Um conto de Mônica Prata | Os Olhos Bentos de Bárbara
Imagem de José Eduardo Camargo por Pixabay. |
Um conto de Mônica Prata
Os Olhos Bentos de Bárbara
A lida no cafezal começava todos os dias antes do alvorecer. Lá pelas dez, a moça ajuntava o embornal com as matulas dos capiaus, descia o monte, cruzava a pinguela, seguia por algumas léguas no trieiro que margeava o pasto até alcançar a plantação na encosta do morro do Lontra. Próximo à sombra do mangueiral, dava pra ouvir o falatório e os pigarros esparsos, na temperança da fome arcaica.
- Aleluia D. Bárbra qui hoje tamo é varado di
fome!
- Larga di bobiça Nhô Dito, e vein ajudá na
repartição dessa treinheira toda.
- Uai, quedê o Mané? Já picô a mula?
- Fazi
é tempo. Foi lá pras banda do Rio Timbaúbas mode ajeitá uns estribu pro patrão.
- Deixá pra lá! Mió assim!
Manuel dos Anzóis Pereira Alves di Oliveira era casado de pouco com Bárbara dos Anjos Estival que nessa ocasião estava grávida de sete meses de Domingas Aparecida, a primogênita de uma sequência de nove filhos do casal. Cidadão de estatura baixa, bigode espesso, era conhecido nas redondezas como o homem dos sete ofícios, um tanto pela sagacidade intelectual e outro tanto pelas habilidades nas artes.
Chegou ao Brasil no ano de 1887, a convite dos frades franciscanos para trabalhar no Mosteiro Santo Antônio na cidade do Rio de Janeiro. Passado algum tempo, a nostalgia da vida no campo começou a bater-lhe forte no peito, já que nascera e fora criado na região de Trás-os-Montes, no extremo norte de Portugal. Com as notícias da exploração de minas de ferro na Zona da Mata, o português preferiu ofertar seus préstimos nas andanças aventurosas pela distante e luxuriosa Serra da Mantiqueira.
Conheceu Bárbara dos Anjos na sede da fazenda
Prata da Serra no município de Tabuleiro dos Gerais. A jovem, na formosura de
seus dezesseis anos, pajeava as crianças e servia de companhia para
D. Avelina, esposa do Coronel. Já Manuel dos Anzóis estava a ensinar as primeiras letras para os meninos mais graúdos. Um dedo de prosa e o cafezinho compartilhados à beira do fogão à lenha acenderam a faísca paixão e o romance floresceu dando ramas de seus frutos, geração após geração.
Pois que, naquele dia, na volta pra casa, Bárbara resolveu encurtar o caminho passando por dentro do cafezal. Os passos estavam mais lentos e os pés inchados por conta do peso extra e por muito pouco teria sido ofendida pela tão temida víbora de cruz na testa. Paralisada frente a frente com a traçoeira urutu-cruzeiro, o coração disparou, as mãos instintivamente cobriram o ventre embuchado, seus olhos transfixados nos olhos da serpente. Por alguns segundos não houve um movimento sequer dos dois lados. Sorrateira, a grávida fez o sinal da santa cruz, e como que por um milagre, se embrenhou no meio da plantação, subiu a encosta na ligeireza até chegar à sede da fazenda, e graças a Nossa Senhora Aparecida, sã e salva.
No final da tarde, Bárbara dos Anjos, já mais calma, sentada no alpendre, bordava o Espírito Santo na touca de cambraia do bebê quando avistou Nhô Dito com a peçonhenta nas mãos, dura feito um pau, alardeando aos quatro ventos que tinha achado a malígna mortinha da silva no meio do cafezal.
Domingas Aparecida nasceu quase três meses depois. Era bela como a mãe, a pele muito alva e um sinal ruivo esmaecido de uma cruz entre as sobrancelhas. A menina cresceu em graça e formosura, tornou-se pianista, predicado adquirido com o pai, também professor de piano, um de seus sete ofícios.
Em ocasião oportuna, a primogênita do casal foi certeira no bote e casou-se com o filho de um tal Duque vindo dos estrangeiros que comprou terras lá pras bandas dos garimpos de Cata Altas, não muito longe do sítio dos pais em Guarani.
Para o batizado do primogênito de Domingas Aparecida, foi bordado uma cruz no bico Espírito Santo. Ao menino foi dado o nome de Bento, em homenagem ao Santo protetor, já que também carregava o sinal da Santa Cruz na testa, fortuna legada pela avó, Bárbara dos Anjos, a mais afamada benzedeira de cobras de toda Zona da Mata.
Imagem de Daniel Ramirez por Pixabay. |
Benzedeira e encantadora de cobras, que ofício!
ResponderExcluirQue belo e forte conto, 'Os olhos bentos de Bárbara', por onde as palavras fluem, desenham as trilhas por onde Mônica nos conduz, e de bom grado nos deixamos levar nessa leitura, para então seguirmos adiante, com uma riqueza a mais na alma, na memória que só a Arte pode nos dar. Muito obrigada à Mônica e a esta revista, pois a Arte é essencial neste tempo, em todos os tempos.
ResponderExcluirQue lindeza de conto! 💜
ResponderExcluirMeu nome é Luiz, gostaria entrar em contato com a professora Monica Prata, meu celular é: (11) 98301-5849.
ResponderExcluirObrigado.