MulherArte Resenhas 06 | O OBSERVATÓRIO POÉTICO de Lucinda Persona


O OBSERVATÓRIO POÉTICO de Lucinda Persona

- Por Eduardo Mahon


De repente, me lembrei de Lucinda. Onde estará ela? Certamente refugiada em seu apartamento. Com ou sem pandemia, o apartamento de Lucinda é uma especie de observatório. Não propriamente observatório astronômico, mas poético. No mais recente livro O passo do instante, a escritora faz da noite o seu principal tema. A maioria dos poemas traz a imagem decadente do dia, a promessa da tarde e a fertilidade da noite, matéria prima para a poesia.

Do alto de seu observatório, a poeta não se desloca. Ela observa a cidade com distanciamento e passividade. Faz anotações quase científicas e forja uma espécie de diário do perímetro. Índices pluviométricos, períodos de seca e de umidade, regime de ventos, tudo isso se projetando para a criação poética. Onde está a noite? O que é a noite? Parece-me que o dia (o verão?) está identificado com o trabalho, enquanto a tarde (ou o outono?) nos dão a pista que os períodos do dia são, na verdade, as fases da vida. A “potência da tarde” é o lugar que a poeta pretende estar, muito embora vá fazer da noite o seu ambiente vocacional.

Anoitece em torno de Lucinda e Lucinda anoitece sem resistência. Na primeira parte do livro, um longo prólogo metapoético. Como nasce a poesia de Persona? Da mesma forma que Drummond: no vazio, no silêncio noturno, no caos de palavras disponíveis, mas não ainda ditas. Ambos penetram surdamente num reino brumoso, uma via láctea alfabética. Há a angústia da seleção, a organização embrionária e, finalmente, o difícil parto. “As palavras que estão à espera”, diz Lucinda, são as mesmas que, em pertencia, formarão os poemas que “esperam ser escritos”, de Drummond. Em ambos os casos, o poeta não se debate, espera acontecer a partir da metódica observação. O poeta se coloca passivamente para a realização do poema que, de alguma forma, será intuído e realizado. Não há luta, não há disputa, não há polêmica. O que há é uma enorme espera.

Em seguida, Lucinda prossegue como observadora, catalogadora, pesquisadora, tudo da distante “cimeira de um edifício”. Parece-me o ponto alto do livro. A escritora vive num estado de permanente quarentena poética. Ela será uma curiosa voyeur que vê formigas atarantadas indo e vindo, na vida real, isto é, no regime diurno. Estará diante de um microscópio? Ou de um telescópio? O corpo do prédio passa a ser o corpo poético: as janelas são os olhos e a consciência. Estão elas “abertas para fora e para dentro”. Daí que o principal verbo usado no livro O passo do instante é olhar. Olhar a vida e tudo o que a compõe: o entorno, muros, postes, novas construções. Olhar, ver, observar, acompanhar, são a tônica do diário poético a partir de um ponto fixo e etéreo.

Ao analisar mais detidamente O passo do instante, Lucinda descola-se de imagens tradicionais em sua poesia. A catalogação biológica converte-se para a observação geográfica, demandando atenção na duplicidade da “paisagem que vem de dentro”. Essa geografia interior reflete a noite, a umidade, o inverno imaginário de Lucinda Persona, um espaço lacunar de contagem estéril do tempo. O olhar para “dentro da casa” é uma eterna pesquisa do humor interno da poeta que muda ao sabor do regime de sol. A novidade neste livro é a intensa fixação do olhar para fora, utilizando-se de instrumentos científicos: fotografia, pluviômetro, biruta, luneta, e mais o arsenal típico de um observador sistemático. O livro é um diário de navegação. As instruções estão na primeira parte. Como navegar, em quem ponto do céu olhar, como se localizar.

O livro é um primor. Riquíssimo de imagens, traz uma poeta madura e acessível aos amantes de uma literatura mais sofisticada. Os mais jovens precisarão de paciência, de firmeza de propósito, de curiosidade para entender o mapa poético, anotações e digressões topológicas. A estilização de Persona é intimista, rebuscada, personalista. Trata-se de poesia para o silêncio, não para a performance. Da indefinível noite, ela nos observa, anota e, depois, traduz. É lá que Lucinda vive. É de lá que ela nos observa.


http://www.entrelinhaseditora.com.br/produtos/p.asp?id=262&produto=o_passo_do_instante




Eduardo Mahon é carioca e mora em Cuiabá-MT. É autor dos seguintes livros: Nevralgias (crônicas, poesia, 2013), Doutor Funéreo e outros contos de morte (contos, 2016), O cambista (romance, 2014), Meia palavra vasta (poesia, 2014), Palavra de amolar (poesia, 2015), Palavrazia (poesia, 2015), O fantástico encontro de Paul Zimmermann (romance, 2016), Contos estranhos (contos, 2017), O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski (romance, 2018), Alegria (romance, 2018), Azul de fevereiro (contos, 2018), A gente era obrigada a ser feliz (romance, 2019), Mea Culpa (romance, 2019) e Eles não podem tirar isso de mim (romance, 2020).



Lucinda Nogueira Persona é poeta, escritora e membro da Academia Mato-Grossense de Letras. Nasceu em Arapongas, no Paraná, e reside em Cuiabá, Mato Grosso. Graduada em Biologia pela Universidade Federal de Mato Grosso, mestre em Histologia e Embriologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estágios profissionais na Universidade do Chile. Foi professora na UFMT e Unic, até se aposentar. Publicou os livros de poesia Por imenso gosto (1995), premiado pela UBE em 1997, Ser cotidiano (1998), Sopa escaldante (2001), premiado pela UBE em 2002, Leito de acaso (2004), Tempo comum (2009) e Entre uma noite e outra (2014). Publicou na literatura infantil e e integra várias antologias. Colabora com jornais e revistas mato-grossenses escrevendo crônicas, contos e resenhas.




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