Divina Leitura | Celebração do devir em Luciene Carvalho: "Revista Pixé", edição especial de outubro de 2020

 

Coluna 10


Celebração do devir em Luciene Carvalho:

Revista Pixé, edição especial de outubro de 2020

- por Divanize Carbonieri e Maria Elizabete Nascimento de Oliveira



A edição especial da Revista Pixé de outubro de 2020 homenageia a poeta Luciene Carvalho em seus vinte e cinco anos de carreira. Como ressalta Eduardo Mahon, no editorial da revista, “trata-se de um encontro [...] com o passado ancestral que, obviamente, é negro e periférico”. Mas, sobretudo, são poemas que se constroem como “cosmo-imagens do mundo, conexão e heterogeneidade em que um ponto se conecta a outro em linhas de fugas e intensidades, consistências e fluidez”, como assinala a pesquisadora Olga Castrillon Mendes mais à frente. Essa interconexão dialoga com o rizoma de Deleuze e Guattari (1995), que ressaltam a complexa relação do ser e suas redes que o (de)formam na necessária e processual busca do devir.

Entre os diversos aspectos existentes na poesia de Carvalho, os poemas selecionados para compor a revista centram-se em três motes que se fundem: a criação poética, a identidade feminina e a ancestralidade/memória, que agem como redes constitutivas do ser. Assim, é necessário pensar em solidariedade, em respeito pelo lugar da outra, que jamais será ocupado porque demanda singularidades, historicidades que necessitam de experiências e vivências que são particulares. Porém, pode ser lido por meio de uma interação de com-vivência.

Carvalho, em seus poemas, nos conduz a conhecer um eu poemático que recupera sua identidade calcada na genealogia de suas antepassadas.

 

Nasci na janela do mundo

Meio que de lado

meio que de esguelha

Última filha do meu pai

Única filha da minha mãe

Sem irmãos, só meios-irmãos...

Casar? No papel, uma só vez,

No mais, casei todas as vezes que pude.

Cedo fui órfã de pai,

Não fiz filhos, nem abortos,

Neta de devota de São Benedito,

Bisneta de parteira,

Filha de Virgínia Conceição,

Fiz versos, virei poeta

Moro em Cuiabá, no Porto

E Porto é meu coração.

 

(“Genealogia bruta”, p. 8)

 

O autorretrato desenhado pela poeta se reconhece em sua linhagem, sobretudo matrilinear, mas também no enraizamento geográfico no bairro cuiabano do Porto, que, mais do que local de moradia, é sentido como o seu próprio coração. Sendo ligada a essa sequência de matriarcas, a voz poética revela aquilo que, nesse sistema, pode ser visto como fraqueza: “Não fiz filhos, nem abortos”. Porém, a infertilidade física é contrabalanceada pela fertilidade literária: “Fiz versos, virei poeta”. Se a continuidade nas descendentes foi interrompida, ela se impõe ainda mais sólida por meio da poesia.

 

Faço verso

porque disseram

que é pra isso que presto,

Não sei

se levo isso

como elogio,

como desclassificação

como recado.

Faço verso

porque quando não dou conta

do resto das coisas do mundo

dou conta

de – com minhas mãos –

ir arranjando as palavras

 

(Trecho de “Forma original”, p. 10)

 

Para aquela que se viu deslocada dentro de regulações familiares, a poesia pode ser uma acusação de desclassificação, de não conformidade. Mas também pode ser sentida como uma libertação da ordem imposta. Não dar conta das coisas do mundo como elas são abre as possibilidades para arranjar novas realidades através da escrita.

O fazer poético de Carvalho fortalece a busca pela/na experiência sensível da quebra de algemas impostas pelas convenções sociais, que sempre privilegiaram algumas pessoas em detrimento de outras. A sua criação é corpo-voz que grita silêncios e mordaças de um tempo que precisa ser superado, como destaca Jacinaila Louriana: “Leva e lava-nos ao permitir um passeio por toda a extensão do navio e finalmente libertos brindamos fora dos porões e algemas malditas”.

 

Sou crisálida

Já tive vida anterior

E realizo síntese

Voltei aos meus genes

Levando minhas vivências

Tenho nova etapa pela frente

Um futuro diferente

Portanto,

É preciso cuidado

Sou crisálida

Ainda frágil, sonho e voo

Recolhida em mim

Em busca e transformação.

 

(Trecho de “Crisálida”, p. 28).

 

A transformação não se completou, uma vez que a voz poética ainda se sente crisálida, em recolhimento, às vésperas da criação de um futuro diferente. Porém, a superação já se adivinha na realização de sínteses entre o passado de opressão e o presente de conscientização. Mesmo que a atualidade ainda não permita a plenitude, celebra-se a capacidade incansável de se refazer.

 

Mas eu insisto em seguir mutante;

não é pelo mundo que eu sigo adiante,

é pra desvendar o inédito

em mim,

nas coisas,

nos lugares

 

(Trecho de “Rosa e prata”, p. 47)

 

A poeta vê como sua a missão de desvendar o inédito em todas as coisas, sobretudo naquilo que está relacionado à condição feminina. A mulher que está envelhecendo, mas que não é ainda idosa, passa, principalmente a partir do livro Dona (2019), a ser o foco de sua abordagem poética.

 

Disseram que na idade em que estou

as pessoas começam a envelhecer;

mas esse negócio de envelhecer

é novo para mim.

Ainda não me acostumei

com o status de senhora

que levarei comigo

pela vida afora.

Vou buscando me ajeitar no tempo,

Vivendo o agora

buscando algum armistício

com tudo o que sou;

atenta ao que passo,

não ao que passou.

 

(“Pátina”, p. 37).

 

Ajeitar-se no tempo e prestar mais atenção ao que passa e não ao que passou, aproveitar os momentos de transformação, dar sentido ao eterno devir do corpo, da personalidade, da vida. São esses os atos plasmados como importantes na poética de Carvalho, tornando sua poesia reflexiva a partir da dor, mas também celebratória da vida.

Isso se combina com a arte visual de Paulo Sayeg, convidado para ilustrar a edição. Com traços leves e cores vibrantes, as imagens dialogam com os poemas, deixando-os ainda mais fluídos, como pássaros que cantam a clausura de seres em liberdade e voam pelas/nas páginas marcantes desta cuidadosa e bonita edição. O passeio, assim, toma ares diferentes, apresenta uma voz poética multifacetada, com episódios cotidianos que se abrem ao diálogo com a outra, com respeito aos lugares e às vivências outras porque capaz de aceitar sua condição e, aceitando-se, é sabedora do seu poder de dessacralização. A poesia não pode estar fadada apenas à denúncia, mas também necessita estar empoderada de leveza, de sentidos, de arte, mesmo sendo também palco de disputas, de conflitos e lutas de classes, ainda, infelizmente, existentes na sociedade contemporânea.

Essa edição especial da Revista Pixé nos brinda com a poesia como caleidoscópio, um caminho que pode nos conduzir à luta ética pela construção de outra sociedade. Ir à luta consiste justamente em viver as diferenças na rede complexa do cotidiano, na procura incansável por travessias possíveis, com responsabilidade e compromisso ético. O poema precisa chegar a nós, tomar posse de nós, nos incorporar, nos deixar em estado de árvore, como diria o poeta Manoel de Barros, com raízes e asas, mais plenas de “verdades”.

 

Referência

 

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: Mil Platôs (Capitalismo e Esquizofrenia) Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1ª Ed, 1995.



 

Revista Pixé, outubro/2020

(https://www.revistapixe.com.br/folheie-ed-luciene-carvalho)


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