Cinco poemas de Ivete Nenflidio | do livro "Ataque - cale-se agora e para sempre!"
Cinco poemas de
Ivete Nenflidio
do livro Ataque - cale-se agora
e para sempre!
SÉTIMA ARTE
A tragicidade do pecado
habita o cerne do mundo
com a dramaticidade
e a potência
da destruição humana.
Os discursos povoados de ira perpetuam,
nada mudou.
Nos relatos dos livros sagrados
ou agora
em pleno século XXI,
seguem provando do próprio
e amargo veneno,
buscando a incansável confissão,
koinonia e perdão.
Motivados pelos líderes e mitos,
seguem armados de palavras de ódio
e um pouco de lirismo
que roubaram
da sétima arte.
Intentam por outros caminhos,
buscam a tecnologia,
frases de efeito,
procuram a remissão
de culpas e pecados.
Seguem tentando vender
suas visões limitadas de mundo,
prometem o Paraíso,
misteriosa epifania.
São faces a moldar-se em disfarces,
com olhos mansos delineados
de uma pureza quase artificial,
com véus nos longos fios
e o esteticismo vazio
nos gloriosos templos lotados,
com gritos de louvores
que alimentam
a Guerra Santa.
Sermões encenados,
fervorosas cenas que mascaram
o preconceito e a intolerância
de um discurso quase teatral.
*
CINEMA MUDO
Ficarás emudecido e,
se não falas,
terei que interpretar
o silêncio,
investigando
os trejeitos e o olhar.
Aguardarei, sui generis.
Ficarás quieto,
desejando-me,
como o ramalhete
de Astromélias
à espera da seda e do laço
Seguirás
desejando-me,
como o mar
à espera de torrentes flumes
e o solo
à espera da mãe-d’água.
Seguirás
desejando-me,
como sementes
à espera da embriaguez dos céus,
como o campônio
à espera da boa safra,
como um pobre garoto
à espera da noite de Natal.
E nada mais importará.
Seremos ausência,
o mortório que
faz apagar,
momentaneamente,
as tempestades
das evitáveis
tragédias humanas:
o vírus,
a fome,
toda essa cólera,
esse dia.
*
OFÍCIO DA PALAVRA
Enquanto te espero,
crio decretos.
Designando uma nova lei...
Fica obrigatório
uma poesia por dia,
com ou sem regras!
Tanto faz.
Poderá ter tema,
sem título, ser precisa.
Livres
dos cânones
inquisitoriais,
das métricas e rimas.
Poderá,
ser clichê,
anistiado de padrões,
melodramático,
usando palavras abstratas,
neologismos...
Apenas uma regra:
que seja original
e fiel aos liames da
inventividade.
Fica obrigatório
uma poesia por dia,
com ou sem regras!
Tanto faz.
Poderá ter tema,
sem título, ser precisa.
Livres
dos cânones
inquisitoriais,
das métricas e rimas.
Poderá,
ser clichê,
anistiado de padrões,
melodramático,
usando palavras abstratas,
neologismos...
Apenas uma regra:
que seja original
e fiel aos liames da
inventividade.
Estamos cada dia mais gélidos;
pouco importa,
o velho fotógrafo caído,
que congela nas ruas da cidade luz.
Morreu um congolês,
fugiu do país em guerra,
chegou no país Tropicália,
da camisa verde e amarela,
país da criança descalça
que toca o vidro do carro.
Pouco importa
o homem que fez sua cama
na viela, que gela,
que morre torturado.
Pouco importa
a desidratação na escola de lata.
Pouco importa os resquícios
da ditadura,
o DOI-CODI,
a vala clandestina de Perus.
Pouco importa
as “Madres de la Plaza de Mayo”,
pouco importa as mães daqui
ou de lá,
dos lagos glaciais,
pradarias dos Pampas,
da escadaria.
Pouco importa
os homens, crianças
e as mulheres mortas.
*
TODAS AS MULHERES
Trago dentro de mim
todas as mulheres:
a líder, a esposa,
a santa,
a dama, a puta
“Penhas” sem pernas,
Nossa Senhora,
Pachamama,
Antonieta de Barros,
Violeta Parra,
meninas liberadas
para a escola.
Trago dentro de mim
todas as mulheres:
as que escreveram no “Bello Sexo”,
as que lutaram nas guerras,
as que sofreram com a fome,
as sufragistas,
as mulheres quilombolas,
indígenas.
Trago dentro de mim
todas as mulheres,
as lágrimas
de todas que sofreram
com a tortura,
com a violência verbal,
moral e brutal.
Trago dentro de mim
todas as mulheres:
Marielle Franco,
Amelinha Teles,
as três mulheres de Barcarena.
No meu corpo,
minhas marcas,
muitas cicatrizes;
o sangue que jorra em mim
é o mesmo que escorreu
torrente em tantas mulheres.
*
capa do livro Ataque - cale-se agora e para sempre
Sobre a obra:
"ATAQUE - CALE-SE AGORA E PARA SEMPRE! é um conjunto de livros de tensões. Tensões linguísticas: mistura de registros linguísticos sem qualquer mediação; tensões políticas: referências à violência de gênero, aos pequenos e grandes fascismos de cada dia; tensões cronológicas: reconstrução de cenas da infância, imaginação de presentes paralelos e possíveis projeções de futuros.
Fiel aos impasses da contemporaneidade, a voz por trás de Ataque - cale-se agora e para sempre! não soluciona essas tensões - ela as leva adiante, torna-as testemunha das dificuldades vigentes, da miséria do hoje e (por que não?) da esperança do amanhã. Assim a autora não foge de colocar à mostra a natureza contraditória das relações de afeto e de poder e sua indissociabilidade.
Em meio a essas tensões, Ataque é além de uma luta, uma busca. No entanto, essa busca quase já não tem como objetivo recobrar o que se perdeu - algumas dessas perdas (talvez a maioria) sejam irremediáveis."
Ivete Nenflidio é natural de São Bernardo do Campo/SP. Escritora - romancista, contista, cronista, poeta -, também é pesquisadora das manifestações tradicionais e folclóricas, curadora de festivais e gestora cultural desde 1996.
Livros publicados: Calendas de Março (romance ficcional); Memórias Difusas (poesia); Cartografias da Saudade (poesia, produção independente); País Estrangeiro - memórias de um Brasil profundo (coletânea de contos, crônicas e poemas); O sereno que habita meus olhos (poesia); e Ataque - cale-se agora e para sempre (poesia).
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