Um conto de Érika Gentile | "Dor"
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Um conto de Érika Gentile
Dor
Eram pretas as saias que varriam o chão, como asas
de urubus. O homem vociferava pelos corredores com um livro nas mãos. Ela estava distraída. Ele
bradava contra os pecados, a voz era muito forte, os braços gesticulavam
enquanto andava entre as fileiras de mulheres ajoelhadas, cabisbaixas, retendo
suspiros ...” Porque fizeste isso, serás maldita “.... Ela pensou no João, atrás do paiol, nos
corpos deles se esfregando no muro, mas não se mexeu. A veste soturna rodopiava
vigorosa e o padre inquiria com olhos agudos.
Agora já não estava de joelhos, mas de quatro, no
piso, um corredor imenso, vermelho, irregular. Encerava ladrilho por ladrilho.
Outra saia veio até ela. Olhou sua barriga avantajada. A saia era branca. Já
está quase no fim. Não soube se falava da barriga ou do corredor.
Não tem mais saias, apenas a sua mãe mexendo o doce
de goiaba na panela. O doce é vermelho, mas as toalhinhas continuam brancas.
Procurou dona Cidinha Toco de Açougue. Moça direita
não fala com ela, moça direita não sabe o seu nome. Dona Cidinha não pode
ajudar. Deixou passar três regras. Se tem perigo para você, tem perigo para
mim.
Cinco amigos do João vão dizer que estiveram com
ela no paiol. João tomou o trem. João foi
para a Capital. João é muito jovem. João tem planos. João vai ser
doutor.
No escuro, lampejam os olhos furiosos do seu pai,
cintilam as lágrimas silenciosas de sua mãe. Rins quentes, eu avisei que ela
tinha rins quentes. A boca sangrando de sua mãe. Ela não. As toalhinhas estavam
brancas.
A estrada era comprida e esburacada, a mãe foi
ficando pequena na porteira, só o fio de sangue lhe escorrendo pela boca, o
carro sacolejava pelos buracos, a poeira vermelha fechava o horizonte, o corpo
tremia todo e as toalhinhas permaneciam brancas.
Porque já não havia regras foi se acostumando com o
movimento involuntário do seu ventre. Ousou um nome. Atreveu-se a ansiar. De lã
furtada fez casaquinhos. Súbito, vinha aquela tristeza de séculos ressuscitar a
lembrança de sua mãe esmaecendo na paisagem, os olhos de repulsa do seu pai, o
desencargo de João. O tormento de pensar era tão grande, que ela se concentrava
nos ladrilhos vermelhos do imenso passadiço.
Sentiu o espasmo saindo lá do meio das costas,
pequeno e depois intenso, “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto: darás
à luz com dor teus filhos”, a ira do clérigo ressurgindo de outras vidas.
Tudo estava rebentando, um rio saindo pelas suas pernas abertas, a luz branca
no teto e o grito para fazer força.
Uma menina
escarlate surgiu no alto, tinha a cara amassada e os cabelos revoltos e
lambuzados. Gritava com a força e a raiva de todas as mulheres do mundo. Um
homem a segurava pelos pés.
Ela estendeu os braços, queria alcançar a menina
que pairava no ar.
Vestida com um véu branco, apareceu outra mulher.
Não era a Virgem Maria, mas, com a pujança de legítima autoridade, recitou a
sua infinita danação.
- Não é sua. Não vai ficar com ela, Domitila.
E o mundo, desalinhado, inundou de vermelho as
imaculadas toalhinhas.
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Muito lindo, parabéns Érika!
ResponderExcluirTocante , como tudo que Érika escreve. Sempre com a alma ❣️
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