Para não dizer que não falei dos cravos | Poemas e videopoemas de Rogério Bernardes
Coluna 02 |
DIPLOMA
Fora o barulho do ar-condicionado
tudo a incomoda.
Os olhos dançam nas órbitas
em busca de um ponto fixo
enquanto as mãos tremem.
O pensamento vai longe
e nada pesca na volta
se é que já voltou.
Não há pílula
não há café
não há baseado
não há bíblia
não há novela
não há coxinha nem mortadela
a geladeira e a rede social
foram esvaziadas antes
não há fome nem conflito.
Não mais!
Fora o barulho do ar-condicionado
nos minutos finais o silêncio se apodera
o calor é só lá fora
dentro é frio
a caneta é fria
o papel é frio
o recado é frio.
Na gaveta aberta
no lugar do diploma nunca usado
duas linhas perfurantes
e um só alvo:
o abusador.
Na manhã seguinte
quando o primeiro dia da ausência
arrombar a porta
o ‘porque não!’ der lugar ao ‘por quê?’
as surras cederem à solidão
a ‘puta desgraçada’ não ouvirá
o ‘volta, meu amor!’
tarde demais para ele
nunca tão tarde para ela.
Remorso não move ponteiros
para a esquerda.
No vácuo do dia seguinte
não há som nem dor
para quem foi embora.
Longe dali
uma mala é aberta
acima das poucas roupas
o diploma nunca usado.
Amanhã ela fará curriculum vitae
o vazio no quesito ‘experiência anterior’
esconderá o inominável:
os anos trabalhados em humilhação
o mestrado em abuso
a especialização em dor.
Não mais importa!
A liberdade é um cubículo
com uma única janela
voltada para silêncios
que são pura ópera.
Fora o barulho do ventilador
nada mais a incomoda.
(in: Cinzas de fazer fênix – Penalux, 2019)
LÁZARO
Feche as portas no escuro e me deixe caído
e eu ainda me levanto
cubra os espelhos e quebre todas as lâmpadas
e eu ainda me levanto
aponte o dedo para mim e me deixe de joelhos
e eu ainda me levanto
conte mentiras e me humilhe até o pranto
e eu ainda me levanto.
Pedras, tocos, ferro ou cuspe
fogo, água, sangue ou pus
palmatória, pau-de-arara, choque, agulha ou cruz
e ainda assim eu me levanto.
Arranque os meus cabelos
queime as minhas mãos
chute o meu traseiro
corte a minha pele
fure o meu crânio
e eu lamento lhe dizer. . . eu me levanto.
Pois antes de ser infame
eu já era ideia
antes de ser fome
eu já era alimento
antes de ser nada
eu já era palavra.
E a palavra, meu pobre homem
a palavra é leve, e fluida, e etérea
a palavra é além da dor
a palavra é logo depois do amor.
Depois do amor
todos os mortos se levantam.
(In: Cinzas de fazer fênix – Penalux, 2019)
Lu Valença |
PRAÇA DOS POMBOS
Espantou os pombos da praça
com bater de palmas
e passos apressados.
Havia alguns grãos de milho
e o estômago vazio
não era de pássaro.
Tornou-se o mais sujo
entre os pombos.
Do homem que foi
além da falta de asas
só restou a fome.
Também o espantavam
mas ninguém lhe dava milho
ainda que à noite
o único pombo fosse ele.
(In: Cinzas de fazer fênix – Penalux, 2019)
OS PEIXINHOS
Ainda ontem
Peixinhos beijavam os pés sujos
E cansados do menino
Que fugiu do cinto e do espanto.
Enquanto o sangue e a lama se diluem
No tanque de lavar verduras do avô
Cabem naquele quadrado
Um tubarão-branco
Uma tartaruga de Galápagos
E estrelas-do-mar do Caribe.
Naquele tanque minúsculo
Sobra espaço para a imaginação
E tudo que ela desconstruir:
O estômago vazio
As feridas da surra injusta
As lágrimas que no futuro
Serão mágoa e fortaleza.
No tanque de pedra com água
Fria minada do poço
Caberá toda uma vida
Destinada a fazer dos peixinhos
Que nunca existiram
O ideal de um adulto
Cujo sonho de criança
Era apenas esquecer.
A memória é o aquário da alma.
(In: Cantigas de ninar dragões – Penalux, 2017)
MICROCOSMO
gosto das pequenas narrativas
que guardam um mundo dentro delas
um microconto oceânico
um haikai buraco-negro
um silêncio que come tudo em volta
seduzo-me fácil na imensidão
dos micro-organismos
e invejo o infinito
de uma mãe que perde o feto
mas vai envelhecer com ele formado
comprando casa e dando netos
na vastidão do peito dela
o gigantismo das formigas
me fascina
a extensão do eu te amo
num guardanapo antes da tragédia
tem mais páginas
que um compêndio de atrocidades
do homem na história
gosto das pequenas narrativas
é nelas que cresço pra dentro
das minhas reticências
é delas a esperança
de que um único grito
faça a revolução
e possamos voltar à grandeza
de todas as mães interrompidas
(In: Não servirei de alimento aos abutres – Penalux,
lançamento em breve)
Lu Valença |
Diva, que cravo você nos trouxe!
ResponderExcluirDe uma sensibilidade ímpar! Extremamente comovida!
"gosto das pequenas narrativas
é nelas que cresço pra dentro
das minhas reticências"
"gosto das pequenas narrativas
ResponderExcluirque guardam um mundo dentro delas
um microconto oceânico
um haikai buraco-negro"
um silêncio que come tudo em volta