Três crônicas de Jozieli Cardenal | Do livro "Árvores solitárias que encontramos pelo caminho"
Do livro Árvores solitárias que encontramos pelo caminho
ENTRE ESTAR E PERMANECER
Na cozinha,
acomodada na cadeira que precisa de conserto, o segundo momento mais alegre do
dia: anoitecer, com a cabeça vazia de trabalho, banho tomado, minha única
preocupação é comer um pedaço de bolo de cenoura e tomar o meu chá. Já
faz um tempo que peguei o costume de ligar o rádio enquanto me concentro em
não cometer nenhum ato de gula extrema.
Hoje, ouvi ao
acaso uma daquelas mensagens de motivação que antecedem a Voz do Brasil. Um homem
imitando Cid Moreira leu um trecho bíblico do livro de Mateus. O texto afirma
que basta uma fé do tamanho de um grão de mostarda para alcançar o
impossível. Bonito.
Indiferente de
crer ou não, de ser cristão ou não, é inegável a beleza das histórias
narradas na Bíblia. Nesse caso, um lembrete sorrateiro de que não há nada
mais triste do que a desesperança. Mas evitá-la é tão difícil.
“Tem dias que a
gente se sente, como quem partiu ou morreu”, aqui, na calmaria do fim do dia,
Chico sussurra dentro da minha cabeça. Em momentos assim, a canção martela,
vira enxaqueca.
Sabe, o leão do meu eu, esse que tenho que “matar” todos os dias, está na distância entre os olhos azuis do menino que entrevistei certa vez – tagarela e inquieto para dar sua opinião – e seus pés embarrados, protegidos do chão por chinelos de dedo. Era a manhã mais fria do ano.
Não havia nenhum vestígio de tristeza naqueles olhos. Por quê? É o peso das meias que impedem as pessoas de sorrir?
Lembro desse menino, vejo outro, aquele que vi dar os primeiros passos; e hoje dá lição. Meu irmão destinou parte do primeiro salário num jogo de cordas para o seu violoncelo. Talvez ele desconheça, mas está numa realidade paralela da juventude que pertence.
Antes disso tudo – do Chico, do menino dos pés gelados, das cordas para violoncelo, do banho, do chá, da Bíblia, do devaneio – quando cheguei em casa do trabalho, um bolo de cenoura havia sido recém-colocado no forno. Em cima da mesa, a bacia com o restinho da massa me esperava – um ritual que eu e minha mãe mantemos desde que eu era criança. Trinta e cinco minutos depois, pronto! No primeiro pedaço, a acidez do dia ficou doce.
Há uma distância feroz entre estar triste e pertencer à tristeza. Feroz porque entre uma condição e outra paira a desesperança. Não há nada mais penoso do que uma vida sem esperança – sem fé em algo ou em si.
Dias podem ser como aquela canção do Chico; uma vida inteira, não. Então, eis o primeiro momento mais alegre do meu dia: é pela manhã, quando saio da cama, prendo o cabelo antes de ir para o banho e paro diante da janela. Abro um pedaço da cortina e olho o céu, encaro o tempo, descubro o humor do amanhecer.
Hoje, um tom avermelhado, um manto dourado nas bordas pelo
sol sonolento que despertava, me dava “bom dia” como quem diz: recomece.
*
AURORA DE RECOMEÇO
Entre as façanhas da natureza, o que mais me intriga é a aurora de cada amanhecer. Muito mais do que assisti-la, ser acariciada por ela todos os dias é o que nos torna otimistas diante do mundo. Com ou sem a luz do sol, ela vem e, literalmente, não teme o cinza do “tempo feio”. De efeito, é capaz de resgatar um instinto inconsciente em cada um de nós: o de recomeçar.
Gosto de pensar que o amanhã, embora travesso e incerto, ao menos enquanto escrevo essas linhas, me traz a certeza de “autre chance”. Quem disse que uma vez é única e incontável estava certo, mas não pode limitar-se diante da arbitrariedade do momento súbito.
Por vezes, é difícil receber a luz incômoda do amanhecer. Os olhos doem, preferem o conforto da escuridão do sono, enquanto os pés calejados sustentam a alma que padece. Pois bem, estamos naquele dia em que “a gente se sente como quem partiu ou morreu”. Não sou avessa à melancolia, até acho que seja necessária. Mas é preciso garantir que sua visita seja breve, de intenção genuína – cujo propósito seja apenas acolher a alma, não consumi-la.
Pergunto: é preciso ser janeiro para trajarmos nos olhos a vontade do novo, de novo? Oras, “rede social(izar)” louvores à vida só vale quando o frescor efusivo vira atitude. E não é o ano que tem que mudar, é você – e o processo é permanente, constituído por hábitos diários.
Sejamos por inteiro, apenas e somente, amor! De começo, basta aceitar a visita da aurora que, se fosse gente, seria uma senhora com cheiro de colônia de avó e diria coisas singelas, feito aquelas mulheres que não alteram o tom da voz e, nem por isso, deixam de ser ouvidas.
Aurora, nome bonito para designar a alguém. Mas você também pode personificar a sua. Basta reconhecer que a cada novo e revisitado amanhecer, há a virtude de tentar de novo e poder fazer diferente. É possível até, quem sabe, rever aquele adeus.
Um ano cheio de auroras a você, que chegou até aqui.
*
UMA VEZ É ÚNICA
O vento acaricia e abraça. Não a pega no colo, mas, se ela fechar os olhos, quem sabe consiga sentir-se como a folha seca que dança e se exibe, como se estivesse num salão. Ela nunca se permitiu ser guiada por alguém. Aliás, nunca se permitiu a tantas outras coisas.
Ser do contra sempre lhe pareceu mais conveniente. Nunca viveu as maravilhas que o “permitir-se” da música proporciona. Cautela e sensatez, suas amigas inseparáveis, a paralisam e a impedem de rodopiar pelos salões do clichê.
“Uma vez não conta, uma vez é nunca” – leu isso certa vez em um livro. Mas pensar assim é insinuar que uma única vez é nula, porque segundas chances são constantes e multiplicam-se feito as gotas de chuva. Isso não acontece, chances são únicas.
Por isso, cara amiga cautela, vá embora! Sei que essas coisas devem ser ditas com certa “cautela”, mas estou dando o primeiro passo e, sobretudo, estou farta de você.
É a maneira como você se entrega e agarra as chances que te permite rodopiar. Um estalar de dedos basta para que o tempo cumpra sua missão e, no mesmo gesto, a vida se encarrega de encaixar as coisas. Simples e sutil, assim.
Acredite, o tempo passa depressa diante de você, dançando feito a folha que te mira. Dificilmente a mesma folha dançará para você uma segunda vez. Uma vez é tão única, tão rara, que se torna incontável.
Uma vez não conta, uma vez é única.
*
"Em seu primeiro livro, a jornalista e professora paranaense Jozieli Cardenal revisita textos escritos nos últimos quinze anos, oportunizando ao leitor um passeio por histórias/estórias que se misturam às memórias de quem as lê. Ora ficcionais, ora confessionais, a autora nos mostra que as “Árvores solitárias que encontramos pelo caminho” são as pessoas que nos acompanham nas travessias, especialmente aquelas invisibilizadas e que ganham vida quando são ouvidas. Em suas crônicas, há também o reflexo das nossas mais íntimas inquietações – não lineares e difusas, numa simbiose entre ficção e realidade.
“Árvores solitárias que encontramos pelo caminho” é sobre luto, existência, fé e saudade.
Por que esse título?
"As “árvores” são as pessoas (muitas vezes invisíveis), pois cada um de nós, à sua maneira, possui e preserva diferentes modos de solidão (mesmo que envolto na multidão). Ainda assim, nos enxergamos no mundo a partir das histórias partilhadas ou construídas com outras pessoas; eterna solitude em comunhão. Além disso, essas “árvores” também representam as mulheres que fazem parte das nossas vidas e que sustentam nossa existência – mulheres que, quando são realmente ouvidas, revelam sabedoria, coragem, além de segredos e ensinamentos que enraizamos."
"Em seu primeiro livro, Árvores solitárias que encontramos pelo caminho, a jornalista e professora universitária Jozieli Cardenal nos leva, como se nos guiasse em uma memorial viagem, à subjetividade de sua escrita, que nos lê ao mesmo tempo em que a lemos.
Comentários
Postar um comentário