Pés Descalços 02 | Uma página para cada coisa
Uma página para cada coisa
Um
dia uma colega me contou, espantada, que havia lido no jornal que “mais da
metade da população da Índia não tinha condição de comprar papel higiênico”. Aquilo
me fez lembrar da época de escola, na infância, quando morava em uma casa em
uma rua que era o coração do bairro.
Naquela
rua havia uma escola, uma creche e a igreja católica com a única pracinha do
bairro. Nos arredores ainda se observava a sorveteria, o supermercado, o campo
de futebol, a lojinha de roupas e a de sapatos. A igreja evangélica, o centro comunitário,
o verdurão, bares e farmácia. Mas havia também, e resgato da memória, os comícios,
em tempos de eleição, as feiras de domingo e, os ensaios de Carnaval. Embora, na
maioria desses lugares, só passássemos em frente. E nos ensaios de carnaval e comícios, mamãe dizia que não era
para meninas; nos proibindo de ir. Observava os movimentos, pela rachadura da porta da frente de
casa.
A
escola era impossível de não se ver, cujos fundos defrontavam a minha casa.
A rua íngreme levava até minha casa, lá no alto; a escola no baixio. Olhando de
casa, pelo muro baixo, se podia avistar o morro de Santo Antônio, o santo
casamenteiro. Um morro azul que parecia tocar o céu. Lembro que um dia guardei
uma página de um livro da minha irmã. Nela se desenhava uma historinha infantil
que se chamava “A Menina do Leite”. Pedia para a vizinha, mais velha, que a
lesse para nós de baixo de um pé de sete copas, que dava de frente para o morro azul.
Sonhava
com o primeiro dia de aula. Aqueles uniformes que conhecia de ver os meninos e
meninas desfilarem pelas ruas, muitos com as mães ao lado, puxando pela mão nos
primeiros dias de aulas. O ano passava e chegava outro; eu ali, esperando pelo
primeiro dia, da minha aula, de outra vida. Parecia uma eternidade até chegar esse
momento. O
primeiro dia de brincar e fazer desenhos. Agora na escola com o uniforme de
jardim de infância.
Ufa,
o dia chegou! Mas havia algo estranho, o uniforme em nada parecia com as das
crianças que frequentavam o jardim de infância. As que eu via passar no caminho
da escola. Tudo bem se o uniforme não servia mais para a minha irmã mais velha
e passou para mim. Tudo bem se já estava desbotado e com algumas pregas caídas,
a barra por fazer e um ajuste improvisado na cintura. A camisa branca faltando
botões.
Um
uniforme velho já era o esperado. Sem a cor do branco, fiapos das costuras
sobressaíam nas golas e bordas. Era um uniforme que a minha irmã usou depois
que as vizinhas alunas haviam usado e antes outras e outras. Eu já com 8
anos de idade. Eu estava indo estudar na escola em que eu cresci, mesmo estando
do lado de fora.
Minha
mãe disse que eu teria de ir sozinha, ela não poderia ir comigo porque tinha
serviços de casa a fazer e os meus irmãos mais novos para cuidar. Me orientou
que haveria muitas crianças no pátio e uma mulher na frente e no alto de uma
bancada chamaria os nomes dos alunos e quando ela chamasse “Neide Silva do
Nascimento’, que eu levantaria a mão imediatamente. E seguiria até a fila da
primeira série. Primeira série?... Às vezes quando alguém chama pelo meu nome
inteiro vem a lembrança dessa época. Por um tempo guardei as primeiras páginas do caderno
das escritas de sala de aula. Ah, a minha mãe sempre arrumava uma desculpa para não sair de casa. Ela é uma pessoa com surdez parcial desde criança e consegue falar poucas palavras . Era conhecida, por alguns, como a gaguinha do bairro.
Às
vezes era preciso faltar para tomar conta dos irmãos, da casa, ou por doenças,
por fome, por falta de roupas de frio. Era comum ficarmos um mês sem gás para
cozinhar. Catávamos sobras de madeiras de construções, nos bairros vizinhos,
para preparar a comida. Muitas vezes, no almoço e jantar, era ossos de carnes
com fubá; mingau. Na
segunda série foi difícil acompanhar a turma, não entendia bem o porquê.
Era lei não ir à escola quando chegava o
frio por falta de agasalho. Costumava ver os alunos agasalhados rumo à escola.
Espiava-os pela rachadura que havia na porta da frente de casa. Mas o que me
chamava a atenção eram os alunos que iriam só de uniforme e chinelos nos pés. Nadinha
de agasalho. Pensava que poderia ir assim também, mas a minha mãe repreendia, dizendo “O que as pessoas vão pensar, que vocês não têm roupas de frio!”
Não
entendia o porquê de não acompanhar a turma da escola, me sentia fracassada. Do
lado de dentro do muro, a escola se tornou gigante, uma fortaleza, hostil.
Fiquei mais fraca, com dores nas costas. A minha mãe com mais filhos para
amamentar e dividir a comida. Meu pai sempre com as viagens, trabalhando ou à procura de trabalhos, sem trazer dinheiro pra casa. Meu irmão, minha irmã e eu éramos os filhos mais velhos, os menores tinham mais necessidade de receber o
alimento. Era a lei: os mais velhos deveriam deixar o leite e o pão para os mais novos,
e carregá-los na cintura. Éramos em nove crianças.
Aos
treze anos, gostava de guardar algumas páginas dos livros, as que tinham flores
e poesias. Gostava de estar com as amigas. Só não entendia porque não conseguia
acompanhá-las nos assuntos de filmes, televisão, músicas, poesias. Eu era a
menina dos atrasos, tinha vergonha que elas me vissem pulando o muro para
entrar na escola. Como os meninos faziam, por estarem atrasados. Elas falavam “você
é a que mora mais perto da escola e só chega atrasada!”.
Foi
uma época gostosa, embora um pouco dispersa dos assuntos da escola. Nas idas
para o trabalho até ensaiava algumas músicas ou poesia, mas só em pensamentos. Adolescência, idade que
foi reservado para destacar a minha beleza, como falavam os adultos pra
mim. Bugra da cara arredondada, com os
lábios carnudos. Os brasileiros dizem “Uma beleza exótica!”. Na volta, não dava
para pensar em nada, dispersa, olhando para o nada, no sol de Cuiabá de começo
da tarde. Nos pés, se desenhavam as tiras dos chinelos, tomados, pela poeira
vermelha do solo da capital. Eu começava a trabalhar das sete da manhã e até as
treze horas tinha que estar em casa. Nessa época, as aulas começavam no começo da tarde. Era comum deixar de ir para a escola por causa da canseira ou do atraso no serviço. Ainda mais
quando trazia sobra de comida para casa. A caminhada, de uma hora, até em casa se tornava mais pesada. O meu trabalho era cozinhar, lavar e passar roupas. E
limpava a casa que havia: três quartos, duas salas, três banheiros, uma
cozinha, uma dispensa, uma área de serviço. Do lado de fora da casa era um
garoto, um ano mais novo que eu, que tomava conta da limpeza. Um menino, que era
bem dedicado com os trabalhos. Que, também, gostava de levar as mangas, escondidas da dona da casa.
Havia
um pé de manga coração de boi no fundo da casa que trabalhava. Colhia as frutas
para levar para família. Um dia, já com uma dúzia de mangas na sacola, a patroa
descobriu e não gostou de saber que eu estava levando a fruta sem falar a ela.
Então, ela entrou na cozinha e falou o ocorrido para o seu marido e eles
resolveram me dar a metade de uma melancia que haviam comprado no mercado. Enorme, a metade da fruta, para levar com as mangas
que eu havia colhido. Fiquei pensando por um momento se eles haviam me dado a melancia por castigo ou por dó de mim, mas levei-a e a minha família ficou feliz. Nesse
dia não consegui ir para a escola.
Conheci
pizza quando me tornei empregada doméstica, com onze anos de idade. Que delícia,
um pedaço de pizza de atum.
Não
resistia às comidas gostosas, sempre que havia um descuido da senhora da casa, eu
pegava, ou seja, roubava, um pedaço de pizza, ou pedaço de bolo, ou uma pera.
Fruta que conheci também no trabalho. De vez enquanto pegava uma lata de leite
condensado e furava ela com pregos que encontrava no caminho pra casa e, chupava
o leite até chegar no meu destino. As comidas eram o que me fascinava. Assisti ao filme “Parasita”
e me lembrei das épocas em que roubava comidas. E levar as sobras, que a
senhora da casa me dava, me deixava feliz. Iria dividir com a minha família.
Os
livros e os cadernos que ganhávamos, na escola, também eram divididos com os
irmãos mais novos, com os mais velhos e com os meus pais. As páginas dos cadernos e dos livros, eram arrancadas e amassadas para usar na falta de
papel higiênico. Algumas páginas, que eu mais gostei, as guardei por um
tempo. Mas as outras eram usadas para cada coisa, no banheiro!
Que texto sensível, Neide, como você. Nos conhecemos pessoalmente há pouco mais de dois anos, na sua Cuiabá, e fiquei encantada com sua história de vida, sua garra e capacidade de reinvenção. Seus livros infantis já ganharam as mãos das crianças de me círculo, e agora, longe das redes sociais por opção - sábia decisão - volto a me encantar com essa sua contribuição para a Revista Feminina de Arte Contemporânea, iniciativa louvável. Parabéns a todas as envolvidas :)
ResponderExcluirObrigada pelo olhar sensível! Abraço!
ExcluirObrigada pelo olhar sensível! Abraço!
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