Divina Leitura | Temas e Tramas em "Sem Açúcar" de Flávia Helena
Coluna 08 |
Temas e Tramas em Sem açúcar de Flávia Helena
- por Divanize Carbonieri
Sem
açúcar (2016) de Flávia Helena é composto por 27 contos, sendo que 19 têm
protagonistas mulheres, 5 têm protagonistas homens e 2 têm personagens trans,
que fazem a transição de um gênero para o outro. No conto "A cada qual o
seu quinhão", o papel de protagonista parece ser dividido entre os
personagens: a mãe, o filho e a filha. Entre as protagonistas mulheres, 4 são
idosas ou começaram a envelhecer e 2 são crianças. Entre os homens, 2 são
idosos ou envelhecem durante a narrativa e 2 são meninos.
Todos os contos
apresentam uma voz narrativa de terceira pessoa. O subjetivo é narrado não a
partir de dentro, como seria o mais esperado, mas de fora. Uma consciência
serena observa e apresenta personagens transtornados em ambientes e eventos
desfigurados. A vivência da dor não é dada por uma identificação direta, que
poderia seguir um imediatismo trágico e irremediável. Ao contrário, ela parece
ser reelaborada, revisada, reencenada, em busca de um difícil aprendizado. O
que se desenha nessas histórias é praticamente, então, uma pedagogia do amor e
da dor. Não é um ditame definitivo, mas a reavaliação de experiências
conhecidas e compartilhadas, plasmadas em composições plurissignificativas.
Uma
cleptomania do amor
Em
Sem açúcar, um dos principais temas é
o que se poderia chamar de uma cleptomania do amor. O amor é visto como algo
que rouba aspectos valiosos da vida das pessoas, como o calor, a doçura, os
fluidos do corpo e as direções da mente. Isso acontece de forma exemplar no
conto que dá nome à coletânea, "Sem açúcar". Nele, uma mulher passa a
comer formigas, sendo esse "o jeito que achou para diminuir o choro que a
consumia" (HELENA, 2016, p. 57). Das formigas comuns, tão pequenas que
parecem se desfazer logo na boca, gerando uma satisfação muito passageira, ela
passa às saúvas, maiores e mais suculentas. A ingestão de formigas torna-se uma
verdadeira obsessão para a protagonista, que não consegue mais executar suas
atividades normalmente. Aguenta com dificuldade o expediente do trabalho,
apenas para logo em seguida, sujar-se toda de terra à procura de suas presas.
Com o tempo, descobriu novas
espécies. Louca, faraó, fantasma, cabeçuda. Devorou todas. Cada vez mais.
Encontrou novos lugares. Buscava jardins, canteiros, vasos. Não tinha mais
hora. Acordava no meio da madrugada e sentava na terra procurando formigas. De
camisola. E comia até saciar a vontade.
Foi demitida, pois não conseguia
mais trabalhar durante todo o expediente. Abandonava o serviço para sair em
busca de suas presas (HELENA, 2016, p. 58).
O
problema é que as formigas engolidas devoram, além do choro represado, a sua
própria substância, seus líquidos e carnes. A mulher passa a murchar, e seu
rosto, pernas e braços vão ficando cada vez mais secos e enrugados. Um médico é
procurado, que diagnostica desidratação e falta de doçura. Prescreve cápsulas
de glicose e muito líquido. O tratamento não surte efeito. Então, é procurada
uma benzedeira, que recomenda que a moça tome cinco gotas diárias do orvalho
recém-recolhido de um bem-me-quer. Ela segue o conselho e para de comer as
formigas: "[m]as dor de amor não se cura de repente. Tem que ser aos
poucos. Se a gente prestar atenção, a pele do rosto já começou a desenrugar. E
ontem ela sorriu" (HELENA, 2016, p. 59).
Nesse
conto, apenas no trecho final, ficamos sabendo que a tristeza da protagonista
se deve à dor de amor. Assim, é o amor que está roubando tanto sua doçura
interna quanto os líquidos de seu corpo - e, consequentemente, da alma -,
deixando-a enrugada, seca. O orvalho do bem-me-quer parece ser um remédio mais
eficaz do que as cápsulas de glicose, porque o aspecto raiado da flor sugere o
caráter cíclico dos amores na vida de uma pessoa. Cada pétala retirada
representa uma rodada, que pode trazer o amor correspondido ou não
correspondido. Com várias rodadas, já se estaria pronto para enfrentar melhor a
perda de um amor. No entanto, a melhora é lenta, como em qualquer processo de
luto.
Em
"Sem açúcar", o ser amado não está presente na vida da protagonista,
e pode-se entender que é a sua ausência que parece trazer tanto sofrimento. Um
outro conto semelhante, mas já com uma diferença, é "Quando o coração
amarga", em que uma mulher conhece, na praça de sua cidade, um homem que
parece lhe atrair como um imã. A protagonista sente uma espécie de incômodo depois
de ter travado esse conhecimento, comparável à areia grudada em todo o corpo
num dia de praia, por exemplo, que só sai quando se entra na água. Depois de
alguns encontros, ela descobre que ele está ali para construir o novo hotel da
cidade, sendo o responsável pelo jardim. Ela decide mergulhar nesse
relacionamento:
Para ajudar, não tiraram a roupa. Ele abriu o cinto e o zíper da calça. Ela só precisou levantar a saia. Mas foi suficiente. Penetrou-a pelo corpo todo, até chegar ao lado esquerdo do peito. Espremeu-lhe o coração, fazendo escorrer um sangue quente pelas pernas.
E assim foi por muitas outras
vezes, com a diferença de que ela não sangrou mais como no primeiro encontro.
Só que de tanto ter o coração
cutucado, fez-ali um furinho. Até doía de vez em quando, mas ela não deu
atenção. Enquanto tivesse Antero, ainda que às vezes perdesse um pouco de
sangue, repunha tudo logo, sempre que se amassem (HELENA, 2016, p. 19).
Quando o hotel fica pronto, Antero vai embora sem se despedir. A partir desse momento, a mulher passa a sentir um amargor na boca, além dos pingos de sangue constantes que percebe na calcinha. Para disfarçar, tenta mascar cravo ou hortelã, mas é inútil porque "[c]oração seco é que faz a boca amargar" (HELENA, 2016, p. 20).
Nesse conto, o doce da boca é perdido juntamente com a perda do amante. Nisso há um paralelismo com o conto "Sem açúcar", anteriormente analisado. Porém, em "Quando o coração amarga", já há uma indicação clara de problema desde o momento em que eles passam a se relacionar. Assim, a presença do amor - por si mesma - representa uma perda, um "furo no coração", um sangramento dos sentimentos. O amor é ele mesmo um ladrão de energias ou elementos vitais. Esse transtorno já se adivinhava na sensação incômoda, semelhante àquela produzida por areia grudada na pele, que surge, na protagonista, assim que ela conhece Antero. E continua depois que ele se vai, ainda que de forma mais intensa.
Algo
similar acontece em “Era uma vez”. Nessa narrativa, uma mulher permite que um
contador de estórias entre em sua casa. Ele lhe conta uma estória enquanto ela
se mantém fascinada. O repertório dele nunca se repete, mas para isso "ele
precisava se reabastecer de tempos em tempos. Que era para reavivar a memória,
angariar palavras, recuperar o entusiasmo, juntar experiências, reaquecer o
coração" (HELENA, 2016, p. 50). A estória que ele conta nessa noite é a
sua última do estoque. Estando esgotado, ele aceita o seu convite para
pernoitar. A moça dorme muito bem, mas começa a sentir um frio estranho durante
a noite e principalmente de manhã, quando o rapaz entra na cozinha para fazer o
desjejum:
Não que ele pensasse em revelar seu
segredo, mas não teve outro jeito.
_ Fui eu quem roubou sua quentura.
A estória de ontem foi a última que eu tinha guardada. Tinha que me recompor e
só havia você por aqui. Mas agora, tenho que ir. Acho que com o que recolhi, já
posso contar novas estórias (HELENA, 2016, p. 51).
A
moça propõe que ele saia para contar suas estórias, mas volte à noite. E assim
ele faz por alguns dias. A partir daí a perda de características ou capacidades
passa a ser progressiva:
O que ela não imaginava é que, para
contar estórias, não era necessário apenas calor.
Nenhuma narrativa pode ser boa se
os fatos estiverem fora de ordem, por exemplo.
Foi numa sexta-feira que ela
começou a se desorganizar. Colocou açúcar no coador, em vez de café. Vestiu o
pijama antes de entrar embaixo do chuveiro. Pior ainda: comeu feijão com arroz
pela manhã.
A memória ela perdeu quando
passaram a dormir juntos, na mesma cama, dois dias depois. Não se lembrava mais
do riachinho onde nadava quando criança. Nem do doce de abóbora da mãe.
Esqueceu-se até do lugar em que aprendeu a andar de bicicleta.
Em seguida foi a doçura, que ele
tirava direto do útero, enquanto faziam amor.
Depois, foi a voz que falhou, e a
moça confundiu com uma faringite que não se curava com antibiótico algum.
As palavras, ele pegou por último.
Apanhava com a língua, uma por uma, enquanto se beijavam (HELENA, 2016, p. 52)
Então,
o amor rouba elementos preciosos da vida, mas mesmo assim a mulher escolhe
permanecer nesse relacionamento. Mesmo perdendo o calor, a doçura, a memória, a
voz e até as palavras, ela não repele o contador de histórias. Ele, por sua
vez, parece agir movido por um certo interesse, já que é de tudo o que retira
da mulher que consegue o material para continuar produzindo as estórias que
vende como mercadorias. Uma assimetria amorosa se desenha, então, em que a
mulher do conto cede tudo o que de valioso possui enquanto o homem se aproveita
disso para sua atividade de contador de estórias.
Dessa
forma, o caráter usurpador do amor independe de se ter presente o ser amado ou
não. Há algo na própria natureza do amor que se estabelece como um ladrão de
coisas preciosas. Mas em Sem açúcar o
mesmo amor que tanto rouba não pode ele mesmo ser roubado. No conto
"Cleptomania", uma mulher rouba coisas sem muito valor de outras
pessoas. Com as coisas, também são tiradas características importantes:
Na primeira vez, por exemplo, foi
um par de agulhas de tricô. Bem velhas. Entortadas já. Roubou da vizinha que
morava na casa em frente. A mulher nem percebeu. Não andava tricotando por
aqueles dias. Mas não demorou muito a se atrapalhar. Emaranhar os pensamentos.
Trocou o nome dos netos. Dormiu sem trancar a porta da sala. Esqueceu de
recolher as roupas do varal antes da chuva. Deixou queimar o feijão que
cozinhava tão bem. Os filhos cogitaram levá-la ao médico. Pensaram que era
algum mal da idade (HELENA, 2016, p. 39).
Apesar
dessa cleptomania, a moça é considerada exemplar pelas pessoas com as quais convive.
Consegue esconder bem esse traço desviante, tornando-se alguém acima de
qualquer suspeita, uma mulher capaz de se tornar uma excelente esposa para
qualquer homem. Sendo assim, ela decide escolher um par para se casar.
O escolhido foi Joaquim, namorado
de uma colega de trabalho. Preferiu alguém que já fosse comprometido. Assim,
poupava esforços, sabendo que se tratava de um bom partido. Fiel, trabalhador,
com um bom salário, de boa família. E sem vícios. Não fumava, nem bebia.
Gostava muito da namorada também.
Isso importava.
Aproveitou um dia, quando a moça
foi ao banheiro. Pegou da bolsa dela uma presilha em formato de coração. [...]
Não demorou para que o moço, sem nem saber por quê, perder o interesse na
antiga namorada.
Mudou de dona.
Noivaram logo. E o casamento foi
uma festança (HELENA, 2016, p. 41).
O
roubo, que, a princípio, parece ter dado certo, na verdade, revela-se ineficaz.
O casal permanece junto, mas é infeliz. A voz narrativa justifica isso da
seguinte forma: "[é] que amor não se rouba" (HELENA, 2016, p. 41).
Então, existe uma certa passividade nos tormentos do amor. Pode-se ser roubado
por ele, perder tudo o que se possui, chegando às raias do desatino. Mas não se
pode roubá-lo, não é possível, apenas por vontade própria, despertar em alguém
o amor que se deseja. Fica estabelecida, dessa forma, a supremacia do amor, que
governa os corações das pessoas, às vezes de maneira déspota, sem nunca
permitir ser governado.
A questão
trans
No conto "Roberta", a
protagonista, no início, ainda não é apresentada com esse nome, aliás, com nome
nenhum, e a narradora ou narrador emprega o pronome “ele” e o substantivo
“menino” para se referir à personagem. A narrativa acompanha a sua trajetória
da infância à vida adulta, podendo ser talvez dividida em três momentos, cujos
pontos de maior tensão são situações violentas, havendo uma atenuação ou
resolução do conflito ao final. Uma das características da escrita de Helena,
presente na coletânea e especificamente nesse conto, é o retrato de situações
em que o cotidiano e o insólito se mesclam, criando a sensação de que algo
bastante familiar está sendo examinado por uma nova óptica.
Naquele que seria o primeiro momento
da narrativa, exatamente o referente à infância, a/o protagonista já aparece
como uma criança que não corresponde aos papéis de gênero normatizados em sua
sociedade, desde cedo impostos aos seus membros. Contudo a palavra “gênero” não
surge no texto, sendo obliterada talvez pela atmosfera do insólito, que, nesse
caso, se refere ao poder de dar forma às coisas apenas por desenhá-las.
Roberta, que, como já foi dito, ainda não tinha esse nome, desenha a princípio
objetos que lhe são negados pela mãe e que se referem a itens da indumentária
tradicionalmente considerada feminina: saias, vestidos, tiaras, pulseiras,
anéis e sapatos de salto alto. A mãe julga por bem não lhe dar esses presentes
porque “as pessoas de lá não estavam habituadas a essas indefinições. Para
eles, homem era homem; mulher, mulher”.
Mesmo na infância, a situação da/do
protagonista já envolve algumas situações de violência. A primeira violência
encontra-se nessa negação da mãe e principalmente na não aceitação da sociedade
de que a criança seja o que ela de fato é e vista o que gosta. Está na
imposição de delimitações rígidas de vestimenta e comportamento para mulheres e
homens, algo bastante artificial em vista da imensa diversidade presente nas
pessoas. A segunda violência consiste nos xingamentos que passa a ouvir em
virtude de ser quem é, como “bichona”, por exemplo. Um homem que assume
adereços e gestos femininos é frequentemente ridicularizado pelos outros homens
que se mantêm atados ao padrão de comportamento masculino, sendo visto como
alguém que desiste de uma posição de privilégio para se nivelar ao patamar
inferior reservado às mulheres e a tudo que é feminino na sociedade. Dessa
forma, o enfoque na violência como uma experiência familiar das crianças dessa
condição revela o quanto isso está naturalizado, o quanto esses episódios são
corriqueiros no dia a dia das comunidades contemporâneas. O modo que a/o
protagonista encontra de superar ou resistir à violência é continuar
desenhando.
O segundo momento é o da
adolescência, em que Roberta passa da simples criação de objetos para a
recriação de si mesma, redesenhando a própria aparência e tornando-a mais
“feminina”. Esse ato parece estar relacionado à quebra da vidraça da casa por
cinco pedradas, ou seja, houve uma escalada da violência, dos insultos verbais
para a atitude de destruição de um objeto próximo à/ao protagonista. A partir
da percepção de que poderia consertar a vidraça apenas com durex, Roberta
começa a intensificar a transformação do próprio corpo, com massinha de
modelar, canetas coloridas e tesoura sem ponta. Tal metamorfose equipara-se
àquela que muitas vezes é realizada pelas pessoas transgêneras, com o uso de
hormônios e cirurgias, para adequar o corpo à identidade de gênero subjetiva. É
nesse momento inclusive que a personagem recebe, por fim, um nome de mulher, e
o pronome empregado na narrativa passa a ser “ela”.
A “ousadia” de Roberta parece
despertar ainda mais a fúria dos membros da comunidade, uma vez que dois homens
invadem a sua casa depois disso. Finalmente, a violência alcança o seu corpo,
bem aquele que havia transformado. Os homens a violentam com um cabo de
vassoura, dilacerando suas entranhas. O fato de assumir a forma feminina parece
ser lido pelos agressores como uma licença para atingi-la com a violência do
estupro, tradicionalmente perpetrada contra as mulheres. Roberta é igualada às
mulheres cisgêneras, mas apenas como um alvo da misoginia. Tornar-se uma mulher
significa também tornar-se uma vítima potencial de violência sexual. Os
ferimentos infligidos a Roberta são muito graves, e, se a narrativa se desse
apenas no nível do cotidiano, provavelmente causariam a sua morte. Mas ela não
morre, mais uma vez se salvando por meio do insólito: “[d]a dor, foi impossível
se livrar, mas conseguiu remendar os cortes com cola branca e tirar as manchas
dos hematomas com aguarrás”.
A terceira parte do conto se inicia
com a mudança de cidade da personagem. Longe da comunidade que a desprezava e
violentava, ela parece estar melhor. Constrói sua casa com uma série de
materiais mais comuns em trabalhos escolares: cartolina, argila, papel crepom,
tinta guache. No terreno do cotidiano, esses materiais não servem para erigir
uma construção em virtude de sua evidente fragilidade. Mas na região do
insólito, constroem o abrigo seguro que Roberta tanto precisa, inclusive para
ser mãe.
Nessa parte, não há situações
violentas, a não ser talvez pela maledicência das pessoas, que dizem que o bebê
que Roberta cria a partir de massinha de modelar e lã é, na verdade, um
enjeitado. A narradora ou narrador se posiciona em relação aos boatos,
afirmando ser tudo uma “bobagem”. Não importa se Roberta criou mesmo a criança
ou se a adotou depois de ela ter sido abandonada, pois as duas coisas são
verdadeiras, considerando-se as duas camadas narrativas, o insólito e o
cotidiano. De fato, o importante é a beleza da criança e o fato de que ela
parece significar o desabrochar de uma nova vida, assim como uma rosa que se
abre depois da chuva.
Referência
HELENA, Flávia. Sem açúcar. São Paulo: Penalux, 2016.
https://www.editorapenalux.com.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=63 |
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