Para não dizer que não falei dos cravos | Resenha de "O olho esquerdo" de André Alvez - Por Lucilene Machado

 

Coluna 13

O OLHO ESQUERDO

ALVEZ, André. São Paulo: Editora Patuá, 2020, 230 p.


- Por Lucilene Machado


Com o título de O olho esquerdo, André Alvez lança seu primeiro livro de contos. São 15 textos que se revestem de um estilo caracterizado, antes de tudo, pela sensibilidade e clareza, o que pode cativar tanto o leitor comum como o especialista.  Mas não são contos comuns, cada um deles apresenta um olhar de soslaio, cravado de questões a nos inquirir, quer seja pela estranheza, quer seja pelos jogos assimétricos imprevisíveis, com o desvio inesperado do fluxo da palavra. O conto “Em frente ao portão” que abre o livro inicia o exercício de apanhar com os olhos as incertezas e colocar o pensamento em movimento: “Tio Lourenço e minha avó trocavam olhares rápidos, driblando o vento, como uma folha despencando da árvore” Ou do olhar desesperado da personagem mirim ao se deparar com uma imagem pintada na parede da igreja: “a imagem de São Sebastião ensanguentado, crivado de flechas, os olhos ainda abertos, numa agonia sem fim.  Por que Deus deixou aquilo acontecer?” Alvez vai plantando interrogações no decorrer das narrativas como um pré-aviso de que as vozes do texto vão avançar, e avançam. Em “Tatuagem” temos de lidar com o preço da liberdade quando o olhar da personagem se prende às asas de uma borboleta para encontrar o livre-arbítrio de ser e existir. A este se juntam outros contos extemporâneos, chegando alguns a cruzar a linha da delimitação genérica do fantástico em conexão com a sociedade, como soem ser os contos surreais. Em “Precisamos matar uma tartaruga” embarcamos numa viagem marítima, porque viver não é mais preciso, navegar sim. E, a aventura é literária: Arthur Pym, Richard Parker, Edgar Alan vão desafiar os ventos dos oceanos até os olhos criarem a própria ficção: “Vi com esses meus olhos cansados o capitão Edgar Alan surgir do mar, completamente vestido de negro, os cabelos secos como se estivesse sentado à mesa de um restaurante, riscando freneticamente, sem nos encarar, as páginas secas da caderneta aberta entre as mãos”. O autor descreve quase exaustivamente a representação plástica de um quadro indesejável, esgotante, mas que representa a realidade perigosa de se atrever, com olhos nus, cruzar o limite do que é concreto.

André Alvez acrescenta ao conto sul-mato-grossense, excessivamente imanentista, uma privilegiada instância interpretativa dos elementos que compõem o espaço ficcional e metaficcional, deixando transbordar o encantamento e ousadamente nos provocar com uma questão imposta por uma tartaruga: “Que brilho estranho é este nos seus olhos?”.

É o brilho de quem passeia por uma coleção de imagens afetivas, às vezes translúcidas, outras embaçadas, mas sempre reivindicando o primado do sonho, do desejo, dos fantasmas íntimos entremeados nas coisas singelas do cotidiano.  As personagens desta obra são sempre caracterizadas pelo olhar. O olhar lamentoso em “Os telhados secos do vilarejo: A mãe, uma jovem senhora repleta de belos atributos físicos, era uma costureira de mão cheia, fazia com esmero os vestidos da filha. Às vezes perdia o olhar lamentoso entre os vãos dos telhados da casa, sempre secos, pois há muito não chovia””; o olhar atento em A moeda do tempo”: “Na esquina da praça, enquanto eu dava milho aos pombos, surgiu um mendigo vestido num  smoking surrado. Seu rosto, embora moreno, me lembrou Edgar Alan Poe.  Ele me olhou atentamente, depois seguiu até o centro da praça e abriu os braços, evocando o vento com as mãos, enquanto discursava numa linguagem estranha”.  Também o olhar aliviado em “o homem que só tinha nariz”: “Quando a mata do Parque dos Poderes surgiu em seus olhos, soltou um longo suspiro de alívio sabendo que em pouco tempo tudo estaria decidido”; ou os olhos fechados de “Semolina Pilchard”: “Ah, minha querida, quem foi que fechou os seus olhos?” Em suma, e à guisa de advertência, é preciso dizer que cada um desses olhares tem uma maneira silente de se expressar, sempre encerrando uma forma do não dizer enquanto olha, de se inscrever e silenciar ao mesmo tempo: “Os grandes olhos arregalados calaram a voz, restando apenas o nervosismo” – em “Se o mundo não acabar”.

No entanto, em “O olho esquerdo”, conto homônimo ao título, se dá a catarse de todas as narrativas, a linguagem experimenta uma soberania que cobra do olhar um valor, por si mesmo, tendo como finalidade o ensimesmar-se, refletir-se dentro da obra. A literatura não é mais que sua própria indagação. No espelho do tempo, uma terceira margem do rio surge com os seus fantasmas, como uma prestação de contas: “A canoa ia e vinha, feito um convite. Quando é que isso termina? Desconheço o fim, mas sou apegado ao começo.” A afirmação literária vinda do passado se engendra na negação reafirmando a literariedade do texto. O não-dizer, o não dar respostas é próprio da literatura, nela está contido, paradoxalmente, esse conteúdo vazio, essa ausência. O objetivo do escritor passa a ser o de levar a linguagem onde nada se revela. É nesse experimento que a personagem filho recorre à memória para narrar a morte da mãe dentro dos conceitos de beleza que lhe é peculiar, estabelecendo um diálogo franco com Guimarães Rosa, com Meu tio iauaretê, o sertanejo, a onça, a morte. A recordação exposta pelo contista, na pessoa do narrador, está composta pela natureza, seus mistérios, por suas leituras e por aquilo que o homem constrói com as próprias mãos, especialmente a casa: “Eu e o clarão do sol a encontrávamos ali encolhida, na beira da cama, a camisa do tio Mário pregada nas mãos trêmulas, enxugando o choro vicioso de sempre, o olho esquerdo tremendo, à escuta dos canários lá de fora”. A casa que ronda todas as histórias e pode ser vista como metáfora da vida, do tempo, do amor e da solidão.

Para finalizar, pode-se dizer que o livro de André Alvez se consolida numa expressiva vocação para o simbolismo, sobretudo nas construções sinestésicas criadas a partir da correspondência entre os signos e entre os seres, da natureza, das várias vozes num mesmo texto, dos cheiros, dos sons, das coisas infinitas e da espiritualidade.  Não a espiritualidade como religião, mas como metafísica. A ideia é subjetivar o concreto. É um livro que mantem as questões em aberto, como convém ao mundo da ficção, como convêm aos narradores não carcereiros que fazem uma singular exposição ao sol, ao mar, ao riso, ao infinito.... Quem tem olhos para ver, veja.




Lucilene Machado é doutora em Teoria da Literatura e Professora na UFMS.



André Alvez é cronista do jornal eletrônico Campo Grande News, no qual possui a coluna “Beba das crônicas”. Foi cronista do caderno B do jornal Correio do Estado, principal jornal diário de Campo Grande-MS, de 2008 a 2019. É autor dos livros: No Pantanal não existe pinguim – Romance, Editora Agbook – São Paulo, 2011; O santo de cicatriz – Romance, Editora Life – Campo Grande-MS, 2013; Crônicas da cidade – Crônicas, Chiado Editora – Lisboa 2016. A Bruxa da Sapolândia – Romance, Chiado Editora – Lisboa 2017. Participou das coletâneas de Crônicas: Nossas Crônicas – Editora Life – Campo Grande-MS, 2019. Foi presidente da UBE – União Brasileira de Escritores de MS – 2017/2018. Palestrante do tema “Crônicas de Jornal” e “A bruxa da Sapolândia – a origem, a lenda, o livro” – 2019.


O livro pode ser adquirido no site da editora:

https://www.editorapatua.com.br/produto/234890/o-olho-esquerdo-de-andre-alvez



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