no terminal dos objetos perdidos.
O perfume foi minguando,
o que existia foi desaparecendo
e fui procurar meus companheiros de entulho.
Nunca mais voltei.
(pág. 41)
Foto: arquivo pessoal
Em Fio de esperança (4), a poesia de Ligia agarra-se com 'unhas e dentes' (das palavras) na poética da existência, traduzindo-se em versos que espelham (e espalham) a fé até no depois do agora, e eis que o mesmo fio de aço, quase inflexível, também pode - e busca - o ensinamento esperançoso do bambu que verga ao soprar do vento, mas não quebra, resiste e retorna ao centro. Porque é preciso (sempre) acreditar que um dia, quem sabe, "talvez eu brilhe" (pág. 60); ou se possa "voltar ao lugar perdido/ e esperar por algum sol" (pág. 62).
Não fui adiante.
Nem o áspero progresso
nem o lírico amanhecer.
Voltei sobre meus passos.
Pedi perdão quantas vezes foi preciso.
Re-considerei
sideras minhas,
antigas estrelas novas.
Me desculpei de travas rudes
que se soltaram.
Refiz o que precisava.
Desmanchei a teia de Penélope
pra me trazer - Eurídice - de volta.
(pág. 65)
Foto: arquivo pessoal
Finalmente, em Exorcismo (5), é hora da revolução do feminino - quando a crueldade do mundo machista exige de toda mulher o levante, a resistência, a reação "das mãos que fiam e bordam/ e aceitam as palavras/ e servem os senhores (...)" (pág. 76). Mesmo que doa, que ardam os pés "sobre brasas vivas" (pág. 78), é hora de deixar "crescer as unhas" (pág. 79) e rasgar, "enfim, suas gargantas" (pág. 79)! Porque há que cumprir seu destino, mulher - para, finalmente, a exemplo de Sísifo, "rir dos carcereiros" (pág. 85), e finalmente "poder começar a viver" (pág. 86)!
Meus pés são de Peixes.
Minha Lua também.
Nenhum príncipe jamais poderia calçar neles
sapatinhos de cristal.
É por isso que eu serei eternamente a Gata Borralheira.
Faz de conta que é mais divertido.
Er(r)a uma vez...
(pág. 77)
LÍGIA SAVIO nasceu e reside em Porto Alegre/RS. É professora de Português, Francês e Literatura, área em que prestou mestrado e doutorado. Participou de antologias de contos e poemas (Teia contos, Teia 2, Paisagens), além de publicar em jornais e revistas literárias, integrando-se ao movimento alternativo ou independente das artes na década de 70. Além de Fios de aço (2019), é autora do livro No dorso da palavra, publicado em 2018 pela editora LiquidBook, de Porto Alegre/RS.
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