Divina Leitura | O processo de morrer em "Alguém pra segurar a minha mão" de Giovana Damaceno
Coluna 03 |
O
processo de morrer em Alguém pra segurar a
minha mão
de
Giovana Damaceno
- por Divanize Carbonieri
Não sei redigir resenha sobre
livro-reportagem. Não vou fingir que sei. Não tenho nem mesmo certeza quanto ao
termo correto. Será que o melhor não seria dizer “jornalismo literário”? Se
estou usando conceitos ultrapassados, peço desculpas. Mas quero escrever sobre
o livro de Giovana Damaceno, Alguém pra
segurar a minha mão (Penalux, 2020), porque foi uma leitura que me tocou.
Quando pensei em criar esta coluna, “Divina
Leitura”, o que tinha principalmente em mente era apresentar às leitoras livros
de que tivesse gostado e incentivar novas leituras. Aqui não tenho objetivos
acadêmicos, que reservo para outras instâncias das minhas atividades. É claro
que, após tantos anos na academia, é quase impossível que um texto meu não
venha a ser contaminado por algum academicismo. Mas, nesta coluna, quero
realmente escrever de forma mais acessível e fluida.
E esses são os principais atributos do texto
de Damaceno (olha aí o academicismo que me impede de chamar as autoras pelo
primeiro nome, paciência): acessibilidade e fluidez. Produzir uma narrativa
assim pode parecer fácil, mas, na verdade, é coisa de mestras. Quem assim o faz
é porque já leu e escreveu muito na vida.
Em Alguém
pra segurar a minha mão, Damaceno relata sua experiência acompanhando, na
qualidade de jornalista, a equipe do Serviço de Atendimento Domiciliar de sua
cidade, Volta Redonda. São profissionais de saúde de diversas áreas que trabalham
sob os parâmetros de uma especialidade médica relativamente recente: a Medicina
Paliativa ou de Cuidados Paliativos (reconhecida pelo CFM em 2011):
um
corpo de saberes estruturado para o processo de morrer, dedicada ao que ficou
conhecido como uma boa morte, por ser humanizada, tanto do ponto de vista de
amparo ao paciente terminal em todas as suas necessidades, como no apoio à
família (DAMACENO, 2020, p. 30).
Na prática, é um esforço de desospitalização
de pacientes que não têm a perspectiva de cura para que possam ter seus últimos
momentos em casa, junto com a família, e não entubadas numa UTI. O objetivo é
amenizar o sofrimento da doente e de suas familiares e melhorar a qualidade de
todas. O livro de Damaceno nos apresenta o cotidiano dessa equipe em suas
visitas semanais e às vezes diárias às pessoas cadastradas no programa.
No primeiro capítulo, ela faz um breve
histórico dos Cuidados Paliativos no mundo e no Brasil, mostrando a mudança de
mentalidade que foi ocorrendo em várias instituições de saúde, ainda que mesmo
atualmente essa prática esteja longe de ser a mais aceita entre a maioria:
_
Nos hospitais e unidades de saúde, em geral, a ordem é manter o indivíduo vivo
a qualquer custo, ressuscitar, reanimar, pois a morte ainda parece expressar o
fracasso da equipe – assevera o médico José – Mesmo que haja consenso de que o
paciente não retornará mais à vida e de que seu processo é terminal, não é
permitido que passe por esse período de forma tranquila e natural. Ao
contrário, ele é mantido conectado em aparelhos que o mantém vivo
artificialmente, estendendo seu próprio sofrimento e o da família (DAMACENO,
2020, p. 33).
O médico José, nesse trecho inicial identificado
apenas pelo primeiro nome, será o único da equipe a ter sua identidade completa
revelada. Trata-se de José Antônio Pereira Fernandes, a quem é quase impossível
não admirar a partir do relato de Damaceno, que expõe, por meio de diálogos, as
principais ideias do médico, que, por sua vez, parece sempre estar seguro dos
benefícios do programa, mesmo quando outras pessoas, diante da situação extrema
da morte, se enchem de dúvidas ou mesmo se desesperam.
Damaceno é também uma talentosa ficcionista.
Isso é possível perceber nos contos que ela escreve e publica em seu site e em
revistas literárias. É claro que esse talento aparece também em seu
livro-reportagem. José ganha os contornos de um protagonista de romance. A
princípio parece até idealizado, tão abnegado é seu comportamento, conforme
Damaceno vai descobrindo.
A
todo momento, em nossas entrevistas, José destacava a riqueza das relações com
os pacientes. Como diz, ele nasceu para esse trabalho e garante ver beleza e
poesia na rotina com os doentes. Pode estar em casa, numa festa, numa reunião
ou qualquer encontro com amigos. A hora que for, onde estiver, se receber um
chamado, larga tudo e vai atender (DAMACENO, 2020, p. 60).
Com várias informações como essas, traçamos
um perfil quase sobre-humano da “personagem”. Mas, como boa contista, Damaceno
não dá ponto sem nó. Em alguns momentos quase imperceptíveis, descortina outros
aspectos a respeito da personalidade de José. Um exemplo é a declaração da
fisioterapeuta Maria, que surpreende a jornalista e a nós também: “_ Eu tinha
pavor dele! – Maria continuou – Todo mundo dizia que ele era bravo, intragável
e intratável” (DAMACENO, 2020, p. 123).
Em outros momentos, é a própria escritora que
nos faz ver que ele é direto demais nas conversas com as pacientes, o que às
vezes beira a crueldade. Também, apenas no final do livro, ela revela a idade
de José, o que, pelo menos para mim, foi um choque, já que o imaginava bem mais
jovem, em virtude do vigor que parece demonstrar. De qualquer forma, é inegável
que se trata de uma pessoa ímpar e bastante dedicada ao cuidado com o outro, um
médico que, na maior parte do tempo, exerce sua profissão com amor.
Nos demais capítulos, Damaceno vai se
concentrar em três pacientes e seu atendimento: Marina, Jaime e Esther. Como se
trata de um livro sobre o processo de morrer, creio que não há spoiler em dizer que vão morrer no fim
dos relatos a seu respeito. Contudo, tudo indica que Damaceno vai nos
preparando para isso. Mesmo antes de se deter na primeira doente, Marina, houve
pinceladas rápidas a respeito de outras pessoas atendidas. Marina tem um
tratamento narrativo mais demorado do que quem apareceu antes; Jaime, mais do
que Marina; e Esther, mais ainda.
Essa aproximação gradual com a morte,
conseguida graças à maestria de Damaceno, se assemelha à da própria pessoa que
está no centro dos eventos, já que o morrer é um processo lento, quase
cotidiano e, sem dúvida, acumulativo. E, na verdade, é assim para todas e não
só para quem tem um diagnóstico de câncer terminal. Em nenhum instante, a
narrativa se torna deprimente. Ao contrário, a autora realmente consegue falar
de algo que ameaça toda a humanidade de maneira, não diria leve, mas plena de
suavidade. Não choro fácil, mas, principalmente no episódio referente à Esther,
não tive como segurar as lágrimas. A própria jornalista parece se envolver cada
vez mais com os casos retratados.
O livro tem certamente o mérito de tornar
mais claro algo que ainda parece ser difícil de aceitar para a maioria das
pessoas: que morrer é tão natural quanto nascer. E que a medicina, por mais
avançada que seja, não faz milagres e não pode afastar a morte para sempre.
Referências
DAMACENO, Giovana. Alguém pra segurar a minha
mão. Guaratinguetá: Penalux, 2020.
Que lindo texto Diva, parabéns! 👏👏👏
ResponderExcluirExcelente texto! Muito bem escrito e envolvente. Parabéns pela divulgação do livro!
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