Divina Leitura | Poesia para ressignificar o caos: "'Eu' Pandêmica" de Maria Cleunice Fantinati da Silva
Coluna 19 |
Poesia para ressignificar o caos:
"'Eu' Pandêmica" de Maria Cleunice Fantinati da Silva
- Por Divanize Carbonieri
A
pandemia de coronavírus impôs o isolamento sobre grande parte da população,
principalmente sobre uma parcela mais privilegiada que pode ficar em casa e
trabalhar em home office. E mesmo os
que são obrigados a se locomover estão experimentando algum tipo de restrição
em seus deslocamentos. Muitos escritores encontram-se nessas circunstâncias,
constantemente fechados em suas residências. Alguns sofrem bloqueios criativos
causados pelo clima de insegurança e medo que paira sobre todos. Mas, para outros,
a literatura se converte em válvula de escape e, essencialmente, numa maneira
de ressignificar as agruras da situação.
Esse
é o caso de Maria Cleunice Fantinati da Silva em “Eu” Pandêmica. Como o título torna explícito, esse é um livro de
um “eu” que busca dar vazão aos diferentes estados de alma provocados pela
ameaça pandêmica. O interno e o externo se alinham, e já não se sabe onde
começa um e termina o outro, talvez porque não existam mesmo separações. A
experiência do isolamento social faz com que essa consciência poética reconheça
a poesia nas coisas simples, pequenas, que, em ocasiões normais, geralmente passam
despercebidas: “Onde escondeu -se a minha alegria?/ Ou morreu surtada com a
pandemia?/ Passeando pelos cômodos de minha casa vazia,/ Visualizo a sapateira,/
Compreendo que ali não estaria”. Ou ainda: “Por cima do muro/ Meus olhos
alcançam/ As pontas das folhas do coqueiro que balançam../[...]/ Sem se
incomodar com meu desespero”.
Sapateira
e coqueiro tornam-se, assim, companheiros desse existir encerrado e solitário.
Mas não é apenas a melancolia da solidão que eles refletem. A voz poética está
carregada de pesar pelos efeitos coletivos devastadores do vírus. É daí que
provém o seu desespero. Portanto, a angústia alarga-se para abarcar a preocupação
social: “Um vírus pouco conhecido, invasivo/Leva todos para baixo./Perguntas
surgem a todo momento:/E o desemprego? – só o aumento.../E a saúde pública? – é
um tormento.../E tantas mortes?/- Satisfação de Hades”.
Dessa
forma, o vírus veio assolar um cenário que já era sentido como bastante
precário, com desemprego galopante e saúde pública abandonada. A desolação da
realidade circundante compara-se ao mundo mitológico dos mortos, no qual Hades
é o senhor supremo. O deus grego deve estar satisfeito com o que vê na Terra,
passeando majestoso por entre a pilha de cadáveres, que se torna maior pelas
desigualdades sociais, sobretudo num país como o Brasil.
Reconhecer
tais agravantes não significa, contudo, minimizar o vírus, que é fartamente
adjetivado por Fantinati. Ele é “pouco conhecido”, “súpero”, “invasivo”,
“invisível”. Por esses atributos, forja-se, nos poemas, uma imagem do vírus
como uma entidade supra-humana, ainda não plenamente identificada pela ciência.
Um ser tão microscópico que chega a ser invisível, porém, altamente letal,
invadindo organismos, órgãos, tecidos, sem que existam maneiras efetivas de
contê-lo.
Em
“A Viagem”, possivelmente o poema de tom mais dramático na coletânea, a voz
poética adota a perspectiva de um paciente acometido pela covid. Inicialmente
são enumerados os conhecidos sintomas: “dor”, “frio”, “arrepios”, “calafrios”,
“convulsões”, “falta de ar”. Apresentados assim, em versos sucessivos, têm o
efeito de provocar no leitor a sensação de gravidade gradual, que é
característica da doença. De todos os sintomas, a falta de ar configura-se como
o mais preocupante, uma vez que seu agravamento pode levar rapidamente à morte.
Dessa forma, o leitor prepara-se para o que se segue nas demais estrofes.
Mais
adiante, o eu lírico descola-se das restrições do corpo adoecido: “Na
penumbra/Sobrevoei/Um mundo lúgubre/Espaço cadavérico/Tantos sepulcros”. O
cenário retratado no poema transforma-se num meio fantasmagórico, apresentado a
partir de uma visão aérea das inúmeras covas abertas, uma imagem poética que
remete às famosas fotos de novos cemitérios que circularam na imprensa. E, numa
espécie de zoom, o foco se posiciona sobre uma das valas, em que “No meio de
tantos corpos.../Minhas roupas/Um corpo vestia”. O reconhecimento de suas
vestimentas faz com que o eu poético se conscientize finalmente de sua própria
morte. Voltam, em seguida, as lembranças das circunstâncias do fim: “Deixei o
mundo/Sem alento.../Sem amor.../De quem me amou./Momento insólito!/Sem nenhum
adeus”. Não resta dúvida de que foi um fenecimento causado pela covid, em
virtude das proibições em torno de visitas e velórios para os que morrem da
doença.
Fantinati
segue a tradição dos poetas que, mesmo diante de grandes adversidades,
continuaram oferecendo ao mundo poesia de alta qualidade. Impossível não
lembrar, por exemplo, dos poetas do Gueto de Varsóvia, Itzhak Katzenelson e Władysław
Szlengel, cujos versos sobreviveram ao genocídio de seus povos e servem hoje de
testemunhas da resiliência com que enfrentaram o aprisionamento e a ameaça
constante da morte. Guardadas as devidas proporções, a pandemia de coronavírus
também impõe sobre os poetas um confinamento forçado, e, na ausência de uma
vacina eficaz, a sobrevivência torna-se uma questão de sorte. Os versos de
Fantinati são um registro dessa era de incertezas que jamais se perderá. A
poesia não nos salva da morte, mas pode nos salvar do esquecimento. Essa é a
imortalidade que ela possibilita.
Apoio: Marinete Luzia Francisca de Souza, Monica Maria dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha, Francielly L. Rodrigues da Silva.
https://www.todasasmusas.com.br/livro_eupandemica.html |
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