Entrevista com a poeta Alexandra Vieira de Almeida | Por Fernando Andrade

 

Imagem de Tiberius Drumond.

Entrevista com a poeta Alexandra Vieira de Almeida

- Por Fernando Andrade


Fernando Andrade (F.A.):  O corpo continua sendo seu lugar de pouso e destino em sua poética. Mas não um corpo utilitário, depósito de nomes, mas sim, um corpo-escrita, onde a imanência é tão forte com relação a verbos como ser, estar, permanecer. Como se faz esse corpo-escrita?

Alexandra Vieira de Almeida (A.V.A.): O título representa um simbolismo místico, mítico e literário da solidão e da comunhão necessárias ao poeta para que o processo inventivo da poesia se dê. O pássaro é o próprio poeta que cria com originalidade e inventividade o texto literário. Procurei, a partir de meus poemas, despertar a libertação do corpo do ser do poeta da imaginação para o campo da realidade. Deve se criar um movimento em que o cenário do mundo todo seja inserido no seu ser-corpo para que sua relação com os outros e a realidade circundante tragam a ele os voos da criação poética. Como dizia o grande escritor chileno Vicente Huidobro, o poeta seria um “pequeno deus”. O processo criativo é o mais importante no livro. Penso na imagem de um homem ou mulher de corpo inteiro (o poeta/a poeta) em que de dentro de seu corpo se desprendessem origamis em forma de pássaros. A capa do livro retrata este corpo-pássaro a partir do origami em seu voo pelo adensamento no real. O papel-corpo-pássaro indica este paradoxo entre o voo e o pouso, o inconsciente e o consciente, o dionisíaco e o apolíneo. O voo metafísico se adentra nos poros da matéria, fazendo-se carne, como na transfiguração do interior do ser na sua relação com a existência. Meu livro é existencial, mas se corporifica pelas palavras plenas de formas, símbolos e pousos na escrita das peles do mundo. Meu livro é dividido em três partes: “O pássaro solitário”, “A urdidura do Rio” e “Voo rasante”. Todos eles fazem este mergulho na escrita-corpo como presença da palavra como carne do mundo, habitando as esferas da matéria que pulsa dentro e fora de nós, e dentro e fora do texto.

F.A.: O estado de estar só consigo e suas paisagens internas, não apenas um percurso da mente sobre o self, mas sim, uma interação com o cosmos, o mundo, somos seres sinergéticos com o meio. Tua escrita tem muito e este livro, mais, tem muito da relação do ser com meio social, e suas dicotomias de energia, podemos falar de entropia, perda de energia para o meio. Neste livro onde os poemas parecem que se enroscam em imagens e simbolismos, como é o processo de captar o real em sua poética?

A.V.A.: Meu novo livro de poemas, publicado pela Editora Penalux, se pauta na dimensão do sagrado, mas sem deixar de mencionar a metáfora do “pássaro solitário” como o poeta, que caminha em direção ao outro, buscando sua comunicação com o mundo. Na minha obra, composta simbolicamente por 33 poemas, número emblemático do processo iniciatório da busca pelo desenvolvimento do ser, a partir do autoconhecimento, temos a relação do indivíduo, com vários temas, indo do místico, ao erotismo, ao quadro de interrogações existenciais como o embate entre ser e mundo, como podemos ver no poema de como seria o planeta após a pandemia, numa mensagem de esperança e beleza, transfiguradas pelo dom poético. O prefácio é assinado pelo poeta, contista, crítico, jornalista, compositor e letrista Tanussi Cardoso, que faz um itinerário da figura desse pássaro solitário ao longo da mística, já que era uma expressão recorrente tanto no poeta indiano Kabir, que tem um poema com o mesmo título de meu livro, como o religioso espanhol San Juan de la Cruz. Mas, ao contrário dos autores mencionados, Tanussi diz sobre mim e a particularidade nessa imagem: “...ele busca constantemente o outro ou alguém para compartilhar a vida e fugir do isolamento, embora exista sempre um elo perdido, na possibilidade do encontro consigo mesmo”. Já o posfácio, foi escrito pela revisora do livro, que também é escritora e mestra em Literatura Brasileira, pela UFRJ, Claudia Manzolillo. Ela aborda todo o processo simbólico que permeia a minha obra, com as seguintes palavras: “A linguagem, matéria-prima, inesgotável fonte de trabalho da autora, se alinha ao universo imagético que percorre o livro, a partir de seu título”. E ainda diz sobre a imagem paradoxal do pássaro, que simboliza, ao mesmo tempo, “liberdade” e “prisão”. Ou seja, há um movimento de atração e repulsão, potência e fragilidade, aumento de energia e perda de energia, ondulantes no ser-existencial da poeta que mira o mundo com olhos de pássaro, com seu olhar agudo e sensível sobre as sensações em torno da psique humana. Portanto, o meu sétimo livro de poemas se elabora a partir de um imaginário cheio de questões sobre a própria existência, trazendo uma potência vibrante sobre o ser e a vida, enaltecendo o trabalho com a palavra em sua literariedade e não buscando a facilidade de uma linguagem que leve à obviedade e ao simplismo.

F.A.: Os sentimentos de uma cor rubra, escarlate, parecem tomar forma não das emoções de quem faz a lira, mas sim, do próprio ato criador, como um jogo de equivalências entre luz e negrume, nuvens brancas e de chuvas. Fale um pouco disso dentro da estética dos poemas.

A.V.A.: A dinâmica do chiaroscuro é algo recorrente em minha poética. Como bem observou Antonio Carlos Secchin, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, no meu livro anterior, A negra cor das palavras (Penalux, 2019), trabalho com os pares opositivos da luz e da escuridão. Nesse livro, continuo com essa imagem contrastante. Tive muita influência na minha poesia, do desconstrutivismo de Derrida, que desmantelou o binarismo excludente do estruturalismo. A harmonia dos contrários estava presente na tradição pré-socrática, com Heráclito, assim como na visão das religiões orientais, como bem apontou a escritora e ensaísta Sílvia Schmidt, com relação ao signo do TAO em minha poética. Crio esta ambivalência entre cores opositivas no seu sentido cromático de densificar as relações humanas, que são pautadas pela profundidade e complexidade, sem maniqueísmos. Nuno Rau, no posfácio de “A negra cor”, bem analisou os prismas criados por cores diversas, analisando sua história no tema dos humores do corpo. Isso é muito interessante e impactante, pois o “pássaro” (o poeta/a poeta), ora está num estado de alegria, de euforia, ora é tomado pela melancolia. Na segunda parte do livro, revelo as diversas cores dos bairros em seus matizes. Faço um percurso pelo Centro, por Copacabana, pela Lapa, pelo Méier, como exemplos, mostrando suas nuances em caminhos variados, de acordo com suas especificidades, tons diferenciados de um mesmo caminho da tinta da escrita.

F.A.: Temos dois estados na pandemia, aqueles que se recolhem e se preservam para não adoecer a si e aos outros. E os que prezam sua individualidade a todo custo, clamando por liberdades cidadãs. O pássaro solitário não é um pássaro enfermo, muito pelo contrário, é pássaro cônscio da sua intimidade-integridade sobre a ação e reação no mundo. Como os poemas pensam estas contradições deste mundo pandêmico?

A.V.A.: Neste mundo pandêmico, penso na projeção de um futuro imaginado, com uma mensagem de esperança e fé. Apesar da melancolia do pássaro, em meio ao caos do mundo, tento reorganizar o real, ressignificando-o pela Arte. Num dos poemas, “Movimento Estético Pós-Pandêmico”, que teve a edição de um belo book trailer por Lisa Alves, da Molotov Produções, ela captou, perfeitamente, a tentativa de transformar a artificialidade do mundo na naturalidade da beleza poética. Essa utopia progressiva e não regressiva, como poderíamos supor, anularia as contradições insolúveis do mundo num mar verdejante da serenidade em meio ao turbilhão da consciência humana, que é invadida pelo medo, pela insegurança e pela desesperança. Entre o indivíduo e o coletivo, a máscara cai, e o ser humano volta a se encantar novamente pela sua própria face, que é a imagem do Amor em plena conscientização do mistério da Vida tornada Arte. O ser voltaria ao seu estágio primevo em que a eternidade do sol encapsularia o tempo da destruição e do caos. Seria uma ordem dos amantes, do belo e da bendita inocência das origens que se transformariam nos líquidos translúcidos das manhãs.

F.A.: Há uma seção sobre a cidade. Como um lugar que olhamos e passamos todos os dias pode ser esteio da palavra que fixa, ou desloca os sentidos? Como é Alexandra nestes passeios e como coleta versos feito a pedra no caminho?

A.V.A.: Este voo existencial e filosófico, de um pássaro que pensa e reflete, pousa nas ruas e nos asfaltos, observando a cidade, como um flâneur. Ele caminha, percebendo as contradições do sistema monetário, como nas ruas do Centro da cidade e, paradoxalmente, admira a beleza natural do Parque Guinle, no dia das crianças, com seus patos em festa. Aqui, um poema dedicado à grande poeta e amiga Astrid Cabral. A pedra no caminho comparece e, num dos poemas, dedicado ao nosso magistral poeta Drummond, falo do rio Maracanã, com suas garças brancas em meio à sujeira. Observo o belo nos reveses e durezas da vida, buscando a delicadeza do silêncio da palavra. A partir das palavras que se fixam na eternidade da poiesis, algo que é efêmero e passageiro, o movimento da urbe, é metaforizado de forma imagética, ganhando contornos líricos. Portanto, para coletar versos nas cidades, busquei o jogo com as imagens e figuras de palavras, unindo a profundidade de observação de um pássaro solitário que se mistura à urbe e sente os corpos das ruas, miudezas e cenas plenas de sutilezas, que adquirem o contorno da perenidade da literatura para se extrair das ondulações do tempo, um valor atemporal, que a poesia é capaz de dizer, nos seus enigmas mais misteriosos. 


https://www.editorapenalux.com.br/loja/o-passaro-solitario




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