Divina Leitura | As multiplicidades de "Santuário" de Maya Falks
Coluna 05 |
As multiplicidades de Santuário de Maya Falks
O primeiro aspecto que me chamou a atenção ao
ler Santuário (Macabéa, 2020) de Maya
Falks foi a questão do gênero. A princípio, julguei se tratar de uma novela,
levando em consideração a definição clássica presente em Massaud Moisés (2000):
narrativa episódica, constituída por uma pluralidade de células dramáticas com
diversos conflitos – ao contrário do romance, que, mesmo podendo ter vários
conflitos, apresentaria uma célula dramática principal, aquela do protagonista.
Além da pluralidade dramática, a novela, segundo Moisés, ainda seria
caracterizada pela sequencialidade, com as células dramáticas se organizando
numa sucessão, com cada episódio contendo começo, meio e fim em si mesmo,
geralmente numa ordenação cronológica dos eventos ficcionais.
E aqui surge talvez a primeira dificuldade para
entender o livro de Falks apenas como uma novela: os eventos não se organizam
em ordem cronológica. Ao contrário, o tempo narrativo vai e vem, às vezes com o
intervalo de vários anos. Personagens também reaparecem em segmentos
posteriores àqueles em que foram inicialmente introduzidas. Não parece existir
uma célula dramática principal, mas os inúmeros conflitos se organizam em torno
de um eixo temático que envolve a violência e as mazelas humanas.
Nesse caso, a construção episódica também poderia
tornar plausível a classificação do livro como uma coletânea de contos, em que
cada capítulo funciona como uma narrativa curta individual. E a unidade temática
e a retomada de personagens e seus conflitos permitiriam talvez compreendê-lo
como um romance (de natureza episódica e paratática, com vários protagonistas).
Tal multiplicidade de possibilidades para o gênero da obra não é algo tão
imprevisto, principalmente tendo em vista que:
Quando
os contornos entre os gêneros se esmaecem, a nomenclatura que os designa fica
confusa, porque tratamos de textos com muitas características comuns. Assim, a
novela [...] seria um gênero que em alguns aspectos é fronteiriço com o romance
e em outros, com o conto (OLIVEIRA, 2010, p. 141).
De qualquer forma, em Santuário, Falks borra as fronteiras entre os gêneros de modo que
nenhuma classificação pode ser considerada definitiva. O resultado é uma
espécie de gênero deslizante entre o conto, a novela e o romance.
Um outro elemento bastante relevante nessa obra
é o espaço. Santuário é um daqueles
livros cujo título se refere a uma espacialidade e não a uma personagem ou
situação. Em narrativas do século XIX, sobretudo de língua inglesa, tal
denominação era bastante comum, num esforço de situar as personagens em algum
espaço, se não realmente existente, pelo menos verossímil. As propriedades que
nomeiam os romances de Jane Austen, por exemplo, são fictícias, mas criadas de tal
forma que sua existência parece bastante possível dentro da “Inglaterra
pequena” que Franco Moretti (2003) foi capaz de identificar ao analisar seus
espaços recorrentes: a região rural ao sul do país, contrastando com o norte
mais industrializado.
O método de Moretti é desvendar a geografia
literária do romance europeu, traçando mapas para evidenciá-la.
Em
primeiro lugar, [os mapas] realçam o ortgebunden,
a natureza espacial das formas literárias: cada uma com sua geometria peculiar,
suas fronteiras, seus tabus espaciais e rotas favoritas. Em seguida, os mapas
trazem à luz a lógica interna da narrativa: o domínio semiótico em torno do
qual um enredo se aglutina e se organiza (MORETTI, 2003, p. 15).
Falks se adianta e apresenta ela mesma o mapa
de Santuário, contido nas contracapas
do livro. A cidade, com seus bairros e ruas, se estabelece como o elemento
aglutinador de todos os enredos envolvendo as personagens. Assim, a lógica
interna das narrativas de maior destituição pressupõe que elas se passem principalmente
nos bairros de Matagal (a zona rural de Santuário) e Redenção (a espécie de
favela à beira do abismo). Talvez não seja demais ressaltar que ambas as
comunidades se localizam nos extremos da cidade, funcionando como contrapartes
centrífugas para a força centrípeta exercida pelo centro urbano.
Em Matagal, se inicia a trágica história de
Paulina, Pôncio, Renato e Leôncio, talvez aquela com mais segmentos dedicados
ao seu desenvolvimento. Filhos de pequenos agricultores, eles não podem
escolher as próprias profissões, que são determinadas pelo pai: “As nossa
decisão são esta: queremo um moleque dotô, um moleque engenheiro e um moleque
que nos uma com o Todo Poderoso” (FALKS, 2020, p. 13). Paulina não é mencionada
nessa declaração, mas está desde sempre pressuposto para ela um casamento
arranjado pela família. Contudo, a saga dos irmãos irá se descortinar no
sentido oposto ao do vaticínio paterno, com exceção talvez de Leôncio, que
realmente se torna padre. Ainda que abandonem Matagal, tal abandono não se dá por
boas expectativas nem os conduz para um contexto mais feliz.
Em Redenção, por sua vez, desenrola-se a
narrativa em torno de Maria, Jeremias e Tiago, que formam uma espécie de
triângulo amoroso.
O
bairro era, na verdade, um gigantesco terreno delimitado por um gigantesco
abismo. A vista do quarto de Maria era deslumbrante, mas o lugar era tão
perigoso que só morava lá quem nem no Matagal, o bairro rural da cidade,
conseguira adquirir seu casebre (FALKS, 2020, p. 91).
Apesar do pouco valor, Redenção desperta o
interesse de poderosos especuladores imobiliários. Da mesma forma, Maria, uma
moça pobre e sofrida que ali reside, atrai a atenção e o amor de dois rapazes
de melhor situação econômica. Mas nem com muita boa vontade o abismo (social e
geográfico) pode ser transposto, já que uma vida de pobreza extrema cobrará afinal
o seu preço. É como se a lógica interna de cenários como Matagal e Redenção
exigisse narrativas de grandes dificuldades e não raro desfechos infelizes.
No Centro, acontece a trama referente às gêmeas
Pit e Bull (ou Letícia e Cátia), oriundas também de Matagal, mas que fingem
para a cidade toda que são ricas. A região central, então, aparece como um
cenário capaz de servir como um trampolim social: “Eventualmente, acontecia de
aparecerem romeiros ricos – casados ou não – para quem se ofereciam – com
classe, mas se ofereciam – na intenção de arranjar uma legítima fonte de renda:
casamento ou pensão” (FALKS, 2020, p. 20). Porém, assim como elas enganam as
outras pessoas, também podem ser enganadas e ver seus desejos frustrados. Os
sonhos de ascensão social e riqueza fácil são mais possíveis de se realizar no
Centro, mas também é ali que se está mais exposta às falsidades.
Na geografia literária que Falks cria para Santuário, também se incluem verdadeiros
heterotopos. De acordo com Michel Foucault (1967), a heterotopia se refere aos
espaços “outros”, presentes em todas as cidades, organizados de uma forma que
contradiz e confirma os espaços urbanos oficiais. O Clube Naite, que é um
bordel, sem dúvida, é um desses cenários porque contraria a rígida moralidade
da pequena cidade, mas ao mesmo tempo a confirma, uma vez que não deixa de ser
um mecanismo de manutenção do controle sexual. As moças de família podem ser
castas porque há outra sorte de mulheres, posicionadas em locais separados, com
quem os homens podem dar vazão às suas “necessidades” sexuais.
Além do Clube Naite, outro heterotopo é o porão
presente na narrativa das jovens sequestradas por aliciadores:
O
fedor de urina e fezes era intenso, penetrante – achei que desmaiaria ainda na
escada e vomitei -, mas nada nos prepararia pra cena que veríamos em seguida: o
cômodo era um porão úmido e escuro, com quatro mulheres acorrentadas às paredes
de pedra, todas vestindo a mesma camisola que usávamos, só que imundas (FALKS,
2020, p. 84).
Mais uma vez é um cenário que contraria a
imagem de uma cidade pacata e sem grandes crimes – e que só pode parecer assim
porque seus males são sempre ocultados. Aliás, Santuário pode ser tudo, menos
pacata. Nas relações familiares, na política, no relacionamento entre homens e
mulheres e entre pobres e ricos, desenha-se uma estrutura violenta de dominação
e rebeldia.
Para concluir, afirmo que Santuário traz ainda uma multiplicidade de narrativas diferenciadas:
histórias de conflitos entre gerações, histórias românticas de amor impossível
ou trágico, histórias de suspense e terror, histórias de sobrevivência e até de
superação. Tal é o farto menu literário que Falks nos oferece, o que evidencia
seu domínio de vários gêneros e faz com que a leitura de Santuário seja uma grata experiência cheia de surpresas.
Referências
FALKS, Maya. Santuário. Rio de Janeiro: Macabéa, 2020.
FOUCAULT, Michel. Of
other spaces, heterotopias (1967). In:
(https://foucault.info/documents/heterotopia/foucault.heteroTopia.en/).
MOISÉS, Massaud. A criação literária: Prosa I. 16.ed. rev. São Paulo: Cultrix, 2000.
MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu 1800-1900. Trad.: Sandra Guardini
Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
OLIVEIRA, Peterson José de. Novela: um gênero
polêmico. Albuquerque: revista de
História, Campo Grande, MS, v. 2, n. 3, p. 135-153, jan./jun. 2010.
https://www.macabeaedicoes.com/pagina-de-produto/santuario |
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