IX Tertúlia Virtual | Vozes e Olhares de uma Poética do Feminino
TERTÚLIAS VIRTUAIS | 03
- por Marta Cortezão
“Quem poderá calcular o calor e a violência de um
coração de poeta quando preso no corpo de uma mulher?” (Virgínia Woolf)
Segundo Woolf, esta pergunta poderia ser feita tanto para as mulheres de seu tempo quanto para as do tempo de Shakespeare. Entretanto, esta pergunta, infelizmente, ainda cai, vergonhosamente, como uma luva, para os nossos tempos tão desajustados da contemporaneidade; basta ler a literatura produzida por mulheres para sentir, de parte a parte, este calor e esta violência que brotam desses corações poetas. Esta voz feminina na poesia que, assumindo-se sujeito pelo poder da palavra, (re)inventa sua (re)existência quando diz sobre os outros e as outras presentes no ambiente a sua volta e/ou ainda em espaços, cujos olhares e cujas vozes esgueiram-se por alcançar. Além de escancarar seu mundo interior, esses corações poetas sangram aquele grito que reverbera com ousadia e ainda revela as tantas vozes silenciosas e silenciadas pelas concepções ideológicas estruturais que teimam em definir um lugar próprio da mulher na sociedade.
São estas vozes, são estes olhares, oriundos das
margens do não-lugar, que se dirigem à trilha do “para além do
não-silenciamento”, decididos a tomar as rédeas do discurso poético e
(re)ocupar os lugares que os padrões tradicionais de poder, dia a dia, lhes vêm
negando. São estas vozes e estes olhares, no feminino, que (re)contam o
contexto histórico-social vivido e que através da palavra se (re)vestem de
humanidade para externar aquilo que é humano e que humaniza. É deste viés
marginal que a poesia também se alimenta como gênero poético, inspirando
denúncia e liberdade, dois tênues fios que pendem dos corações poetas, através das
singulares vozes e subjetivos olhares, com o intuito de descortinar
invisibilidades.
Quando estas autoras falam de si mesmas, estão também
ressignificando-se e comungando do ato poético de existir pela palavra. Do
coração poeta de Guataçara Silva, no poema “Paradoxum Poiesis” pende o verso
“Escrever é um ato de amor”, já que “a poesia reside em todos os lugares”; em
seu poema “Esboço de mim”, colho a palavra que busca esboçar a própria essência
existencial, mergulhando em idiossincrasias onde os “rabiscos (...) não-
retilíneos, vezes guiados pela loucura”, são realçados pelos “desejos/ de
acertos e triunfos, porque o eu lírico vive uma busca constante, esse
“processo/ que nunca terá fim” e agarra-se em constatações, afirmando, no poema
“Escolhas” que “entre umas escolhas e outras/ Todas se fazem caminho”, porque
todas são formas de encontrar-se no mundo.
Paradoxum Poiesis
Escrever é um ato de
amor
Embora amor doa e fira
Mas quando forte e bom
As linhas são afagos e
consolo
E são incentivo na
caminhada
Essência não é exalada
só pelos poros
Também flui da alma e da
escrita
Ser poeta não é pedra, é
ser!...
É ser novo cada dia, é
ser bondade
É ser misericordioso, é
ser alegria
É ser lágrima, é ser
fome, é ser tristeza
É ser luz, é ser amor e
glória...
E muitos outros
paradoxos
A poesia reside em todos
os lugares
Em todos os seres e
sentimentos
Porque poesia não é só
coisa de pele...
E poesia não é só alma,
só emoção
Nem só carne e só
coração...
Poesia se aprende, se
ensina e se vive!
Poesia é amor em raios
de ódio
Poesia é água em
intimidade de óleo
Poesia é fogo que
persegue cinza
Poesia é calor que
assassina frio
Poesia é luz que devasta
escuridão
Poesia é coração dentro
d'alma
Poesia é vida que
peleja com morte
Poesia é tanta coisa...
E é todos os sentimentos
bons e ruins
Poesia é o tudo e é
nada!...
É o tudo ou nada!
Esboço de Mim
Sou feita de um
traçado, um esboço...
Uma brincadeira
de Deus, que entre
riscos e
borrões, se distraía me criando.
Hoje eu me
adorno com as cores e as flores
que anseio para
o meu jardim.
Meus rabiscos
são todos contínuos
não-retilíneos,
vezes guiados pela loucura
e por desvios,
onde matizo cada linha
riscada
realçando-as com os desejos
de acertos e
triunfos.
Mas os enganos e
os erros eu não apago:
conserto,
refaço, contorno, perfaço
pois os meus
traços são fortes, e entre
altos e baixos
vou ligando, unindo, atando
tudo em mim,
porque sou um processo
que nunca terá
fim.
A terra onde
piso para avançar
é cheia de
quadros, de quadrados
com retângulos,
que me perdem de mim
mas que deixam
vivas todas as coisas
que eu já vivi,
e mesmo sendo um
esboço vivo, já
projetado por Deus
consigo redesenhar-me
quase que por inteiro
e me torno uma
imagem melhor.
Escolhas
Sou feita das escolhas
Que faço... e falho!
Em muitas me calo
E tento esquecer.
Escolho fugas
Que se fazem prelúdio
Em cada alvorecer.
Escolhas certas de incertezas vazias
Que envolvem todo
O meu ser.
Escolho o tempo de esperança
Que nunca se cansa
E enfrenta tudo que há de acontecer
Escolho enaltecer a vida,
Que ela tem muito a me oferecer.
Escolho sorrir e também chorar que em mim há muito
aflorar
Escolho ser paz,
Embora às vezes me faça temporal, para extravasar
todas as minhas decepções e frustrações.
E muitas escolhas jamais as farei
Por que prefiro ser luz
E não escuridão...
Escolho seguir o caminho
E entre flores e espinho eu sempre me encontrarei
E entre umas escolhas e outras
Todas se fazem caminho, pelo qual percorrei...
Da voz e do olhar poéticos de Maria Elizabete, no
poema “Esquecimento” bradam os versos “sigo a rima sem andar na contramão (...)
Eu de mim sou erupção, / recheada por medos (...) feita de sonhos/ e
substâncias ancestrais” que, em diálogo com o poema “Flor-semente”, este canto
poético revela a poesia como beleza maior, delicadeza em flor, poesia que
germina como salvação: “Quando a beleza / não cabe dentro de nós,/ ela germina
e vira flor./ Flor em forma/ de palavras”. (Livro: “Asas do inaudível em luzes de vaga-lume” /2019). A poética de Maria
Elizabete também é consciente da invisibilidade que marginaliza vozes
femininas; no poema “Autoria” surge uma voz que se olha no espelho, se olha de
fora para dentro e vê-se refletida numa “multidão de mulheres invisíveis,/
perdidas em labirintos” que, em diálogo com o poema “Outras vozes”, são “outras
(mulheres) (...) apagadas sem justiça” e “que nem pés, nem asas/ são suficientes
para nos preencher/ de liberdade”. Então pergunto: e como se pode calcular a
dor e a violência deste coração de poeta?
Esquecimento
Eu em mim sou mansidão,
serenidade que acalma,
sigo a rima sem andar na
contramão.
Com a alma descolada do corpo,
fantoche sem coração.
Eu de mim sou erupção,
recheada por medos,
sem discursos,
sem mentiras ou verdades,
feita de sonhos
e substâncias ancestrais.
Vivendo na minha concha,
cheia de mim, transbordante,
sem ser vista em liberdade,
me desmancho,
me recrio,
me escrevo...
Só
para não me esquecer.
(Livro:
“Asas do inaudível em luzes de vaga-lume”
/2019)
Autoria
De frente ao espelho,
outras caminham em mim.
Desajeitada,
tento me recompor.
Alucinação?
Delírio?
Fantasia?
Miragem?
Sonho?
Volto a mirar-me...
Cada uma em um caminho,
feito Hera
com sua ferradura de sonhos.
Fecho os olhos,
miragem de uma figura
entrecortada,
baixa definição.
No espelho, agora, só o vácuo,
recorte de um corpo inerte,
vazio, sem essência.
Alucinação?
Volto a mirar-me...
E me vejo pelo espelho.
Há outras presas em mim,
multidão de mulheres invisíveis,
perdidas em labirintos,
ilusória a nitidez,
projetada no espelho.
Almas presas em mim agonizam.
Volto a mirar-me...
Cacos de espelhos,
imagens múltiplas,
eu com fardos de outras
humanidades.
O espelho é um retrato descrente
de um eu sintetizado.
Em mim pulsam vidas alheias,
imagem recortada de um
pré-moldado.
Fantasia?
Volto a mirar-me...
O espelho não me cabe,
é um falso moralista.
Há outras faces ocultas
vivendo dentro de mim.
Nesta imagem postiça projetada no
espelho
nunca vou me encontrar.
Miragem?
Volto a mirar-me...
Este espelho social
não detém a liquidez.
Carrego outras mulheres
feridas de mortes com simples
beliscaduras.
Meu espelho é marginal.
Acordo com os acordes do sol
(inexpugnavelmente).
Miro os meus caminhos de pedras,
cacos de nós no espelho.
Sonho?
Não!
Uma
imagem autoral.
(Livro:
“Asas do inaudível em luzes de vaga-lume”
/2019)
Do coração de poeta, de Jalna Gordiano, jorram
golfadas de insatisfações viscerais, uma voz poética, incansavelmente
aguerrida, partidária das desobediências, salta dos versos, no poema “Pequenos
frascos”, em conselhos audaciosos “cuidado com o cuidado (...) Tenham pequenos
frascos de veneno para usar como perfume/ Obedecer sempre, mas apenas aos seus
anseios”, porque esta voz poética gordiana, no poema “Navios”, sabe que não é
preciso “de asas para ser liberta (ela sabe) flutuar na destreza de ignorar o
próximo/ E o anterior”, ela sabe que seu “feminismozinho de merda” é que a fez
“chegar até aqui viva/ Depois de algumas humilhações, umas bofetadas na cara”,
depois de a ter tirado “de dentro do ônibus do estupro
coletivo” e depois de tantas durezas da vida é ele, esse “feminismozinho de
merda” que mantém esta voz poética viva e sonora.
Pequenos frascos
Meu corpo pode estar
fragilizado temporariamente, mas minha boca continua intacta ao proferir
maldições.
São dias de puro
destilamento de veneno azul enegrecido, e as fogueiras estão em fogo baixo.
Acesas, ainda.
É preciso saber dosar
boas atitudes com pensamentos maldosos, é preciso que se cultive a juventude
com pequenas doses de licores amargos.
Cuidado com o
cuidado.
As luzes de almas
jovens também apagam e corações incandescentes apodrecem no pé.
Que os deuses
escrevam sempre os melhores roteiros e que eu tenha força para alterar os
finais.
Façam filhos com
vapores estelares.
Tenham pequenos
frascos de veneno para usar como perfume.
Mantenham a cabeça
erguida para que as lágrimas desçam mais depressa, retas.
Não se curvem aos
outros.
Obedecer, sempre, mas
apenas aos seus anseios.
Que venham as noites
e os dias escaldantes.
E que dancemos
conforme a brisa que passa dos ônibus que não nos atropelam.
Navios
Não preciso de asas
para ser liberta
Sei flutuar na
destreza de ignorar o próximo
E o anterior.
Ora,
Qualquer tolo sabe
que
Até mesmo um cachorro
que se lambe frente ao altar
Envergonhando os
fiéis
Tem mais dignidade
que qualquer um deles.
Confesso que senti
mais ao ver o cadáver de um pombo
Sendo esmagado pelos
ônibus
Que saber de sua
morte.
Você sempre quis ir
embora.
Eu vou sentar no
batente de casa
E esperar o convite
do tédio.
As guerras que travei
não me deram louros,
Apenas muletas.
E sigo aguardando
ainda assim a tal de paz...
Existe um pôr do sol
dourado por trás de cada tarde chuvosa.
Existe uma caixa de
analgésicos esquecida
Perdendo a validade
Para cada ser que dói
por inteiro.
Não há sentido algum
no amor
Não há sentido algum
na fé;
O sentido único que
existe em estar vivo é
Para baixo
Voar às avessas é o
derradeiro ato de quem teima!
Por isso ouça-me:
Queime seus marujos
Deixe seus navios
intactos!
A viagem não é quem
lhe fará mal.
O mal é ter sentido a
beleza na sua retina
E perder de vista a
própria vida
Enxergar sua alma
embolorada do alto do abismo
Que se cria com o simples fato de nascer.
Meu feminismozinho de merda
O meu
feminismozinho de merda
Me deixou chegar
até aqui viva
Depois de
algumas humilhações, umas bofetadas na cara
O meu
feminismozinho de merda
Me fez escapar
de um clitóris arrancado
De ser estuprada
pelo marido
O meu
feminismozinho de merda
Apelidou-me de
puta e sapata
Enfiou meu pé na
lama
Não me permitiu
um CASAMENTO DE SUCESSO
O meu
feminismozinho de merda
Não deixou o
pastor ungir meu rabo, não me fez santa
Me fez mãe
solteira, mãe de
Dois filhos de pais
diferentes
O meu
feminismozinho de merda
Me tirou de
dentro do ônibus do estupro coletivo
O meu feminismozinho
de merda
Me esfriou de
uma morte do fogão
Não me deixou
parada num salão enquanto alguém cozinhava meus miolos
Não me fez a
rainha do lar
Não me cobriu
com o manto da purificação
O meu
feminismozinho de merda
Me desnudou,
abriu meus olhos
Me tirou do
plástico e me fez carne
Para chorar
todas as lágrimas das mulheres espancadas,
Queimadas,
arrastadas para o mato,
violadas por
madeiras que vararam suas bocas ao lado de suas filhas.
Muito obrigada
senhores,
digo não às
formas de sucesso social.
Até aqui tem me
salvado o meu o meu feminismozinho de merda.
E para concluir, trago a poética de Vania Clares, onde a voz feminina também surge como mulher-sujeito de sua própria história, cujo eu lírico, no poema “Do silêncio do poeta”, eleva a voz, em tom profético, para dizer que “diante do caos/ fez-se a catarse (...) e que “se a voz do poeta se calar/ (acaba-se também) a esperança” porque basta de tanto silêncio e pouca visibilidade, é preciso ouvir do coração poeta, como diz o poema “Legado”, “a música da tua alma/ entoada em liberdade”. É preciso, como afirma esta voz poética no poema “Aragem”, aprender com a fragilidade do “casulo solitário/ cru desajeitado e denso (...) que se pode vislumbrar “as asas reluzentes/ de cores e círculos interligados”. São estas vozes e estes olhares que “ampliam” o lugar de fala e seu papel social através da consciência identitária híbrida presente no discurso poético dessas autoras. E mais uma vez me pergunto: e como se pode calcular o calor e a violência deste coração de poeta? Impossível responder à pergunta de Woolf, mas pude sentir e vivenciar “o calor e a violência” que habitam o coração de poeta destas mulheres e autoras contemporâneas.
condensados
de mim.
IX Tertúlia Virtual, emitida em 16/10/2020.
Referências
MOSER, Benjamin. Prefácio. In: LISPECTOR, Clarice. “Todos os Contos”.
Disponível em: https://lelivros.love/parceiros/.
Acesso: 12 de março de 2020.
Wolkoff, Gisele G. “A Poesia Feminina Contemporânea em
Portugal”. Disponível em: file:///C:/Users/admin/Downloads/5368-8696-1-SM.pdf.
Acesso: 14 de novembro de 2020.
Registro aqui minha gratidão à Marta Cortezao e Chris Herrmann pela respeito e incentivo à poesia. Sendo mulher e poeta fico muito orgulhosa em ver nossos trabalhos valorizados com tanta generosidade e acolhida. Abraço e parabéns pela matéria!
ResponderExcluirQuerida Vania Clares, obrigada pelo seu tão importante registro e, imensamente, seu apreço. Que este trabalho frutifique e alcance muitas poetas e escritoras. Um fraterno abraço.
ResponderExcluirTrabalho lindo, Marta Cortezão🥰 Foi um presente conversar com essas escritoras/poetas maravilhosas e, como se não bastasse, recebo essa abordagem entrelaçando nossas vozes🤗. Grande abraço a todas!!!
ResponderExcluirUm presente lindo foi tê-la abrilhantando nossa Tertúlia Virtual, com sua poética de especial encantamento. Obrigada pelas suas gentis palavras e meus agradecimentos a você também. Um abraço.
ExcluirChris Hermann, a você também meu carinho. Grata pela generosidade de sempre😘
ResponderExcluirChris Herrmann sempre cedendo espaços para a voz do feminino.😘😘
ExcluirEscolha acertada a poesia! Essa leitura nos faz divagar por labirintos desafiadores!
ResponderExcluirObrigada pela sua leitura. É uma grande alegria tê-la conosco. Um abraço amazônico.💋💋💋
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