Neide Silva salva o Cerrado
O conjunto de telas sobre as quais me detenho pode ser observado como um símbolo espelhado do desejo humano diante de perdas ou catástrofes limítrofes. Utilizando a técnica acrílico sobre tela e paleta de cores vibrantes, mais do que a poesia das flores da paisagem local, do Cerrado, essa natureza tão nossa, a obra recente de Neide Silva resgata a natureza num movimento (talvez inconsciente) que perpetua imagens, matizes e formas para salvar o que vem virando cinza sob os nossos olhos. O movimento se dá no sentido de recuperar os tons da vida que pulsa como refúgio, santuário, paraíso terreal pleno de mel, em que as flores dos frutos antecedem o banquete de delícias. Se o Pantanal e o Cerrado arderam em chamas, a artista reverte o cenário de agonia que se espalhou e manchou os céus com um rastro de tons obscuros, dantescos e sufocantes. Neide Silva, filha da terra, como quem se recusa a aceitar tal realidade, subverte o estado hostil em que tudo arde em fogo e desolação e constrói figuras florais, férteis, amalgamando em tons vivazes a exuberância do bioma local. Olho para as telas da artista como se olhasse para um poema. A linguagem é outra, sei disso, entretanto a poesia das imagens surge como metáfora de luz, de energia criadora e criativa, de fenômeno fotossintetizante e, portanto, necessário à transmutação de cinzas em colorido vibrante. O que parecia irrecuperável, surge como promessa de vida, e vida em abundância.
A Caliandra, espécie de flor-símbolo do Cerrado, ilumina a coleção com tons em vermelho, laranja e verde. O efeito estimulante do vermelho e do laranja em perspectiva sobre o fundo verde, pigmento que transmite vigor e frescor, fazem da flor, a meu ver, a rainha da coleção. A técnica do pontilhado, que forma uma coroa em branco, ilumina o acabamento, conferindo majestade e altivez ou, ainda, uma aura de luz que envolve e protege a flor inteira. O vermelho está presente também nas telas “Flores de pequi”, “Algodão do cerrado” e “Amores”, esta última estampando o motivo floral no manto que encobre o beijo dos amantes, numa releitura delicada da famosa pintura do simbolista austríaco Gustav Klimt, “O beijo”. A figura do par apaixonado de Neide Silva aparece em perspectiva, trazendo um círculo ao fundo, à altura das cabeças do casal, que pode ser interpretado como uma auréola formada pela lua cheia. O amor se faz, metaforizado, entre as flores do Cerrado.
No conjunto de espécies apresentado há a predominância do azul e do verde, pigmentações de ação relaxante e sedativa que funcionam como bálsamo para as feridas abertas pela destruição do fogo que, há pouco, assolou duramente a paisagem. Do belíssimo “Capim do cerrado”, passando pelas “Flores de cajuzinhos do cerrado” até a “Flores no cerrado”, esses pigmentos conferem suavidade e harmonia à elaboração estética da artista. O círculo cromático se completa com as telas “Pau-terra” e “Meia taça e taco de golfe”, nas quais o marrom sugere a rusticidade, estabilidade e constância, e o branco instaura a verdade, a pureza e o brilho. Caso o admirador se surpreenda com a ideia de ruptura que a tela “Meia taça e taco de golfe” produz em meio à sequência de flores, há que se deter com mais atenção à elaborada intenção de Silva. As pequenas flores brancas, límpidas sob o azul, contrastam com o vermelho intenso da taça de vinho que repousa sobre a mesa revestida com toalha floral. As florezinhas da toalha são rosadas, e aparecem também na tela “Flores de cajuzinhos” em delicado degradê, saindo do branco até os rosas mais intensos. O rosa simboliza romance e traz em si a sensualidade e a beleza femininas, enquanto o marrom, entre outros sentidos, significa conservadorismo e moralismo. Assim, o impacto desse contraste tonal e metafórico, que surge na disposição da figura do taco de golfe marrom, de madeira, das frágeis flores rosa e, por acréscimo, do líquido tinto do vinho, bebida dionisíaca conhecida por liberar as amarras convencionais, reside no contraste entre os elementos expostos na tela. A oposição e a junção, a disputa e a trégua, a resistência e o gozo. É o jogo sedutor entre força e delicadeza, insinuação e consentimento, morte e vida que está posto à mesa.
Neide Silva surpreende com imagens sutis e reveladoras em cujas metáforas pode residir o maior segredo de sua obra. O que está claro, porém, é que o tema da artista mistura o Cerrado à vida, incorporando-o ao seu fazer artístico com doses incontestáveis de sedução e delicadeza. Assim como um bioma inteiro renasce às primeiras chuvas numa demonstração de força e resiliência, também Neide Silva regenera sua arte a cada nova coleção de imagens, surpreendendo pela força e diversidade de sua capacidade criadora.
Marli Walker
|
Algodão do Cerrado. Neide Silva
|
|
Flores de Cajuzinho do Cerrado. Neide Silva
|
|
Caliandra. Neide Silva.
|
|
Pau-terra. Neide Silva
|
|
Capim do Cerrado. Neide Silva.
|
Tudo em harmonia! Parabéns a ambas pela beleza das imagens e pelo texto que tão bem as traduz.
ResponderExcluirQue maravilha! Parabéns, Marli, pelo trabalho primoroso, belíssimo. Parabéns, Vilma, pelo excelente texto.
ResponderExcluirEssa publicação está um luxo! Parabéns, Neide, por sua maravilhosa arte. Marli, pelo belo texto. Divanize pela excelente publicação! Amei tudo!! 🤍
ResponderExcluirFiquei encantada com o capim do cerrado ✨👏👏 senti a magia daqui
ResponderExcluir