Divina Leitura | Mais sobre Luciene Carvalho
Coluna 11 |
Mais sobre Luciene Carvalho
- por Divanize Carbonieri
Na semana passada, esta coluna se dedicou a resenhar o número especial da Revista Pixé de outubro de 2020 em homenagem a Luciene Carvalho. Naquela ocasião, eu e Maria Elizabete Nascimento de Oliveira nos detivemos em sua produção poética, tendo por base a seleção de poemas publicados na edição. Como Carvalho está completando vinte e cinco anos de carreira, resolvi continuar a celebração de sua obra, reproduzindo aqui o capítulo que escrevi a respeito de sua coletânea de minicontos, Conta-gotas (2007), e que faz parte do livro Cuiabá, a mulher e a cidade: literatura, cinema e artes da cena, organizado por mim e por Maria Thereza Azevedo, a ser lançado ainda este ano.
CUIABÁ: A CIDADE MULHER DE LUCIENE CARVALHO
Ao
idealizar este texto, eu tinha o intuito de encontrar uma cartografia feminina
para Cuiabá na literatura. Queria saber como a cidade teria sido desenhada nas
narrativas de suas autoras. Que espécie de mapa as representações de mulheres
traçariam nas páginas impressas? A realização desse objetivo esbarrava no meu
grande desconhecimento a respeito da produção literária de escritoras nascidas
ou radicadas em Mato Grosso. No pouco tempo de pesquisa que tive, desisti de
tentar esboçar um panorama ou visão geral. Na verdade, fui antes arrebatada
pelas impressões de uma única autora, contidas nos microcontos do pequeno, mas
significativo livro de Luciene Carvalho, Conta-gotas
(2007).
Afirmar
que Carvalho escolhe apenas mulheres como protagonistas das dezessete histórias
que se enfileiram em menos de quarenta páginas é ainda pouco. São todas
cuiabanas ou residentes em Cuiabá, mas isso não diz tudo. Representam várias
classes sociais. O universo por qual circulam deixa entrever uma assimetria
entre os gêneros. Os homens têm maior poder de decisão e às vezes exercem certa
manipulação sobre suas parceiras. Porém, existem mecanismos de resistência na
vida dessas mulheres e alternativas para a situação em que se encontram. Foi a
partir dos deslocamentos dessas cuiabanas representadas por Carvalho que
comecei a pensar numa geografia literária da cidade.
Tomei
emprestada a ideia de uma geografia literária de Franco Moretti (2003, p. 13),
para quem tal termo “pode se referir a duas coisas muito diferentes. Pode
indicar o estudo do espaço na literatura;
ou ainda, da literatura no espaço”. A
primeira possibilidade envolveria os espaços ficcionais delineados pelas
andanças das personagens e pelo desdobramento do enredo. A segunda daria conta
do desenvolvimento histórico da literatura de acordo com os espaços geográficos
reais. Entre esses dois aspectos, meu interesse de pesquisadora pende para o
primeiro, uma vez que tenciono olhar para os modos como os espaços são
construídos dentro das narrativas.
Moretti
nos ajuda a pensar nos mapas como instrumentos de análise literária,
ferramentas que podem explicitar relações ocultadas nos textos.
Em primeiro lugar, [os mapas]
realçam o ortgebunden, a natureza
espacial das formas literárias: cada uma com sua geometria peculiar, suas
fronteiras, seus tabus espaciais e rotas favoritas. Em seguida, os mapas trazem
à luz a lógica interna da narrativa:
o domínio semiótico em torno do qual um enredo se aglutina e se organiza
(MORETTI, 2003, p. 15).
Qual
seria, então, a lógica interna das narrativas de Carvalho que poderia ser
elucidada por esses mapas da cidade representada? No primeiro conto, intitulado
“Vale transporte”, uma mulher sobe no ônibus em Cuiabá rumo ao trabalho:
Aquele breve interlúdio matinal
vinha dando alma nova à manhã dela; já não se exasperava com clorofórmios e
desinfetantes, já não se incomodava com o escarro do pai que se levantava para
continuar o porre interrompido na noite anterior; já não lhe pesava a chegada
dos 45 anos. Não! Acordava para ele, se vestia e maquiava para ele: o cobrador
da linha 508 (CARVALHO, 2007, p. 13)
A linha de ônibus 508 faz o trajeto Osmar Cabral-Centro (Praça Bispo) e sentido inverso. A personagem se dirige ao Hospital Geral, onde provavelmente é assistente de limpeza. Sua localização, na geografia da cidade, é dada justamente pelo número da linha. Não sabemos ao certo de onde ela partiu, em que ponto exatamente pegou o ônibus, mas é algum local entre o bairro periférico de Osmar Cabral e o Centro Norte da capital, onde se situa o hospital.
Fonte: Aplicativo Meu Ônibus MTU
É um trajeto feito por milhares de mulheres trabalhadoras diariamente em Cuiabá, uma movimentação que, em grande parte, permanece ocultada da mídia e também da literatura. Essa cidadã que ajuda a construir a realidade cotidiana é muitas vezes esquecida, e seus deslocamentos quase não são acompanhados. Mas Carvalho está interessada justamente nessa figura a que poucos dão importância. A trajetória da protagonista como uma mulher preterida ou pouco valorizada também se delineia no fato de, aos quarenta e cinco anos, ainda morar com o pai, o que provavelmente indica que não construiu para si uma vida fora da experiência de filha. O alcoolismo do pai sinaliza um círculo vicioso que também parece prendê-la; ela não consegue se afastar dessa situação incômoda.
Qualquer conto é, por definição, um
momento significativo na vida de uma personagem. “Vale transporte” transcorre
inteiramente dentro do ônibus, seccionando esse instante de todo o deslocamento
de sua protagonista. Apenas o que ela vivencia dentro do ônibus parece ter
importância nessa existência sentida, em relação ao resto, como pesada e
insípida. Para aquele momento único, prepara-se de forma especial:
Tinha que ser pontual para pegar o
ônibus certo e poder realizar aquela cena matinal: unhas pintadas com esmalte
vermelho escondiam o contato com os corrosivos e descansavam por um minuto a
mais sobre a caixa de dinheiro. O cabelo alisado com chapinha no fim de semana
exigia que ela se inclinasse em direção à bolsa para mostrar seu balanço, a
língua umedecia o lábio roxo de cuiabana antiga e “Oi!!!” (CARVALHO, 2007, p.
13).
As unhas pintadas de vermelho, o cabelo
alisado e comprido e os lábios com batom revelam que a protagonista ainda não
desistiu da própria sensualidade ou sexualidade. A razão desse cuidado todo é o
cobrador da linha 508 naquele horário específico. Não está claro se a atenção é
recíproca, já que o homem só se manifesta ao cumprimentá-la com um “oi”, ao que
ela responde similarmente no final da narrativa. No entanto, nesse momento
congelado e iterativo (há a indicação de que ocorre diariamente), existe a
quebra da rotina massacrante da personagem. É um momento de individuação, uma
iluminação que é dada pelo desejo, numa existência majoritariamente vivida em
branco e preto.
Uma outra personagem que também parece ser
alguém pouco vista é a narradora-protagonista de “Conta-gotas”, o conto que dá
título à coletânea. A sua localização não é, contudo, definida. Ela pode estar
em qualquer lugar da cidade ou mesmo em outra cidade. Mas, ainda assim, existe
algo em sua narração que parece identificá-la como cuiabana, como mais uma
cuiabana de certa forma esquecida. Todo o conto, na verdade, desenvolve-se na
mente da personagem, constituindo um diálogo mental com a mãe, numa espécie de
pedido de desculpas:
Ah, mãe! serei motivo da sua
admiração, a senhora se esquecerá da menina sem encantos, da mocinha sem
brilho, se esquecerá da perda do seu filho. Eu prometo lhe recompensar pela
moça sem beleza, pelo genro pífio, de profissão modesta e ambição tacanha. Minha
fé tamanha trará a recompensa. O médico me disse que com algum cuidado levarei
a gestação até o fim, é certo sempre ter sido um tanto frágil e sem viço, mas
desta vez, vou dar conta do serviço. Isso é vital para mim: terei nosso menino
(CARVALHO, 2007, p. 25).
Assim, ela tenta se desculpar por nunca
ter sido especial, uma filha que pudesse ter merecido a admiração da mãe. A
única possibilidade que enxerga de modificar isso é conseguir levar a gestação
a termo, dando à luz um filho homem, para substituir aquele que a mãe perdeu e
que, por ser homem, teria merecido mais o amor materno. Mas mesmo em relação a
isso se sente insegura. A gravidez inspira cuidados, e sua saúde frágil talvez
não permita que esse sonho se realize. Se perder o bebê, ela sente que perderá
também a última chance de ter o afeto da mãe.
Ainda que o espaço a partir do qual narra
não esteja delimitado, existe uma menção a um espaço doméstico que também é
revelador das relações familiares:
Eu me vejo entrando em casa, por
uma vez vitoriosa, levando o nenêm nos braços envolto em manto azul, será noitinha,
meu ventre ainda abaulado, meu peito cheio. O passo cuidadoso do pós-parto,
seguirei até seu quarto, que fica logo após o meu de filha pouca, minhas mãos
seguirão até sua direção, lhe entregarei meu filho, mãe, que será nosso. Nossas
tardes, após então, serão serenas e seremos íntimas e cúmplices (CARVALHO,
2007, p. 25).
A proximidade física entre o quarto da mãe
e o da filha não serviu para diminuir a distância que a narradora sempre sentiu
que a mãe lhe impunha. Nem mesmo o fato de ser “filha pouca”, ou seja, filha
única, após a perda do irmão, a tornou mais apreciável para a mãe. Numa família
tão pequena e de espaço tão exíguo (um quarto, outro quarto e o quê mais?),
existem imensos abismos, que a convivência diária não preencheu. A esperança da
protagonista é que o nascimento de um novo membro possa ocupá-los. Mas é
preciso que seja um menino, um ser humano do sexo masculino, para que possa
validar a existência dessas duas mulheres, irmanadas em sua insignificância. Afinal,
o sentido da vida da mãe também parece ter sido perdido, juntamente com o filho
morto, algo que apenas um neto poderia alterar.
Em “Conta-gotas”, a cidade está
internalizada, entranhada na vivência dessas duas personagens (filha e mãe), que,
em comum, têm o sentimento de menos valia em relação aos homens. Mas em “Motoboy”,
a cidade volta a ser externada, com muitos dos seus principais espaços e vias
sendo desenhados pelo deslocamento da protagonista, que precisa atravessar a
cidade para fazer a matrícula da filha na faculdade:
Puxou por seu famosíssimo bom senso
e foi em direção ao seu carro estacionado próximo ao Departamento de Serviço
Social. Abriu a porta, jogou o calhamaço de provas e apostilas no banco de
trás, deu partida e seguiu pelos contornos das vias da Universidade Federal
que, passando pela guarita, davam acesso à avenida Fernando Corrêa (CARVALHO,
2007, p. 33).
A localização da personagem no espaço
indica uma classe social diferente daquela das protagonistas dos contos
anteriores. Trata-se de uma professora da Universidade Federal de Mato Grosso,
algo explicitado pelo ponto de partida de seu deslocamento e também pelo “calhamaço
de provas e apostilas” que joga no banco de trás do automóvel.
Fonte:
http://www.ufmt.br/ufmt/site/userfiles/editaisingresso/mapasisu.pdf
Nesse pequeno mapa da universidade, a
protagonista partiu provavelmente do estacionamento entre os pontos demarcados
06 e 07 para pegar a via principal e sair pela Guarita 1 e desembocar na
Avenida Fernando Corrêa da Costa. O espaço da Universidade Federal de Mato
Grosso é um importante índice da vida intelectual da cidade e também de
ascensão social para aqueles habitantes que conseguem ingressar ali e
principalmente estabelecer uma carreira acadêmica, como a mulher enfocada no
conto. A questão que se coloca a partir daí é se esse posicionamento social
diferenciado teria tornado a protagonista mais visível do que as mulheres dos
contos anteriores.
Ela parece ser ainda manipulada pela
filha, que, estando em Reserva do Cabaçal, um município a 380 quilômetros de
Cuiabá, famoso por suas cachoeiras e natureza paradisíaca, avisa a mãe que
aquele é o último dia para regularizar a matrícula. Também é significativo o
fato de que a filha não é estudante na mesma universidade em que a mãe trabalha
como professora, uma instituição pública, mas em uma faculdade particular,
situada praticamente do outro lado da cidade. Isso pode indicar que a filha
esforçou-se menos do que a mãe ou que teve uma vida mais confortável, podendo
se dar ao luxo de pagar uma alta mensalidade e ainda usufruir de momentos de
lazer com despreocupação, deixando para a mãe a responsabilidade de resolver as
questões burocráticas: “'...mãe, se você não fizer a minha matrícula eu perco o
vestibular!' Ela sempre fora tão chantageável, era o melhor caminho para
dobrá-la” (CARVALHO, 2007, p. 33).
Depois de passar rapidamente por sua
residência no Jardim das Américas, o que também sinaliza sua extração social,
já que se trata de um bairro de classe média alta, a protagonista segue em sua
missão:
Encontrar uma vaga bem na Praça
Alencastro fê-la crer que os deuses do vestibular estavam ao seu lado. Na
fotocopiadora a fila fluiu inacreditavelmente rápida, os deuses estavam ao seu
lado e eram poderosos, entrou no carro e deu a partida certa de que cumpriria
com garbo a última etapa daquela prova de amor materno. Nada. Tentou novamente.
O automóvel não emitiu nenhum som ou movimento (CARVALHO, 2007, p. 33).
Ela não buscou uma fotocopiadora próxima
da universidade, mas rumou para o centro, como que movida por uma força que a
atraía até ali. A Praça Alencastro simboliza o centro nevrálgico da cidade,
onde todas as rotas se interconectam e onde tudo se resolve de uma forma ou
outra. A região central é o grande polo de atração nas narrativas de Carvalho,
que se desdobram nesse entorno. Estranhamente é ali que o carro da protagonista
não quer mais dar a partida, mas isso abre espaço para o que precisa acontecer
com ela. Ela vai até a matriz e decide pegar um mototáxi, e, então, algo novo
se revela:
A agilidade com que ele se livrou
do trânsito pantanoso do fim da sexta-feira encheu-a de alívio. Quando a moto
atravessou o cruzamento da avenida Ponce com a Prainha, ela já se sentia quase
leve e viu-se segurando a cintura do motoboy com firmeza. Na subida do Seminário
p'rá pegar a General Mello ela já sentia o calor do corpo dele. E as subidas e
descidas da General Mello foram seu melhor play ground. O calor que era do
corpo dele foi se transformando num calor que era seu. Seus joelhos afastados
tendo um corpo másculo bem encaixado no seu entrepernas, desfilando pela cidade
atingira sua libido de quina. Ela foi se sentindo úmida e livre (CARVALHO,
2007, p. 34).
Novamente é o desejo que ilumina essa
existência de mulher, antes tão disciplinada e apagada. A principais vias da
cidade se desenham conforme a libido da personagem vai sendo despertada pela
proximidade com o motoboy.
Fonte: Fonte:
https://www.google.com.br/maps |
Existe, portanto, uma correspondência
entre o corpo da protagonista e o corpo urbano. Os entrecruzamentos que a moto
atravessa refletem a sua região “entrepernas”, que passa a ser o foco da sua
consciência, com o contato com o corpo masculino. Esse momento de iluminação
transforma o dia da personagem, que combina com o rapaz uma nova viagem, da universidade
até Várzea Grande e depois para casa, além de ficar com seu cartão: “[o]
caminhar mais leve e o novo ondulado dos quadris delatam: as coisas podem ficar
muito diferentes quando se tem na bolsa o número do Motoboy” (CARVALHO, 2007,
p. 35).
A figura da moça que faz tudo certo e sobe
na vida é ainda retratada em “Esmoler”:
Viera ao Choppão e por sob a mesa,
os dedos dos pés retesados me contaram da ansiedade; a amiga sentada a sua
frente: nem mais bonita, nem mais rica, só mais plena. Ela, expressão de
Mariete, me contava através dos cotovelos apertados junto às costelas, das
noites emocionantes não havidas, dos sussurros de amor não trocados, da agenda
sem surpresas. Talvez se chamasse Teresa e morasse no Terra Nova num pequeno
apartamento de dois quartos adquirido com a prova do profissional bem-sucedido.
O riso contido e a expressão do rosto ensaiada pra agradar, me falavam que
sempre foi Josiana, querendo aplauso do pai, espanto da mãe, sempre chegou só
um pouquinho atrasada e quis agradar aos professores. Fez sua faculdade e seu
concurso. E nesta sexta à noite, sem que se dê conta, os seus olhos pedem
(CARVALHO, 2007, p. 30).
Esse conto tem a peculiaridade da voz
narrativa: uma espécie de narrador ou narradora-testemunha que observa a moça
no Choppão, um bar tradicional localizado na região central.
Fonte: https://www.google.com.br/maps |
A personagem pode ter qualquer nome, um
indicativo de como é comum a história que sua expressão, gestos e corpo deixam
adivinhar: alguém que sempre fez tudo para agradar, que tirava boas notas,
nunca se atrasava demais, fez a faculdade, passou num concurso e comprou um
pequeno apartamento, uma vida irretocável de boa moça. Tudo isso presumido pelo
narrador ou narradora-testemunha a partir do que está sendo visto. Mas as boas
moças são realmente notadas? O que parece haver de comum também nessa
trajetória é a falta de visibilidade, a ausência de uma verdadeira
individuação. Os olhos da protagonista pedem isso: que alguém realmente a veja,
que perceba seus desejos mais íntimos e a salve dessa existência tão regrada e
monótona.
Mas nem todos os contos do livro trazem
esse tipo de personagem. Há também as moças que não se submeteram. Em “Revelação”,
por exemplo, desde o início da adolescência, a protagonista parece ter um outro
destino assinalado:
[...] Narciso apareceu: 5 anos mais
velho; já tinha um fusca - perfumado. Titubeou entre o sim e o não quando ele a
convidou para dar uma voltinha de carro, titubeou mas só um pouquinho e logo
topou. Não foi só uma volta. Não teve volta, ela nunca mais foi a mesma. Como
se uma revelação tivesse acontecido no mundo inteiro que caiu sobre a vidinha
dela. A partir daí era um “corre cutia” pra escapar da vigilância da mãe, cada
vez mais atônita. Depois do Narciso, veio o Nestor - irmão dele -, depois o
Otávio colega de sala - e aí já não interessava mais quem era “ele”; o que
importava era estar no próprio corpo na hora daquela navegação, na hora daquela
tempestade do sangue, da boca seca, aberta, da respiração cortada, do peito
batendo bravo. Ah universo em incêndio! Nem surra da mãe, nem choro do pai, nem
a fama de galinha, nada mudou sua sina (CARVALHO, 2007, p. 23).
Diferente das demais protagonistas, a
desse conto vivenciou a própria sexualidade desde cedo, sem se deixar levar
pelas amarras sociais. Mas também teve que enfrentar as tentativas de
cerceá-la. Existe toda uma padronização de comportamento que é imposta às
mulheres, e mesmo aquelas que escapam dessa moldura ainda têm que pagar um
preço, não raro alto demais. Seguir a própria verdade é muitas vezes ir contra
os pais e a sociedade. Fugir completamente, com frequência, é impossível, e a
protagonista em algum momento tentou - ou foi forçada a - se adequar, ainda que
em vão: “completa ela não ficou nos 3 anos em que tentou ficar casada,
impossível calar a febre do novo, do improvado” (CARVALHO, 2007, p. 24).
Nessas pequenas narrativas de Carvalho,
tanto as mulheres que, de alguma forma, se domesticaram quanto as indomáveis
não são livres. Sobre elas pesam exigências que não parecem atingir da mesma
forma os homens. Em “Nervoso”, Jussara espera a amiga Sônia, numa “[l]anchonetezinha
chinfrim, estreita e comprida fruto de uma casa cuiabana revisitada” (CARVALHO,
2007, p. 17), para desabafar sobre suas desventuras amorosas.
Aí o Rui veio todo suado, lindo.
Beijou minha boca, perguntou se tinha uma grana para comprar picolé, chamei o
picolezeiro, escolhemos: eu uva, ele limão “ai, Sônia! Cê não imagina como eu
tremia, ele mesmo adiantou 'não desceu?'” “Não! O que é que você vai fazer?”
Ah, Sônia! Cê não sabe como eu queria que ele falasse que queria, que me
queria... ele ficou ali quieto; quando o picolé acabou, ficou riscando o chão
com o palito aí falou: “Você tome a decisão que quiser, cê sempre conheceu
minha situação, né?... É melhor você ir, o jogo vai recomeçar”, ele tava indo pro
campo, voltou e perguntou: “Cê vai falar com meu irmão?” (CARVALHO, 2007, p.
17).
Jussara está grávida de um filho de Rui,
mas ele não pretende assumir o relacionamento ou a criança. Deixa que ela
decida o que fazer, exime-se da responsabilidade. Nesse trecho, o próprio fato
de ele pedir para ela pagar o picolé, num momento que deveria ser de maior
seriedade, já revela um certo abuso e manipulação. A última fala de Rui justifica-se
porque Jussara é, na verdade, namorada de Paulo, seu irmão. Seu principal temor
parece ser o de que o irmão descubra a traição e não a situação de Jussara.
Forçada pela necessidade de encontrar uma saída, Jussara finge que o filho é de
Paulo, que aceita se casar com ela. Enquanto isso, Rui consegue se safar sem
maiores problemas: “[s]abe Sônia, quase que eu ponho tudo a perder, quando a
gente tava escolhendo a data ele comentou: 'Sabe meu irmão, Rui? Ele resolveu
ir embora pro Paraná' eu desatei a chorar, sorte que ele pensou que era
nervoso...” (CARVALHO, 2007, p. 18). Portanto, a liberdade sexual tem um custo
maior para as mulheres do que para os homens, que conseguem escapar ilesos.
Há ainda duas mulheres de mais idade
representadas nos contos “Cadeira de balanço” e “Couve manteiga”. Essas
narrativas também são importantes em virtude da representação do que seria uma
casa tradicional cuiabana. No primeiro deles, a protagonista é uma senhora idosa
que quase não sai mais do casarão da Rua Barão de Melgaço, no Centro-Sul da
capital.
Fonte: https://www.google.com.br/maps
A sua é uma história parecida com a da
jovem Jussara: “muito da memória se perdeu, porém, [...] é recorrente a
lembrança de um certo Cabo Tomé que frequentou-lhe a casa quando os 40 anos
gritavam a urgência do corpo. O rosto dele volta com mais força cada vez que
sua caçula, a rapa do tacho, vem lhe visitar” (CARVALHO, 2007, p. 14). Assim,
por trás das paredes desses casarões tradicionais, também se escondem as
histórias insuspeitas das mulheres que aparentemente viveram toda a sua vida de
acordo com as regras sociais. Há a superfície, de aparência controlada, e a
profundidade dos sentimentos e experiências dessas cidadãs encerradas entre
quatro paredes.
Em “Couve manteiga”, a culinária é o que dá
o sabor à típica residência cuiabana:
Sábado era dia de cozido: todo
sábado; o marido era um antigo funcionário do Bemat; domingo era dia de
lasanha. Todo domingo; o filho mais velho era professor de cursinho, brilhante
na matemática; segunda era dia de galinha: toda segunda; o filho do meio era um
rapaz lindo e estudava na Universidade Federal; terça era dia de Maria Izabel:
toda terça; a filha caçula era a adolescente mais doce que Cuiabá já viu;
quarta era dia de peixe, pacu frito e mujica de pintado: toda quarta; [...]
quinta era dia de costela: toda quinta; ela, ela era esposa e mãe quase
invisível por trás da casa arrumada, da roupa lavada e do cardápio sagrado;
sexta era dia da carne de porco com couve manteiga (CARVALHO, 2007, p. 15).
A repetição da palavra “toda” depois de
cada dia da semana indica a monotonia da vida da protagonista, mesmo com essa
exuberância gastronômica. Não há alteração na rotina semanal do cardápio. A
casa e os filhos são impecáveis, mas ela não deixa de ser quase invisível por
trás disso tudo. Na sexta-feira, o marido traz ainda convidados para saborear a
comida da mulher, um momento de brilho para quem “[s]empre fora premiada com
pouca atenção” (CARVALHO, 2007, p. 15).
No dia específico enfocado no conto, uma
sexta-feira, acontece uma série de contratempos, o gás acaba, o telefone toca
demais, o cães perseguem um gato. O resultado é que a carne de porco sai
ressecada e a couve, amarga. A mulher fica constrangida diante do gerente, que
o marido tinha trazido do trabalho. Mas ninguém diz nada, ela não é confrontada
ou criticada abertamente. Porém, algo muito importante parece ter se perdido: “[l]avou
a louça toda e por último sua faca de lâmina sempre afiada. Olhou em volta,
constatou que tudo estava impecavelmente no lugar, encostou a lâmina no pulso
esquerdo, fechou os olhos e apertou. Firme” (CARVALHO, 2007, p. 16). A única
coisa que dava sentido àquela existência se rompeu, e a saída encontrada é,
então, dar cabo da própria vida, alternativa sentida como melhor do que voltar
para a completa insignificância.
No que se refere à cartografia desenhada
nessas narrativas, todos os pequenos mapas empregados até aqui deixam entrever
que a Cuiabá retratada por Carvalho está principalmente circunscrita ao espaço
entre as regiões Centro-Norte e Centro-Sul. Tal fato não se choca com o que
afirma Moretti a respeito das cidades representadas nas obras literárias. Para
ele, a complexidade urbana é frequentemente reduzida nas narrativas dos
autores, que escolhem enfocar apenas os bairros mais significativos para seus
enredos. Moretti (2003, p. 94) ainda declara que “espaços diferentes não são
apenas paisagens diferentes (embora sejam isso também [...]): são matrizes
narrativas diferentes. Cada espaço determina seu próprio tipo de ações, seu
enredo - seu gênero”.
Carvalho escolhe principalmente o espaço
de uma cuiabania tradicional, seus casarões e ruas da região central da cidade.
Mas a escolha não é feita simplesmente para comemorar tal tradição. Ao
contrário, em sua escrita, atenta às inquietações das personagens, ela revela
as fissuras que se encontram nos paredões das convenções sociais locais. As
mulheres representadas em Conta-gotas
são, em grande parte, invisíveis, emparedadas que estão por regras e mais
regras de comportamento. A invisibilidade atinge diferentes classes sociais e
idades, mas todas as personagens resistem a isso de uma certa maneira. O desejo
pode estar em estado de ebulição nas mais pacatas, encontrando um momento ou
outro para atingir a superfície, ou pode estar em pleno transbordamento nas
mais rebeldes. Mas está sempre presente, tornando vivas essas mulheres que o
ordenamento social pretendia soterrar.
A Cuiabá de Carvalho é, sobretudo, uma
cidade mulher, vista e experimentada por suas mulheres, que vivenciam seus
espaços de forma própria. Os deslocamentos delas por esses locais - ou mesmo a
sua fixação neles - se combinam aos movimentos de sua interioridade. Grandes ou
pequenos anseios são desenhados conforme elas se movem ou ficam paradas nesses
contextos. O fundamental é que elas ocupam a cidade, cujos logradouros reais
são nomeados nas narrativas. São personagens que estão localizadas em espaços
que remetem aos existentes, aterradas, portanto, na realidade urbana de uma
cidade que também precisa urgentemente prestar atenção às narrativas de suas
mulheres.
Referências
CARVALHO, Luciene. Conta-gotas. Cuiabá: Instituto Usina, 2007.
MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu 1800-1900. Trad.: Sandra Guardini
Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
Apoio: Marinete Luzia Francisca de Souza, Monica Maria dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha, Francielly L. Rodrigues da Silva.
Sem precedentes este olhar de Divanize Carbonieri sobre "Conta gotas", de Luciene Carvalho. A mulher cartografando a cidade. Belissimas metaforas da figura feminina!!!!
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