Uma crônica de Guiniver | "Essenciais e Perfumados"

 

Fonte: pixabay.com

Uma crônica de Guiniver

Essenciais e Perfumados



Sim, Eu faço terapia!

Eu sempre achei que era uma grande besteira, que eu poderia me curar de tanta confusão sozinha e confesso que ainda hoje mesmo fazendo terapia, atribuo minhas mudanças ou aparente melhora a outras condições que não apenas o tratamento psicológico. Também pudera, eu tão auto suficiente e orgulhosa.


Dia desses na terapia com a profissional de 1001 utilidades: psicoterapeuta junguiana, massoterapeuta, aromaterapeuta, acupunturista. E já fui submetida a todas essas técnicas e estou certa que meu caso é  mesmo grave. Pela primeira vez depois de quase um ano e meio, me permiti chorar no consultório. Foi durante a sessão de terapia olfativa, enquanto eu inalava vários tipos de óleos essenciais e ela me perguntava: 

_ Sente-se bem ou mal?

_ O cheiro é bom ou ruim?

_ Te lembra alguém ou alguma situação específica?


Enfim, eu chorei muito. Primeiro eu resisti.

Depois algumas essências me levaram de volta pros teus braços e senti saudade de uma coisa que não houve, de verdade não há. Talvez exista, quem sabe bem no fundo da minha pilha de problemas e foi umas das sensações que me fez chorar. Saudade de você. 

Medo de perder o que não tenho.

Medo de não tê-lo por perder tanto tempo pensando.


Depois chorei muito porque outra essência me lembrou minha avó… 

E aí me dei conta que minha avó tem Alzheimer e não sabe mais quem eu sou, mas aquele cheiro me lembrou a casa dela.

Quando fazia aquela alquimia de aromas pela manhã preparando o almoço, três tipos de sucos diferentes, enxaguando o sabão em pó das nossas roupas encardidas e colocando amaciante.

A Casa da avó tem cheiro de acolhida, o cheiro dos abraços dela, senti vontade de estar abraçada com a minha avó. Ela não lembra o que é um abraço. E no meio de tantas meias palavras misturadas, de difícil compreensão, do olhar perdido, está lá minha avó e eu só queria um abraço dela.

Ela tinha aquele jeito de aconselhar sem fazer julgamentos, sem nos encher de culpa desnecessária. Como é incrível o cheiro da casa da vó. 

Então conversei com vocês mentalmente. Porque as minhas lembranças eram apenas estas: você​ e minha avó. Que coisa esquisita!


Pra você  foi tanta coisa, porque​ ali deitada na maca de massagem pude criar um você​ só meu.

Eu falei o quanto foi bom te tocar, sentir teu cheiro, teu gosto, o toque firme das tuas mãos,  teu calor,  a maciez da tua pele, eu falei pra você que eu não queria ter ido embora naquela hora, mas que eu precisava e se fosse diferente eu teria ficado mais.

Eu te contei que a melhor sensação de prazer é lembrar eu ali, nua e de bruços… com tua cabeça recostada nas minhas costas sentindo a textura do teu cabelo no meu corpo enquanto suas  mãos estavam metidas no meio dos teus joelhos. Você parecia um menino e isso me alegrou.

Eu te disse que ter tua pele na minha, dentro de mim foi tão intenso que eu achei que eu não conseguiria parar antes que algo saísse dos planos.


E a essência de frutas me lembrou que no dia seguinte não houve um bom dia e nos outros três dias posteriores também não, até que eu resolvi quebrar o silêncio pois me deu deveras pânico. Eu te contei a verdade sobre ter mentido em dizer que eu entendia.

Não, eu ainda não entendo teu silêncio.

Não entendo nossos olhares que se cruzam com tanta coisa por dizer e simplesmente calam apavorados.

Confessei que estou vivendo os piores dias da minha vida porque​ eu não sei o que esperar, não sei o que  vem depois. Talvez não  haja depois e a espera terá sido em vão, só ilusão. As lágrimas rolaram grossas.

Eu te falei que tô confusa, com medo, sozinha, magoada, mas que tô firme por enquanto e não sei por quanto tempo.

Bem, talvez eu não esteja assim tão firme.

Eu te contei que choro todo dia de manhã e penso em você, stalkeio suas redes. Eu oro por você. Por nós…


Eu disse a vovó que não se preocupasse que eu a partir de agora eu seria sua memória, faria vir à  baila toda poesia que me ensinou com gestos simples e sua alquimia culinária, botânica e aromática. Que eu respeitaria cada história construída em nossos embaraços e laçadas. Que manteria nossa tecitura. Minha avó respondeu que eu respeitasse o tempo esse grande tecelão. Que soubesse que o "silêncio é professor". 

Que amores vêm e vão. Que eu não perdesse o brilho nos olhos. Me perguntou porque meus olhos de mel a olhavam tristes e melancólicos?

E afundei naquele abraço quântico. Embalado pela voz desafinada da vó me embalando em cantiga. Agradeci toda a bênção e unção de seu amor sobre mim. 

Nesse momento nós sabíamos quem éramos pra além dessa doença que lhe rouba a certeza de quem eu sou.


Que duelo: Você e minha avó!


Esse você criado por mim ouviu tudo mas só ouviu, não me respondeu nada. Eu não tinha elementos suficientes pra criar esse diálogo, não tenho ideia de quais seriam suas respostas e não tenho criado expectativas.

Essa parada não permite erros, arroubos de paixão, destemperos por ciúme, nem lhe fazer cobranças. Só posso dizer tudo isso no olhar. Mas você sempre desvia do meu olhar, não sei se compreende.


Grappefruitt, Olíbano, Gerânio e Capim Limão.


Tudo que me fez chorar, demonstrar extrema fraqueza, decepção, mágoa, saudade e aí me vi humana despida de orgulho e de vaidade. Escrevo isso ainda inebriada pelos aromas cítricos e amadeirados dos óleos essenciais. Escrevo com lágrimas nos olhos e despejando tudo isso nesse você que eu mesma criei e que me escuta calado.


Sim, podemos ser amigos, ter projetos profissionais, nos apoiar um no outro quando essa bad nos bater tão forte, a ponto de nos fazer desistir.

Sim, podemos trocar versos e canções.

Ou conversar olho no olho sobre tudo isso Se você quiser. 

Sim, eu tô preparada, tudo pode mudar ou permanecer inalterado, não tenho conseguido controlar o que sinto, mas estou tentando.


Vovó se despede dizendo: "Nem toda dor é tão grande quanto a gente inventa. Fortaleça seu Ori. Confie na sua intuição. Remonte trajetória. Escreva ou cante suas mazelas e mande-as pra longe. Você sabe que consegue. O tempo é Tecelão vai bordar outras marés, tempestades, arrebóis e dias solares. Te prepara sempre pra olhar adiante. E não se curve. [Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo]".


Enquanto esse seu eu criado por mim se desfez na minha nuvem de ilusões eu ainda sentia teu cheiro. Terapia olfativa.


Senti o cheiro da casa da minha avó.

Saudade e desejo arrasador de morar no abraço dela, sob seu chamego e candura.


Lembrar você e minha avó.

Coisas da “Psiquê”.

No meu quinhão de insanidades mais uma coisa esquisita: Essa tal de Aromaterapia.




Fonte: pixabay.com


Guiniver, 41 anos, é Arte-educadora, professora de Arte formada pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, poeta, escritora, e mãe. Participa do Coletivo Literário Elo da Corrente, desde 2014, no movimento de literatura periférica/negra. Desenvolveu a escrita desde a juventude, atualmente faz mediação em oficinas, palestras de literatura e educação para as relações étnico-raciais em escolas, centros culturais, etc. Obra individual: Infinito Rubro-Carmim (poesia), 2019 - Elo da Corrente Edições.
Instagram: @literatugaguiga / @guigapreta


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