De Prosa & Arte | Menininha e Filhotim

Coluna 3



Menininha e Filhotim


Oi mamãe de peito-ventre. Chega aqui para conversar. Espero encontrá-las bem.

Tenho notado uma preocupação com a adaptação das crianças de adoção tardia (termo utilizado para determinar adoção de crianças maiores). Me permitam ser muito sincera? Não me levem a mal porque lhes quero tanto bem. 
Sou uma mãe de peito-ventre e tendo a acreditar ultimamente que é uma parte bem boa de mim. A maternidade, assim como a adoção são mega romantizadas. Não são fáceis. Uma mãe quer semelhança e proximidade com suas crias, quando o desejo de maternidade permeia sua construção. E nenhuma de nós é obrigada a ser mãe se não o quiser. 

Mas cá entre nós falando em adoção e não de nutrir ou parir na casinha geradora, a mãe não escolhe… é escolhida. Acho que funciona assim também na vida parida. Mas não tenho experiência para dizer sobre. Essas criaturinhas espevitadas nos acolhem como mães e protetoras. 

A princípio a gente deseja um (a) bebê com a falsa ilusão de que será mais fácil construir com eles essa relação nuclear, colocá-los ao nosso modo - do nosso jeito - quer também parecença assim fica mais tranquilo a identificação fenotípica com a família que frequentam. Doces ilusões das nossas incompletudes. 

Outra coisa intensa é a questão racial que pega na veia - isso é tão limitante. Adultos são tão cheios de critérios. Bem, isso verdadeiramente não importa. Na verdade, importa sim, pois crianças pretas são as últimas na fila de adoção. Se forem crescidas, mais. Às vezes a galera das gringa é mais liberta com isso na minha rasa percepção. Não sou estudiosa desse tema, apenas mãe de coração. Como fui escolhida meus filhos poderiam ser bolivianos, chineses ou italianos. Se assim nos entendêssemos como um núcleo familiar e afetivo. 

Mas o sistema nos dá opção de fazer escolhas como se meu desejo de ser mãe pudesse ocupar um cardápio. Mas é assim que é: uma lista de critérios, questões fenotípicas e/ou biológicas pelas quais podemos optar. Assim a maternidade também é capitalizada, perpetua o racismo e o capacitismo. É triste e estranho. Mas faz parte da burocracia dessa chegada à maternagem de peito. 

Muitas coisas nos movem nessa escolha. Escolhemos nessa lógica antes de conhecê-los. Sim, meus filhos eram números numa fila imensa de crianças pretas que ansiavam por ter um lugar de acolhida, a possibilidade de refazimento pessoal, de voltar a ser criança/gente e não um menor abrigado. 

Minha Menininha é Capixaba, meu Filhotim é Mineiro. Eu não tive a mesma oportunidade de vivenciar com os meus uma adaptação aproximada porque sou paulistana, a distância impediu. Minha gestação de peito foi à jato durou pouco mais de 6 meses de espera para ser habilitada a esta maternidade, 2 meses de busca e 15 dias de espera por uma audiência. 
Assim que soube que depois de tanta recusa por crianças maiores meu companheiro havia decidido conhecê-los eu me enchi de alegria e esperança. 

Desde muito pequena meu sonho era ser mãe, nada me dava mais viço em conquistar um espaço, um trabalho que pudesse trazer conforto para a família que eu sempre desejei criar. Ainda choro por não ter tido a oportunidade de vivenciar no meu corpo a experiência geradora de trazer um outro universo complexo à vida. Às vezes troquei de mal com o Astral por isso. As Divindades sabem. E misericordiosas como são foram pacientes em me mostrar um outro caminho possível. Não menos encantador e desafiador. 

Eu jamais esquecerei o calor que aquiesceu meu corpo quando os encontrei pela primeira vez. A emoção de trazer a minha casa duas pessoas cuja história inicial eu desconhecia. Eles já eram pessoas… pessoas submetidas a um início de vida conflituoso, de abandono, abuso, negligência e drogadição. Eu seria capaz de assumir essa história? Não sei ainda. Eles crescem e os problemas crescem com eles. Filhos são para sempre. De ventre ou coração. Não tem diferença. 

Então não me perguntem se há diferença em parir ou adotar. Eu não tenho ideia… não pari! Gestei na mente e no peito. 
Mas posso dizer com certeza que ser mãe em qualquer das duas possibilidades é apenas SER MÃE. 

No dia de trazê-los para casa, na verdade na noite anterior quando estavam conosco no hotel nas Minas Gerais… eu não dormi… eu os olhava agarrados aos seus ursos de pelúcia. E pensava: Meu Deus, isso não tem volta: eu saberei cozinhar o que eles gostam? Pentear os cabelos da Menininha, jogar bola com o Filhotim? 

Embora eu tenha um relacionamento longo, meu companheiro se demorou e ainda demora nesse aprendizado de ser pai na íntegra. Para ser pai é necessário ter aprendido a ser filho. Nem todos os meninos pretos conseguem nutrir essa vivência na integralidade por motivos vários. Mesmo numa família aparentemente estruturada a que se ocupar os lugares para entendê-los. Alguns meninos/homens são distraídos ou teimosos. Crianças desejam demonstração "incondicional" do amor de mãe e pai. Mães e Pais têm limitações. Vivências tristes, passados confusos. Todas temos. Essa talvez seja outra percepção rasa da minha parte. Não é um julgamento às nossas famílias. Afetos necessitam ser construídos nessa relação fraterna. 

Na maior parte das tarefas que envolvem meus filhos eu sou linha de frente. Eu decido. Talvez isso também iniba o funcionamento de pai do meu companheiro. Não dá para saber. Filhos alteram a rotina do casal. As viagens precisam ser melhor programadas, a nécessaire com remédios e primeiros socorros fundamental, duas ou mais paradas para xixi e lanche. Nossos banhos são ao fim da noite, às vezes o número 2 não tem privacidade. 

A Menininha fará 17, Filhotim tem 14. Isso não mudou. Ainda uso o banheiro ouvindo resumos de séries ou inquietações com questões de sexualidade, sentimentos e outros. 

Filhotim me deu um trabalhão na escola pública. Fiz de um tudo ar que ele pudesse se adaptar. Errei vertiginosamente insistindo nesse modelo. Ele precisava de uma rotina de estudos mais intensa e supervisionada. Não têm a ver com minhas convicções políticas e ideológicas. Tem a ver com o funcionamento de cada um que é muito diferente. Ele reprovou um ano e eu me culpo. Não tiro a responsabilidade dele mas poderia sim ter sido mais leve. Quando novinho ele me bateu, mordeu, puxou meus cabelos, quebrou o quarto todo mais de uma vez até entender que era realmente sua casa. Isso não passou em semanas… foram anos. 

Até o ano passado criou uma encrenca das brabas envolvendo uma outra família de convívio. E então fomos afastados, "perdi" amigos/colegas. Era assim que eu pensava. Hoje vejo claramente que não perdi nada… protegi como mãe que sou, a integridade física e emocional dos meus filhos. 

A Menininha mentiu, escondeu coisas, tinha/têm modelos criados em relação a sexualidade que foi preciso entender para reconduzir e ela hoje pode ser uma jovem livre, com muita personalidade. Ela grita, ela surta, ela questiona meu lugar de mãe. Ela bufa, desobedece. Arranja encrenca. Outras vezes repele afeto e contato. Outras fica carente e oferece um abraço duro de alguém que ainda precisa devolver a flexibilidade ao corpo que desabrocha e que ainda sente medo do abandono. Questiona o pai o tempo todo às vezes sendo até muito desrespeitosa. Como filhos de qualquer modalidade. 

Então é só isso? Gente desobediente e sem jeito? Não. 
Esse é o nosso jeito, existem outros. Processos de acertos e erros. 

Quando estamos aprendendo a ser mãe eles em contrapartida vivenciam o que é ser filho, ser submetido a regras, horários e rotinas. Daí a gente percebe que criam autonomia e então é possível negociar e renegociar tudo isso. É um ciclo de acertar e errar ad eternum. 

Irmães de peito-ventre tenham paciência. Tenham amor. Chorem no chuveiro, surtem e se imponham se for preciso. Mostrem que vocês também são pessoas únicas. Vai muito aprendizado nessa coisa de família. Eles vão testar nossa fé até o limite para entender se o amor resiste. Amor de mãe e filho não deve ser incondicional. Tem condições sim. Mostre-as. Vai ser sempre difícil e assustador. Estamos tutelando outras vidas. Que responsabilidade. Que coragem nós temos! 

Filhos de ventre ou coração não são extensões de nós. São universos independentes sob nossa proteção e acolhida. 

A Menininha é uma jovem linda… Cozinheira de mão cheia. Louca numa leitura. Estabanada também. Sorri com os olhos e com aquela boca enorme que ao me contar algo que a entusiasma solta gritinhos agudos de satisfação. Às vezes é irritante, confesso! Ela me cuida. Ela me ouve. Eu a ouço. Ela se aborrece com minhas críticas ou incompreensão com coisas que queira ou goste e que eu ainda não entendo. Tem desejos de liberdade. Diz que nunca quer ser mãe e também não quer se casar. Deve ser porque já entendeu que num mundo de relações tão líquidas e fluidas nem sempre é o único caminho ou modelo de felicidade. É uma geminiana insuportavelmente chata. Porém, imensamente deliciosa. 

Filhotim é um jovenzinho distraído, desastrado, reflexivo, adora dias nublados, músicas tristes, come como um búfalo desorientado, é ansioso, birrento… marrudo mesmo. Ele cresceu demais. Depois de uns vários sustos que levou da vida. Porque a vida o colocou de frente com seus medos e limitações e o fez se responsabilizar. Assumir ônus e bônus. Porém é amoroso, tem o abraço mais quente do mundo, um beijo babado e grudento. Me traz o café na cama. Nunca se esquece de me dar bom dia. Dia desses brigamos. Ele disse que nunca mais falaria comigo. No dia seguinte me trouxe o café. Ele sabe o que gosto de comer de manhã e faz delicinha. Ele faz terapia. Todos fazemos. Ele fala alto pacaramba, canta gemendo e gritando. É uma tortura. Noutro dia, de portas fechadas na sessão on line com a terapeuta eu o ouvi dizer: “minha mãe e irmã falam que sou um "SAD BOY" (garoto triste… coisa de adolescente) mas eu estou sempre rindo e fazendo piadas divertidas… não sou triste. Me emocionam as coisas tristes e por isso me agradam porque me fazem pensar. Eu estou amadurecendo porque resolvi que não preciso competir com ninguém ou ser melhor. Preciso apenas ter foco para alcançar meus objetivos.” 

Sabe maninhas eu aqui do meu quarto ouvindo, chorei, sorri e pensei: Conseguimos. Juntos. Mas ainda não acabou tem muita coisa para vir. Eu errei demais e erro todo dia, mas o sorriso da Menininha e o abraço do Filhotim são unção na minha vida. Sou grata ao Astral por toda a loucura que passei com eles e por eles. Porque me fez melhor como pessoa. 

Ser mãe adotiva é missão? É caridade? É extrema bondade? É compaixão? Não. É só ser MÃE mesmo. Não se surpreendam ou me olhem com olhar de “ai que coisa mais linda você fez por eles”. 

Menininha e Filhotim já eram meus... estávamos apenas apartados num tempo de crescimento para nos aceitarmos como Família. Já somos! 

Essa relação o que é? Um pouco de sabor, um pouco de amor, três pitadas de loucura, meio quilo de surto por semana. Três punhados bem grossos de gargalhada e patifaria. É ensinar a fazer de um tudo e aprender a hora de fazer coisa nenhuma junto. Respeitando nossas individualidades. Eu adotei duas pedras preciosas. Minto! Eles me adotaram. Eu era a pedra bruta. Eles vão me lapidando diariamente. Me assumiram como mãe na alegria e na tristeza. 

Irmães. Façam o que o seu coração mandar. Aquilo que o corpo e a mente puderem decantar e assumir. Para quem já tem os filhos do “cuore” já são história na vida deles, eles na sua. Aquelas que ainda anseiam nessa fila que demora a caminhar... vocês serão! Filhos são eternos. Nunca temporários. Então cuidado com essa afirmativa decisão. O que digo é apenas meu ponto vista. Percepção unilateral. Eu sou um universo e vocês outros. 

Esses filhos também são universos inteiros. Depois da primeira partilha estes universos estarão sempre vinculados. Pelo afeto. Pela vivência, ainda que breve. Serão memórias uns para os outros. Asè mirmãs. Gritem aqui se precisarem. Nhanderu, Deus Pai, Buda, Allah, Oxalá sejam com vocês no que for pra ser. 

É preciso de crença para gestar num peito ventre? 
Não, creiam apenas no amor que querem dividir. Força nas perucas e nas carecas! De coração para coração segue meu abraço.



 

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