Cinco poemas de Mariana Belize | "De dentro das revoltas submersas"
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Cinco poemas de Mariana Belize
"De dentro das revoltas submersas"
billie
lavo os pratos do jantar
enquanto Adorno fala pausadamente
sobre a dialética, a indústria cultural
e reclama do jazz
que toca baixinho na sala de estar
somente Benjamin
sorrindo
relega a si mesmo a tarefa
tediosa
de secar os talheres
e me dizer entre sussurros
"pegue o bebê inseto e vá dormir...
Theodor não vai
parar
de
falar
de
si"
Janis
de gota em gota
o filtro enche a garrafa miúda
pacientemente aguardo
barriga na beira da pia
enxaguando um copo
entre sabão e sangue, deliro
tento sair desse
dia
que é apenas mais um
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Em junho
é a verdade que eu sonho:
ontem apontei pra igreja de são joão de meriti
e assumi a cidade inteira como estado de
emergência
gritei que a baixada fluminense é uma coisa que
vai invadindo a gente
aos poucos e nascer aqui não é estar aqui
a baixada fluminense é uma parada que vai rolando
dentro da gente
aos poucos, rolar essa pedra, essas rochas
as pedras do meio do caminho entre Belford Roxo e
Nova Iguaçu
uns que esta terra pariu estão longe
são doutores envergonhados
empurrando seu japeri, uma seropédica real
impossivelmente real,
com um rei na barriga
a baixada fluminense é meu coração em brasa
foi assim que larguei mão dele:
o meu desejo ridículo de ser leblonense
e copiar os cabelos das donzelas
dos mausoléus botafoguenses
larguei tudo na avenida nossa senhora de
copacabana
e a urca brilhou nos olhos do meu desejo traído,
enfim
diamantes de sangue, beijo de fel
o bom filho pródigo ao lar retorna
e renasce do ventre, de outras águas
a baixada fluminense é um espírito santo
que me toma por inteiro:
meu divino estado de emergência
meu tamanho estado de emergência
meu sinistro estado de emergência
a minha carapaça, minha terra
meu céu
Eu
olhei pra frente
encarando os vitrais flamejantes de são joão de
miriti
os olhos de Gaia, a explosão áurea da tarde
esfacelando
grito
um raio que partiu brasília em duas
crateras
veio de múltiplos lamentos
as mulheres não só afundam navios, Ana Cristina
como derrubam déspotas
e salvam crianças.
Não há sequer um príncipe, um rei, um presidente
nesse mundo.
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Retrato
surda aos encantos europeus
impassíveis diante dos gritos
as estrelas apodrecidas e sem encanto
deste quatro de julho tão esquisito
dentro do golpe
cega aos palavrórios franceses
entristecidos nos livros abandonados
entre balzac a rimbaud, eu desabo.
impossíveis as desculpas dentro das revoluções
nós aguardamos ainda a greve geral
constrangidos
acompanhamos a marcha invencível.
não é francês o rapaz que me atende no metrô
da pavuna
nem é inglês o que o trem de japeri gritou
e solano traduziu.
em todo mundo, nossa herança
é alguma coisa entreouvida
de dentro das revoltas submersas
desse inverno em que me despeço
do cansaço de bibliotecas intraduzíveis
para este mal-estar tropical.
Figueira
trabalho ouvindo o cachorro ressonando
perto da porta, ele tão com os olhos de cão
agora fechadinhos, respira tão levemente
diferente de quando me morde e abana o rabo
uma alegria que só dele, às vezes, poucas vezes
me contamina e tira meu corpo de uma letargia
o cachorro nunca será meu
pois é do mundo, e o mundo
é todo dele
o que será que sonha o cachorro
com essa existência invejável
de tão plena?
eu sigo trabalhando e
na tentativa de ser mais cachorra,
junto minha respiração à dele
quem era eu tão plena na vida!
quem dera dormir sem sonhos
por não necessitar de fugas...
quem dera aninhar-se à porta
ressonando
e ser cachorra por todas as vidas.
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