MulherArte Resenhas 18 | Sobre "Ao pó" de Morgana Kretzman - Por Irka Barrios


 Sobre Ao pó de Morgana Kretzman 

- Por Irka Barrios


A aposta de Ao pó, livro de estreia da autora Morgana Kretzman, mira num assunto presente e doloroso para grande fatia do público feminino: o abuso sexual. Preciso reconhecer, não é um tema novo na literatura. É, ao contrário, um tema bem recorrente. Mesmo assim, o assunto sempre desperta interesse e instiga o debate. Talvez porque seguimos, em pleno século 21, assistindo, perplexas, a impunidade para essa violência vil e covarde.

Na obra, Sofia, uma atriz que vive no Rio de Janeiro, coleciona alguns relacionamentos fracassados que (logo fica evidente) têm a ver com traumas que a personagem tentou enterrar.  Por conta dessas experiências traumáticas vividas na infância, Sofia tem dificuldade de se abrir, de se envolver, de confiar num companheiro. Como se não fosse carga suficiente, o sofrimento de Sofia vem carregado de uma boa dose de culpa. Quando optou por enterrar o passado, ela praticamente entregou Aline, a irmã mais nova, às vontades de Luiz, o tio materno abusador.

Adulta, conforme tenta se adaptar a uma vida monogâmica mais conservadora, Sofia custa a perceber o quanto os fantasmas ainda a perturbam. Envolve-se com Carlos, um famoso diretor de teatro, permitindo-se viver à sombra da figura dele. Há boa dose de carência nesta relação, bem como um olhar idealizado sobre o companheiro, como se Sofia desejasse ser salva através de um relacionamento que prometia equilíbrio. É um olhar que tenta esconder a solidão e a falta de amor próprio que afligem Sofia. A autora reproduz com muita sensibilidade esses sentimentos compartilhados entre mulheres que sofreram abuso. A falta de afeto e o reconhecimento do corpo como objeto para proporcionar prazer ao outro são sensações que influem na construção da imagem desfigurada que Sofia faz de si mesma.

Durante a leitura, diversas vezes lembrei de Naomi Wolf e seu Vagina, uma biografia. Na obra, Wolf narra os relatos sobre um trabalho voluntário com grupos de mulheres que sofreram violência. Ela afirma que há enorme diferença entre mulheres que sofreram agressões físicas e mulheres que sofreram estupros. Em geral, mulheres estupradas apresentam um tipo vazio de expressão, como se o olhar perdesse o brilho, como se, após a violência, perdessem o gosto pela vida. O argumento de Wolf direciona para a incansável luta de todas as mulheres. Sabe-se, desde muito tempo, que o estupro não diz respeito ao desejo sexual, mas a poder. Estupro é sobre o suposto direito que os homens acham que têm de desfrutar do corpo feminino. Diz respeito a tentar sobrepor sua vontade e a subjugar pela força. Isso, claro, também não é novidade. O que surpreende é a estratégia, ainda em funcionamento e com sucesso, mesmo após séculos de conscientização.

Mas o livro de Kretzman vai além no debate. Há outro tema, bem mais atual, que está muito ligado à violência e, em tempos de redes sociais, torna-a ainda mais cruel: a exposição. Mulheres também estão em desvantagem quando se toca no assunto exposição. O mesmo medo, de ser exposta ao denunciar um abuso, tomou enormes proporções quando este abuso pode ser compartilhado a milhares de usuários com apenas um clique. Os julgamentos são cruéis, sexistas, arcaicos. Remetem aos tempos em que nos era cobrado o compromisso de nos preservarmos. O cinismo vem de mãos dadas com o argumento de que temos, nós mulheres, uma reputação a manter. Reputação, aliás, que é vista com maior complacência quando se julga o comportamento masculino na internet. É o machismo com todos os seus tentáculos. Mesmo sendo uma mulher adulta, independente, frequentadora de um ambiente cultural (e por isso mais liberal, espera-se), Sofia não se recupera da exposição que sofre após uma noite de exageros.

Narrado em primeira pessoa, na voz de Sofia, Ao pó se desenvolve a partir de três linhas temporais que pontuam fatos decisivos na vida da protagonista. Kretzman estruturou o livro de forma a direcionar o leitor, como uma iluminadora de palco, para cada ponto crucial em cada fase da vida da protagonista. Dividiu-o em cinco partes: Prólogo, Recomeço, Suspensão, Reparação e Epílogo, uma estruturação com certo aceno ao teatro, cenário importante para a história e bastante presente na biografia da autora, que também é atriz e roteirista.

A violência da exposição de Sofia, impune porque é potencialmente anônima, empurra-a de volta para seu ciclo autodestrutivo. São muitos os fios de raciocínio que podemos puxar a partir desse segundo episódio traumático. Mas vamos nos ater à boa e velha culpa. Quando Sofia se vê responsável pelo que aconteceu desiste de denunciar e, devemos admitir, sua atitude é compreensível. Mulheres vivem esse constrangimento. A possibilidade de frequentar uma delegacia, submeter-se a exames constrangedores, ouvir julgamentos sobre seu corpo, sua atitude, são diversos os impedimentos que se apresentam quando a mulher reflete se vale a pena passar por toda a tortura psicológica de uma denúncia formal. Além do medo de enfrentar o machismo e a misoginia, Sofia precisa encarar suas próprias convicções. Sente-se incapaz de reconhecer a violência, pois acredita que foi responsável pelo que aconteceu. É o drama de muitas mulheres num país que, na última contagem, registrava um estupro a cada oito minutos.

Acontecimentos da vida real jogam na nossa cara o quanto uma mulher pode ser desrespeitada quando decide buscar punição para o crime que sofreu. Cerca de um ano atrás presenciamos o julgamento do homem que abusou da influenciadora digital Mari Ferrer, uma jovem contratada como promoter de uma casa de shows de Florianópolis. O advogado de Mari alega que ela foi drogada e estuprada nas dependências da casa noturna. Um crime abjeto, mas não para os juízes e advogados presentes na sessão que viralizou na internet. As cenas do julgamento demonstram a misoginia com que o caso foi conduzido. Para destruir a imagem da vítima, o advogado de defesa do réu vasculhou as redes sociais de Mari em busca de fotografias sensuais. Infelizmente, tanto para os homens responsáveis pelo caso quanto para a sociedade brasileira uma mulher que publica fotos sensuais automaticamente é considerada como alguém que facilita e até instiga a ação de estupradores.

É uma luta constante, desigual. Da composição El violador es tu do coletivo chileno Lastesis ao movimento das atrizes assediadas intitulado Me too, da feminista Lola (que tanto nos orgulha) aos inúmeros grupos que combatem violência sexual e feminicídio nos recantos mais remotos do Brasil, há um esforço para que o empoderamento alcance cada vez mais mulheres. Avançamos, é verdade. Mas ainda há muito pela frente. E mesmo que a função principal da literatura não seja servir como bandeira de luta, o debate que os temas abordados provocam é sempre muito bem-vindo. Nesse sentido Ao pó coloca a literatura no centro de uma discussão urgente.

 

Título: Ao pó

Autora: Morgana Kretzman

Editora Patuá, 2020





Irka Barrios é contista e novelista, mestre em Escrita Criativa (PUCRS). Premiada no Concurso Brasil em Prosa (2015) com o conto O coelho branco. Atua na organização do coletivo Mulherio das Letras – RS. Tem contos publicados nos livros Língua Rara (Ediciones Outsider, 2017), Cem anos de amor, loucura e morte (Editora Moinhos, 2017) e Não culpe o narrador (Editora Bestiário, 2018). É também autora de Lauren (Editora Caos & Letras, 2019), romance finalista do Prêmio Jabuti que tenta explorar esse universo cheio de nuances que é a descoberta da sexualidade feminina.





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