Coluna 05 | Fala aí... Carlota Marques Canha (Portugal)
A saudade de já não ter ou poder é bem maior
por Carlota Marques Canha (autora convidada)
Tanto se fala de “sau.da.de” como aquele sentimento de nostalgia que corrói, que dilacera sem nos apercebermo-nos como e quando surge, mas está lá bem presente dentro de cada um de nós.
Dói bem mais do que uma
ferida aberta que nunca cicatriza ou um trambolhão num dia qualquer que nos
deixa uma lesão, embora efémera, é desconfortante, é penetrante, até esgotante
e imensurável quando se pensa que vai passar como tantas coisas, mas não passa,
agudiza-se a cada hora, a cada dia.
Só de pensarmos ou
idealizarmos algo pelo qual norteamos a nossa atenção e pensamento e que não
conseguimos atingir pelas barreiras que defrontamos, pelas vicissitudes da vida
que temos de suportar e viver com, é uma sensação tão agreste de saudade, pelo
motivo de já não ter ou de poder que o tempo e nós mesmos já não vamos
conseguir recuperar.
Ter saudade do tempo,
saudade dos outros, saudade da cidade que nos viu nascer e crescer, saudade dos
amigos, da família, dos que estão longe, dos que se perfilam até no nosso
imaginário, até a saudade de fazer parar o relógio do tempo, saudade da
ausência mesmo da consentida - saudade, atrás de saudade de saborear momentos
que se esgotam na sombra do silêncio e da melancolia que assola todos os nossos
dias.
O que é ter saudade, que
não é mais do que uma melodia de não
sabermos explicar uma emoção, um sentimento que não queremos que invada o
pensamento, que nos deixe um travo seco na garganta de medo, de sofrimento e
até de mágoa do que não fizemos ou deixámos de fazer porque fomos acometidos de
cobardia, de falta de inércia, de falta de convicção, de coragem, sim essa que
nos leva mais longe e que só percebemos do que somos capazes e até onde conseguimos ir quando a colocamos
em prática.
Saudade é não sabermos
mesmo o que é realmente, é não querer pensar quando tudo nos causa saudade,
ideia de perda do que tivemos ou fomos, será mesmo assim?
Saudade é ouvir música
que perdura nos ouvidos e no olhar de quem nos lembra tanto, que pensamos e até
achamos um disparate pensar, que adiamos um olá, que adiamos consecutivamente
um telefonema, que adiamos o tal abraço de que somos privamos há tanto tempo - apenas
sabemos que o outro, os outros existem e talvez também sintam a mesma saudade
do que nós ou talvez não, isto porque a sociedade obriga-nos a escamotear
sentimentos, sensações, a privarmo-nos de sermos humanos com dores interiores e
externas, essas são as que estão mais visíveis, mas as interiores, as
cicatrizes da alma, perduram sempre, são uma eternidade e somente o tempo
suaviza, mas não anula.
A saudade de hoje é a
mesma saudade de ontem, mas hoje sentimos com outra intensidade, com outra
angústia quando somos privamos de sermos ou de termos, particularmente quando
perdemos a essência de sermos homens e mulheres que sentimos e perante esse
sentimento agimos com incertezas, com receios, mas nutrimos da mesma vontade de
saborear os melhores momentos que a vida nos oferece, de estarmos e de
convivermos com aqueles que fazem a diferença na nossa história de vida.
A saudade de estarmos no
trabalho, com os colegas, com o chefe, com os parceiros de atividade, a saudade
dos odores diferentes, da rotina premente e até do stress agressivo com o qual
sabemos viver e conviver, saudade dos filhos, dos familiares, de todos os que
estão longe ou que já partiram injustamente pelo trilho da vida e que não
podemos ver ou estar, porque a hora é de resiliência, de bravura perante os
sentimentos.
Não bastará de sermos os
corretos, os bem disciplinados que até temos sentimentos, mas não podemos
manifestar ou revelar. É mais fácil agirmos como máquinas não dotadas de
sentimentos, mas da faculdade da decisão de agirmos herculeamente, de virarmos
as costas perante as circunstâncias.
Contudo, é mais doloroso
conviver com a saudade de já não ser ou mais poder, de não ser capaz de
disfarçar as lágrimas que caem copiosamente quando ouvimos a tal música, o tal
fado da “saudade” quando pensamos naquele ou naquela que amamos e que estamos
privados da sua companhia física, da sua companhia até sonora de um olá, de um
mero telefonema ou de uma mensagem de texto nas redes sociais, no
telemóvel, saudade de sabermos que
existe que está lá, saudade de sermos o que já fomos que já não somos mais, que
o tempo já apagou e deixou as marcas visíveis de que já não podemos mudar o
curso do relógio, da hora, dos minutos, dos segundos.
Pior dor do que cairmos, pior
dor do que um murro forte no estômago sem reação, do que uma ferida que jorra
sangue vermelho que não conseguimos conter até ser estancada e tratada, pior dor
do que entalarmos o dedo no elevador do prédio quando às pressas tentávamos
colocar as compras do supermercado, pior dor de tudo, que nos rodeia, que nos incomoda
marginalmente, de mesmo tudo que possamos sentir e imaginar é a dor da saudade
de já não ter ou poder mais.
©Todos os Direitos de Autor reservados nos termos da Lei 50/2004, de 24 de agosto
Carlota Marques Canha, nascida e natural de Lisboa é licenciada em Tradução económica-jurídica na vertente francês e inglês pela Universidade Europeia e com uma Pós-graduação em Gestão Comercial e Marketing pelo ISTE Porto. Exerce funções de Assessoria na Dir. Jurídica de grupo de retalho.
Em Dezembro de 2018 lançou o seu primeiro livro de poesia “Agarrar o tempo -
Pensamentos sem tempo” pela editora Chiado e, desde esse momento tem
participado em vários projetos coletivos de poesia Portugal-Brasil, com a
promoção da In-Finita Portugal e também em coletivos de poesia promovidos pela
Edições Vieira da Silva.
Para além do género de poesia gosta de escrever prosa poética, contos e
letras originais de músicas.
Redes Sociais:
Facebook: Página de Autora: @voupediraluaquenaosevaembora
@Carlota S. Marques Canha
Instagram: @carlota_marquescanha_autora
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