MulherArte Resenhas 15 | Entrega-se poesia em Domicílio - Por Marli Walker
Entrega-se poesia em Domicílio
- Por Marli Walker
Marta Helena Cocco nos entrega poesia
em Domicílio num período em que a pandemia da Covid 19 começa a perder força
diante da vacina. Embora os poemas tenham sido escritos em 2017, alguns poucos
receberam os últimos retoques em meio a reclusão forçada que vivenciamos. É
interessante pensar no surgimento da proposta temática há dois ou três anos, pois
quando li o arquivo em primeira mão, já estávamos todos trancafiados em casa,
obrigados a conviver com espaços até então pouco reparados, sentidos ou até
mesmo evitados. No entanto, ficamos sem saída, acuados em domicílio,
literalmente. Esse fato interferiu na leitura e fez pensar na proporção com que
Bachelard se dedicou em suas observações sobre a simbologia do espaço, essa
poética tão íntima de cada ser. Por óbvio que o Domicílio de Marta é metáfora
da ambiência psíquica, dos nossos recantos, quartos, salas e cômodos da
bagunça. Entramos, pois, com o cuidado que a visita e época exigem.
Logo na “Recepção”,
parte I do livro, somos convidados a nos sentir em casa, com a ressalva, em dedicatória,
de que a morada é para quem busca poesia. Avançamos e nos deparamos com a “Sala
das formas”, parte II, em que a poeta chama a atenção para a decoração antiga.
Um conjunto de dez poemas caracteriza o cômodo que, não à toa, vem revestido de
títulos como “Redondilha”, “Soneto”, “Balada”, “Madrigal”, “Triolé” e “Vilancete”.
Estamos diante de formas clássicas (antigas?) e percebemos que vai descalça e triste/ a figura humana/ e ninguém lhe assiste. Se o rigor da estrutura impera na forma, o conteúdo,
entretanto, entrega uma consciência atenta ao conteúdo. O tempo presente, o
mundo presente, a angústia, o temor daquilo que vem de fora /não cabe nesta forma o impreciso,/ pois
que a vida /abre fendas nas curvas nas
esquinas/ levanta voos nas asas
pendentes. Impossível não reparar no empenho da poeta em descontruir a
fixidez da forma com a fluidez do desejo incontido por liberdade. Reparamos,
assim que avançamos pelos cômodos, ser o espaço da casa a trazer à poeta o ambiente
psíquico para exercer essa tentativa de suspensão.
Nesse estilo,
sobrepondo conteúdo contemporâneo em forma antiga, vasculhando o fundo poético
do espaço da casa, Marta vai revelando os espaços interiores de seu Domicílio. “Incômodo
das fomes”, (seria um certo incômodo das formas/sistemas arcaicos?) terceira
parte do livro, traz dez poemas intitulados por gêneros pragmáticos como “Ata”,
um “Ex-certo”, que vem “suprimido das escrituras”, “Currículo” e “Cópia da
história”. Temos a sensação de que o domicílio é invadido por vozes exteriores
incômodas, que interferem ao ponto de exigir instalação de cercas para
instaurar limites entre o que está fora e o que está dentro. Neste espaço, soa
alto a indagação: “com quantas fraquezas se constrói um Forte?”. Olhamos ao
redor por um breve instante e constatamos que / só nos falta a chave/ de uma
inscrição lapidar.
A parte IV entrega
ao olhar do visitante o “Pequeno cômodo das futilidades” que, curiosamente,
acomoda quinze poemas, quantidade maior que as demais seções. Embora curtas,
composições como “Destrato”, “Contrato”, “Extrato” e “Ordinal” revelam um
espaço abarrotado de quinquilharias miúdas, mas nem por isso descartáveis. O
espaço interno ou interior é revelado como ambiente em desordem: De primeiro/ o que eu mais queria/ era
estar por dentro./ Por último/ não vejo a hora/ de pular fora. Como o leitor verá, as futilidades se amontoam no
espeço diminuto e surpreendem pelo aspecto de aperto, de certo incômodo que o
ser lírico manifesta. Quem de nós há de dizer que não possui um cômodo
semelhante? Se não físico, certamente interior/psíquico, onde amontoamos pilhas
e pilhas do que julgamos fútil, feio, velho ou até mesmo aquele sonho ou desejo
tão antigos. Melhor que as visitas não reparem muito.
Seguimos.
Deparamo-nos, então, com a quinta parte, “Um quarto de ser”, com o aviso para
não reparar na infiltração, pois é mínima. São oito poemas, em número menor,
portanto, indicando certa concisão com o espaço da intimidade. Porém, os
títulos desvelam, ao primeiro olhar de um leitor minimamente voyeur, a
sequência sedutora que se descortina: “Melodia inicial”, “Chegada”, “Delicado
escalavrar”, “Visita” e “Correspondência”. O quarto de ser é conjugado, logo se
observa. Ser, para a eu lírica, é ser/estar junto. “Onde” é o poema que
emoldura a poética desse espaço: no
escuro procuro/ teu braço/ blindado de perigos/ meu lugar de dormir.
“WC ou
gabinete privativo” é um pequeno espaço com cinco poemas curtos. O primeiro da
seção, “Atrás da porta”, adverte que é
proibida a entrada/ de gente tonta/,
mais, que ninguém reclame e nem saia por aí chorando querendo saber do que o
amor foi feito. É nesse cômodo que damos de cara, “Ao lado do vaso”, com a
seguinte pérola:
O amor
é uma flor
uma mina.
Não pise
nem mije
em cima.
“Sala de
visitas” é a sétima parte, com seis poemas, em que se sabe das várias visitas
já recebidas neste domicílio. Sentados no sofá, vemos Santiago Vilela Marques,
Leminski, Cecília, Quintana, Sodré e Marília Beatriz. O diálogo da poeta com os
pares inclui amenidades e reflexões, espécie de balanço entre passado, presente
e futuro. A sala de estar é, em quase toda casa, o centro em que se recebe os
visitantes. Ao ler os poemas, temos a impressão de ver a poeta em interlocução
com todos, criando um outro mundo, como um paraíso artificial, onde é possível
se libertar da desordem do real. A poeta recria o encontro via enunciação
poética e mantém perto de si aqueles que, como ela, moram na poesia. No
conjunto da obra, as visitas na sala soam em surpreendente harmonia e
normalidade.
Na oitava
parte, composta por oito poemas, estão os “Lugares para guardar”. “Mãe e pai”,
“Louvor”, “Gozo” e “Benção”, este último dedicado ao filho Ivan, pois que o
amor é mesmo uma benção, sinaliza o último verso do poema materno. Entre os
títulos devidamente guardados nesta parte, está “Endereço fixo”. Nele resida,
talvez, a essência do Domicílio de Marta Helena Cocco: cantos/ paredes/ centros/ aberturas/ trancas/ tantas coisas./ Minha estância é o poema.
No “Epílogo”,
um único poema encerra a visitação. “Repare” é a composição que fecha o livro
(a porta?), convidando o leitor a olhar ao redor e voltar sempre, mesmo que não
volte o mesmo, pois no espaço tempo do poema, assim como as instâncias de tantas
estâncias, entre passado, presente e futuro, a poeta, o leitor e o próprio
domicílio serão também sempre outros. As conotações simbólicas e metafóricas
dos ambientes domésticos deste Domicílio revelam espaços de predileção, um
cosmo específico dentro do qual a poeta se movimenta para expor uma realidade
outra, para desfazer o real. Que Marta
sempre nos convide para estar em seu Domicílio ou, que nos entregue, em nosso
domicílio, a poesia boa de cada dia e de cada morada de nossas tantas moradas.
Que a forma e o conteúdo sejam entregues sempre em sintonia, como ela o faz. A
casa/poesia ou a poesia/casa, refúgio e canto seguro ou obscuro, onde
mastigamos o cotidiano entre o abrir e fechar de portas, entre sair e retornar.
Moramos em nós, e é sobre essa edificação que sedimentamos sonhos e devaneios,
dúvidas e certezas, idas e vindas, entradas e saídas. “A quem busca a poesia”,
a porta estará sempre aberta e a casa será acolhedora.
COCCO, Marta Helena. Domicílio.
Tangará da Serra, MT: Gesto, 2021.
Para adquirir o livro, entrar em contato com a autora pelo whatsapp (65) 99341 9304. |
Marli Walker nasceu em Santa Catarina, de onde saiu aos dezoito anos para o sertão de Mato Grosso, região em que viveu por mais de vinte anos. Hoje reside em Cuiabá, onde escreve e leciona no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). A autora publicou os livros de poemas Pó de serra (2006/2017); Águas de encantação (2009), selecionado pelo edital da prefeitura de Sinop; Apesar do amor (2016), contemplado pelo edital do MEC para o PNLD/2018 e pela Prefeitura de São Paulo (2019); Jardim de ossos, premiado em 2020 pelo edital da Biblioteca Estevão de Mendonça – MT; e o romance Coração Madeira (2020).
Marta Helena Cocco é natural de Pinhal Grande-RS, formada em Letras, doutora em Letras e Linguística, professora de Literaturas da Língua Portuguesa na graduação e na pós-graduação da UNEMAT-MT. Faz parte do grupo de pesquisa LER: Leitura, literatura e ensino – UNEMAT/CNPq. Ganhadora de vários prêmios literários, já publicou cinco livros de poemas (Divisas, Partido, Meios, Sete Dias e Sábado ou Cantos para um dia só), dois de crítica literária (Regionalismo e identidades: o ensino da literatura produzida em Mato Grosso, Mitocrítica e poesia), um de contos (Não presta pra nada) e sete infantis (Lé e o elefante de lata, Doce de formiga, SaBichões, Meu corpo é uma fabricazinha, Escrituras animais, As coisas cansadas das mesmas coisas e A menina Capu e as tintas mágicas).
Comentários
Postar um comentário