Um poema de Mar Becker | "à parte do reino"
Engin Akyurt. Fonte: pixabay. |
Um poema de Mar Becker
à parte do reino
as mulheres são todas iguais
todas, sem exceção. as de ontem, iguais às de hoje, as de
hoje, iguais
às de amanhã
que não se engane o meu amor, porque em breve
a ex dele voltará através de mim, para dizer pela minha boca
o que não pôde dizer pela sua
eu farei o mesmo, pela boca da próxima
e assim sucessivamente
é uma maldição
entramos na vida de um homem como se fôssemos cada uma
uma só
com o passar do tempo nos tornamos todas iguais
juramos sempre o mesmo amor no começo
rogamos sempre as mesmas pragas antes de bater a porta, no
final
sempre a mesma garganta
a mesma língua de gárgula
.
as mulheres são todas iguais
por isso quando caminho pelo bairro me olho nos olhos que me
olham
sou a moça parada à janela, translúcida
sou a que atravessa o dia pensando em rosas
do povo
de hiroshima
de gertrude stein
de ninguém
estou na rua, mas estou em casa
estou em mim mesma como no meio de uma catedral vazia, o sino sendo tangido pelo silêncio
.
o meu amor não sabe
se disser o nome de uma mulher, dirá o nome de todas
somos em certo sentido indeléveis como ar. somos todas
marias
linhas de sombra e luz, fina fenda
somos um pássaro
e há um mundo inteiro suspenso nos fios de nossa respiração
.
li esses dias que os ciclos de sangue de mulheres que moram
juntas tornam-se sincrônicos. vou mais longe, digo que também passamos a nos
encontrar
em sonho. nessas horas, até chamamos umas às outras pelo
nome
(em voz baixa, para que não se rompa
o fio de prata)
.
as mulheres são todas iguais, basta olhar com atenção
veja, por exemplo:
pouco depois de se separar de ted, sylvia se suicidou usando
gás de cozinha
mais tarde, assia, a nova esposa, repetiu o ato
a mesma cena
o mesmo gás
o mesmo homem
as mulheres são todas iguais
.
pelas mãos de salomé, também eu servi a cabeça de joão
batista numa bandeja
pelas mãos de lucrécia bórgia, também eu misturei cantarella
no vinho
e terminei o dia envenenando um marido
.
esta noite o meu amor se deitará com sua nova namorada. nela
estaremos todas
repetíveis, labirínticas
espelhos
espectros umas das outras
de madrugada, ele será seduzido com beijos e cheiros. quando
descobrir que é a mesma mulher de sempre
o mesmo antigo demônio fêmeo
nessa hora será tarde. já a terá fecundado
já terá continuado nossa linhagem má
numa filha
esta série, ainda em construção, dedico-a a algumas das muitas poetas vivas do nosso tempo. são mulheres que leio e que me acompanham, me influenciam. ao longo dos poemas que a compõem, há passagens remetendo a versos de autoria de algumas delas. discrimino-os abaixo.
adriane garcia (“o mundo inteiro / depende / do pulsar
cardíaco / do pássaro”). ingrid morandian. isabela penov (“aves marias – ou a
revoada”). lisa alves. maiara gouveia (“antes que se rompa o fio de prata”). mariana
botelho (“o silêncio tange o sino”). nydia bonetti (“quem sabe uma rosa / do
povo / de hiroshima / de gertrud / de ninguém”). raquel gaio. roberta tostes
daniel (“linhas de sombra, escalas de cinza”). samantha abreu. wanda monteiro
(“abre a fina fenda”).
Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e atualmente
mora em São Paulo (SP). Publicou A mulher submersa, seu primeiro livro
(poesia), em maio de 2020, pela Editora Urutau (duas edições, uma no Brasil e
outra em Portugal).
Fantástico!
ResponderExcluirMaravilhoso!
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