Um conto de Maria Amélia Elói | "Fécula"
Luis Gregório por Pixabay. |
Um conto de Maria Amélia Elói
Fécula
Você precisa dar uma sova bem dada. Sem dó. Amassar muito
mesmo, com jeito, com força, até desmanchar cada caroço. O pão de queijo é um
milagre — ela costumava dizer, sorrindo, com as mãos melecadas.
Não o pão de queijo que se compra na padaria, no supermercado
ou na lanchonete. Não o que já aparece enrolado, congelado, unidades
desgrudáveis (às vezes não tão fáceis de separar), com marca mineira no pacote
plástico, pronto pra ir ao forno. Nem o que chega assado às três e quarenta da
tarde, num pacote de papel pardo, pelo motociclista do aplicativo que usa
máscara bamba sob o nariz. Nem muito menos o que se recebe à meia-noite, pra
aproveitar o seu ubereatsdescontão,
entregue pela ciclista grávida quase rebentando, sob chuva despejada de balde.
Não esse pronto que lhe oferecem a todo o tempo, em grande escala, instantâneo.
Esse tipo de pão de quê pode saciar a ânsia calórico-proteica do seu marido,
ser calmante para o filhote que não aceita dormir agora, pode reanimar você
para mais algumas horas de trabalho, mas não é milagre. Fake alimentício na era da reprodutibilidade técnica.
Você escalda a fécula de mandioca com a mistura do óleo e do
leite fervente. Não exagera na pitada de sal. Os ovos caem como grandes olhos
abertos, escorrendo, gelatinosos, na mistura branca, e vão corando a massa.
Dentro da gamela, a mistur a vai ficando cada vez mais visguenta. Aí você
salpica o queijo ralado com vontade, sem nunca ter medida certa. A receita é
que não adianta muito a receita. De preferência, ingredientes caipiras. Você
capricha no queijo e dissolve tudo com esperança de que vai dar certo. Sobe
aquele cheiro bom enquanto se escuta o barulhinho fofo. A massa do polvilho vai
ganhando liga e sabor. Você vai com jeito, com paciência. E não para de sovar,
porque a vida é uma luta mesmo. Na cozinha, nas relações, em toda a obra,
misturar ingredientes dá trabalho. Depois você unta bem as mãos, enrola os
pãezinhos e bota na forma. Dá um espaço bom, porque senão eles emendam.
Aqui em casa, desde que sou filha dela, o ritual é sagrado:
a Baixinha sovando e modelando um quilo de pão de queijo, às vezes dois quilos.
Assa uma forma e guarda o restante. Sempre tem milagre no congelador, pedindo
pra ir ao forno. Levei pão de queijo no jardim de infância, no ensino médio, na
faculdade. Levo pro serviço. Os convidados do meu casamento comeram pãezinhos
feitos e servidos por suas mãos conchinhas, pretas por fora e claras por
dentro.
A mudança do interior de Minas quase Bahia pra Brasília, a
pobreza, os cuidados com as filhas pequenas, a viuvez, as faxinas sem falhar
nem dia santo, a compra do lote no Riacho II, a construção da casa, o
nascimento da neta. Ela venceu batendo a massa. Força de gigante num corpo
quase anão. Pias altas, janelas e portas enormes, cantinhos difíceis, muita sujeira
– tudo aguardando a esfrega dela. Fé na seiva das urgências de um dia atrás do
outro, aceitação no manejo da fécula, sobrevivência. Esperança nascida não sei
de onde. E sempre o bom humor.
Ultimamente um pouco mais tranquila, as coisas mais
encaminhadas. Ela aprendendo a diminuir a carga. Aí veio a dormência nas mãos,
a gastrite, a úlcera, a covid, o câncer que já estava e ninguém sabia. Traga a
morfina, pelo amor de Deus. Traga a coroa de flores. Tudo tão rápido.
Estava lá no fundo do congelador, atrás dos potes plásticos.
Eu vi e peguei o último pacote. Os últimos pães de queijo amassados pela minha
Baixinha. Saíram do forno corados, fofinhos, o queijo puxando, aquela liga de
amor estendida. Amido transformado em milagre. Pão de queijo mesmo, de verdade.
Ela soube celebrar. Achou encanto em tudo o que viu. Um
jeito muito próprio de transformar. As despedidas não acabam. Eu, minha irmã e
minha sobrinha no café da tarde, contritas. Tudo foi ela quem fez. Tudo traz
ela de volta. Tudo foi ela quem deu. Sempre. O nome, a família, a casa, a cor
da pele, crespo do cabelo, o estudo, a coragem, o alimento. Só não ensinou este
nunca mais.
É. Você precisa dar uma sova bem dada, desmanchar cada
caroço.
Vinicius Marchi por Pixabay. |
Parabéns Maria Amélia. Delicado, suave, elegante e emocionante. Abraços Lucilia Garcez
ResponderExcluirMaravilhoso!! Linda mensagem amorosa carrega. Parabéns!
ResponderExcluirConto de rara felicidade quanto ao julgamento crítico-literário. Tamanho perfeito, tempo de ataque e retração das emoções maravilhosamente colocados, mas apaixonei-me mesmo foi pelo visgo da leitura. Existem coisas guardadas que a alma não conseguiria dizer em palavras, por isso precisam ser escritas para que se tornem vivíveis aos olhos de outros corações. Grato pela partilha.
ResponderExcluirQue alento ler esse conto-poesia. Um respiro de amor, delicadeza, sensibilidade. Parabéns!
ResponderExcluirMaria Amélia Eloi: Parabéns pela beleza, pela delicadeza, pela publicação. Obrigada.
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