Divina Leitura | "Made in Brasil": o romance transcultural e translígue de Sílvia Schmidt
Coluna O2 |
Made in Brasil: o romance transcultural e translígue
de Sílvia Schmidt
_ por Divanize Carbonieri
Made
in Brasil (2019) de Sílvia Schmidt é um livro intrigante. A
princípio parece ser escrito dentro de um ultrarrealismo. A impressão que temos
é a de que Sofia, a protagonista, poderia ser uma amiga nossa cuja história nos
é contada por uma terceira pessoa, uma outra amiga talvez. A história se passa
em 2003 e relata a viagem de Sofia da Inglaterra para os Estados Unidos para
ajudar o irmão e a cunhada grávida. Os eventos ficcionais e a forma aparentemente
despretensiosa com que são narrados se assemelham às histórias de viagem que
certamente já ouvimos de várias pessoas.
Os diálogos, bastante
presentes, também são muito similares às falas que mantemos em situações
parecidas:
_
Meu irmão, que voo magnífico eu fiz! Cortar o Atlântico e todos estes estados
em uma única viagem, deixando o Reino Unido tal qual uma formiguinha lá para
trás, é realmente a forma mais prática de aprender geografia. Um voo diurno
cinematográfico. E que alegria ver você, parece-me cansado. Ah, e aquelas
montanhas geladas, este deserto imenso que cortei até aqui, o Pacífico... Quero
conhecer tudo, por favor (SCHMIDT, 2019, p. 16).
O realismo está
intrinsicamente ligado à constituição do romance, principalmente o de língua
inglesa. Ian Watt (1957) localiza a origem do romance na Inglaterra do século
XVIII, sendo engendrado concomitantemente à Revolução Industrial. A partir do
exame de obras escritas nesse período, ele traça as principais características
do que vai chamar de realismo formal, entendido como um modo narrativo, o que
não deve ser confundido com o movimento histórico-literário do Realismo,
ocorrido aproximadamente a partir da segunda metade do século XIX. Entre tais
aspectos, destacam-se o tempo cronologicamente representado, a verossimilhança
dos espaços e a linguagem referencial, construída para não chamar a atenção
sobre si mesma, mas para criar a ilusão de que estamos diante de uma história
real.
O realismo formal avançou
pela história do romance de língua inglesa a dentro. Na literatura estadunidense,
esteve presente até durante o Modernismo. Autores modernistas, como Scott Fitzgerald
e Ernest Hemingway, são famosos por seu estilo realista, sobretudo o segundo,
cuja narrativa lembra inclusive a linguagem jornalística. Mesmo na atualidade,
muitos romancistas norte-americanos ainda apresentam essa forma mais direta e despojada
de narrar.
Tal digressão foi necessária
para compreendermos o estilo empregado por Schmidt, que, apesar de ser
brasileira (e as literaturas de língua portuguesa seguem diferentes tradições e
trajetórias), parece ter bebido na fonte do realismo formal. Sua construção
narrativa se assemelha àquela encontrada em muitos romances norte-americanos
contemporâneos. Uma vez que o enredo de Made
in Brasil se passa todo nos Estados Unidos, mais precisamente no estado do
Oregon, uma escolha estética desse tipo ajuda a trazer ainda mais credibilidade
para a história.
Contudo, como foi dito
acima, essa é apenas uma impressão inicial. Não que o modo narrativo realista
não se mantenha, em grande medida, até o final, mas ele parece ser
transgredido, em vários momentos, por procedimentos de ruptura. O primeiro
desses procedimentos talvez seja a própria linguagem empregada, referencial
sim, mas já transida de um translinguismo bastante contemporâneo, característico
da atualidade, uma época de grandes deslocamentos e migrações.
Sofia e seu irmão Juliano
são brasileiros que vivem na diáspora, ela, até o começo da narrativa, na
Grã-Bretanha, e ele, como um imigrante ilegal em território americano. Jacqueliny
ou Jack é a companheira de Juliano (não são legalmente casados), que espera o
primeiro filho do casal. Apesar de americana, Jack é uma praticante de
capoeira, ama o Brasil e sabe falar português. Dessa forma, sobretudo nos
diálogos, a linguagem do romance é tecida a partir de trânsitos entre inglês e
português, sendo que o português de Jack é diferente do falado pelos irmãos.
Sofia, que ainda está em processo de aprendizado, também parece ter um inglês diferente
daquele falado pelo casal.
_
Hahaha eu tomar sol caminhando quando sol abre mais tarde. Nem sempre, mas
viajamos para o litoral da costa leste, Atlântico, não faz muito tempo, e lá é
mais quente, pudemos nos divertir um pouco. Você vai ver, hoje é dia de
Thanksgiving e vamos a uma festa. Seu irmão não quer ir, disse que não gosta da
reunião porque todos fumam muito. Você tem problema com marijuana Sofia?
_
Ei, é mesmo assim tão liberado? Não fumo, mas que bom saber que hoje é dia de
Ação de Graças. Let’s say thanks. I’m here, I’m Thanksgiving, may I say Jack?
_
Yes, course, you are welcome. Let’s party tonight and say Thanksgiving to all,
Sofia (SCHMIDT, 2019, p. 23).
O hibridismo da linguagem se
espalha para as diferentes concepções de mundo e culturas. Juliano aproveitou o
exílio autoimposto para se aproximar de suas raízes judaicas perdidas no
Brasil. É um homem um tanto conservador que espera formar uma família
tradicional, com esposa e filhos, e se questiona se Jack é a mulher certa para
isso.
Sofia é uma espécie de livre
pensadora, tem muito conhecimento a respeito de várias religiões, mas não segue
efetivamente nenhuma. Ela também manifesta uma visão crítica da guerra contra o
Iraque, impetrada pelos Estados Unidos, e da política no Brasil, além de um
ponto de vista humanitário a respeito de diversas questões sociais, como o
feminicídio, por exemplo. Por essas características, desempenha o papel de
mediadora, não só entre o casal, que está em crise, mas também entre a leitora
e a narrativa, sendo a consciência central do romance.
Jack, por sua vez, é uma
americana contemporânea, sem estreitos laços familiares e sem ter aprendido o
que Juliano espera de uma esposa tradicional, como cozinhar e cuidar da casa. Além
disso, é uma seguidora da religião matriarcal da Wicca, o que muitas vezes é
sentido como um problema em seu relacionamento com Juliano.
O segundo procedimento a
quebrar as barreiras do realismo formal é a inserção de passagens do roteiro
que Sofia está escrevendo, cuja história se passa muitos anos à frente, em
2018. A personagem principal do roteiro é ela própria, que viaja de São Paulo à
Califórnia para participar da cerimônia do Óscar, uma vez que seu filme foi
indicado para concorrer como melhor película estrangeira. Vemos que não é uma
simples inclusão da linguagem cinematográfica – o que também acontece –, mas um
recurso metaficcional em que uma história aparece imbricada na outra, como uma
espécie de fractal narrativo.
Narração
em off
“Uma
lei recente colocou o feminicídio na lista de crimes hediondos e o tornou
homicídio qualificado, com penas mais altas e, dependendo do caso, agravantes,
em situações em que a violência ocorre com vítimas grávidas, menores de idade
ou na presença de filhos, por exemplo.”
corte
créditos e trilha sonora
A lei do feminicídio no
Brasil foi promulgada em 2015 pela presidenta Dilma. Escrevendo em 2003, mesmo
projetando sua história anos adiante, Sofia não tem como adivinhar o futuro. Há,
então, um rompimento da verossimilhança que alarga as possibilidades da
narrativa, fazendo com que ela não possa mais ser abarcada apenas pelo realismo
formal.
O terceiro e último
procedimento que discutiremos é a presença de um final aberto para a história,
ficando a cargo da leitora decidir o futuro das personagens. O seu
posicionamento e as suas ações também parecem bastante dúbios às vezes, não
sendo tão fácil entender uma personagem sob um único viés. Dessa forma,
principalmente quando o romance se aproxima de sua conclusão, há muitas
possibilidades de interpretação que certamente variarão de leitora para
leitora.
Made
in Brasil é um romance diferente, transcultural, translíngue e pós-moderno,
além de socialmente crítico. Essas caraterísticas surgem até no título, que não
traz a grafia de Brasil com z, conforme seria o correto em inglês. A
convivência religiosa pacífica também surge como um dos pilares do enredo. E as
negociações constantes entre valores culturais e religiosos movem as
personagens. Ademais, a narrativa aberta permite uma leitura interativa,
quebrando expectativas de estabilidade quanto aos significados. Por todas essas
razões e por muitas outras, é um romance que merece ser lido e relido.
Referências
SCHMIDT, Sílvia. Made in Brasil. Poços de Caldas: Símbolo Artesanal (edição da
autora), 2019.
WATT, Ian. (1957). A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Divanize, que resenha maravilhosa! Uma leitura de crítica literária apaixonada e grande conhecedora do gênero. Obrigada por compartilhar conosco a sua leitura de "Made in Brasil".
ResponderExcluirDiva, é bom ler resenhas embasadas e para além do "gosto pessoal" de quem escreve. A gente acaba aprendendo na leitura. Obrigada. ❤
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