A Face da Divícia | Os caminhões e a ponte
Coluna 01 |
Os caminhões e a ponte*
- por Divanize Carbonieri
no dia 12 de março estava num auditório lotado, em mato grosso ninguém
parecia ainda temer o vírus, eu ouvia sobre as mortes na itália, lia a respeito
do isolamento na china, os primeiros casos em são paulo, não estava mal
informada, mas no fundo pensava que seria algo como a febre amarela de 2018,
dela só lembrava dos bugios morrendo como moscas na mata, claro, porque ninguém
iria vacinar macacos, vacina aí sendo justamente o diferencial, ao contrário da
febre amarela, para o novo vírus ainda não havia (e não há) imunização, mesmo
isso me passou despercebido, não atinei que estava diante de algo mais
ameaçador, de 13 a 18 de março tentei vender meus livros, visitei muitas casas,
levando os exemplares, encontrei amigos que queriam comprá-los, nessa altura já
achava que seria necessária alguma restrição de deslocamento, mas não o
confinamento, imaginava que haveria momentos de socialização, mais raros,
porém, existentes de qualquer forma, não sei como ainda mantinha essa cegueira,
ignoro o que faltava, mas o fato é que não enxergava a situação como devia, então
vi as imagens dos caminhões de bérgamo, uma extensa fila deles, transportando
caixões com cadáveres que a cidade não dava mais conta de enterrar ou cremar, nesse
momento entendi, compreendi o sentido de tudo, “uma imagem vale mais que mil
palavras”, contemplar aquilo foi como mergulhar numa piscina de água gelada, sendo
percorrida por um calafrio na alma, pior do que qualquer tremor físico, talvez
tenha pensado que iríamos todos morrer, como se um grande comboio fúnebre
servisse de alegoria para a humanidade inteira, “por quem os sinos dobram,
dobram sempre por ti”, quando alguém morre, sempre se sabe que também se está
morrendo, um pouco por dia, até que não reste mais nada, a morte de outro ser
humano acabando com a ilusão de que não haverá fim para essa jornada, ali estava
observando um cortejo infindável, tudo que conhecia do mundo desfilando para a
morte, parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, um séquito de futuros
defuntos, à noite sonhei que andava por uma ponte de concreto, num determinado
momento o pavimento firme se acabava, e restava apenas a estrutura de vigas de
metal e arame, somente o esqueleto da construção, mas não parei, continuei
caminhando sobre aquilo, sentindo tudo oscilar sob meus pés, evitava olhar para
baixo, a realidade da acrofobia invadindo também o sonho, portanto, não sei
dizer qual a altura nem o que havia embaixo, mas pela sensação de pavor, sabia
que estava em perigo como nunca antes, por fim, cheguei à outra margem, sã e
salva, logo em seguida alguém do meu lado se atirou sobre a ponte, e ela ruiu, justo
ela, que havia sido generosa comigo, permitindo que estivesse agora em segurança,
a desgraça de outros sendo dolorosa para mim, mas sem me tocar de fato, “mil
cairão ao teu lado, e dez mil, à tua direita, mas tu não serás atingido”, como
se fosse possível permanecer incólume quando outros sofrem, enfim, de qualquer
forma a forca não parecia estar em volta de meu pescoço, de manhã sabia que o
sonho retratava o que viria, tinha recebido um presente do inconsciente, a
ideia de que atravessaria o período de turbulência ilesa, pelo menos passei a
acreditar nisso, sem dúvida um sonho de resiliência, mostrando que não é bom
abandonar-se à vulnerabilidade, afinal, por que olhar para baixo, se isso só
vai trazer mais vertigem e desequilíbrio, agora quando me assalta o medo, porque
ele de quando em quando aparece, penso nisso, a força dessa cena onírica também
se impõe, num universo de palavras, declarações minimizando a pandemia, ou
relatos sobre a sua gravidade, foram essas duas imagens que me impressionaram,
aquela acontecida no mundo sensível, chegada a mim por meio de lentes e telas, obrigando-me
a me ancorar nesse solo de morte e destruição, e a criada pelo sonho, não a
partir do nada, mas tendo como base resquícios do vivenciado, alando-me à
esperança de sobreviver,
* Crônica escrita em maio de 2020 e publicada no livro Quarenta em quarentena: 40 visões de um mundo em pandemia, organizado pela Oficina Raquel, e que pode ser baixado gratuitamente neste link:
https://www.amazon.com.br/Quarenta-quarentena-vis%C3%B5es-mundo-pandemia-ebook/dp/B08LFY3D3V
Sobrevivendo estamos a duras penas. A leitura nos salva, já baixei para ler os outros contos também.
ResponderExcluirCorrigindo que não são contos e sim crônicas.
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