SEIS POEMAS DE MARIA GABRIELA CARDOSO | LUA PINKHASOVNA
fotografia do arquivo pessoal da autora
CAFÉ DE AMANHÃ
Pão na chapa enche de
açúcares
os vasos sanguíneos
do burguês ao acordar
de açúcares padece o
corpo cansado
sem pão na chapa na
mesa ao levantar
Frutas fornecem
nutrientes essenciais,
lipídeos e vitaminas
que enchem o cérebro de energia;
uma uva, uma manga,
uma banana
trocam de preços
todos os dias no mercado:
a saciedade está tão
cara comprar!
Mas o pão, o pão têm
simbolismo divino
na alimentação
foram multiplicados,
são o corpo de Cristo
cada pedaço fora
dividido após terem sido ungidos
em suas santas
bênçãos
Hoje, à mercê do
Estado
que não é divino,
nem pai, nem
democrático,
o pão, de tão caro
contrasta desigualmente
com miseráveis
salários
condenando à
inanição!
O pão divide o burguês
do proletário;
enquanto a mão de um
estica-se
para no miolo algo
ali passar
outras, juntas, rezam
à noite
para quando, no café
da manhã
do amanhã,
o estômago logo
acordar.
-*-
CALIGRAFIA
Eles
verão
que eu inverno
e que quanto mais cedo
menos amanheço
e quanto mais morro
mais fácil são minhas subidas
Eles mares
enquanto eu rio
eles são até demais
enquanto eu fujo da sanidade
eu acendo a cada aurora
enquanto eles nem a contemplam
procurando a cada dia ascender ainda mais nas coisas terrenas
Enquanto eu concerto,
eles não ouvem
enquanto eu vazo em flores,
nos vasos de terra da vida tecendo poesia
eles preferem estar consertando seus credos
com o choque de cada espanto
Na sessão mais solene, nós selaremos um beijo
enquanto eles cerrarão os olhos
enozando cada sentimento sem cessar
atrelando como homônimos dois distintos intocáveis
o amor e o ódio
que só são semelhantes a quem jamais sentiu cada qual
Dando o ensinamento certeiro, de que na vida,
tudo vivido deverá servir para deixá-lo mais vívido
e que para ser leve, o único acerto é que se leve a certeza
de que o
verdadeiro presente jamais se traz,
pois ele pesa e é difícil carregar e que o único presente é o agora
e resolver o passado ou deixá-lo de vez para trás
Eu cito em minha caligrafia exotérica
meu nascimento tardio, minha morte prematura,
minha incipiente
vivência e todo o ensinamento esotérico de onde me situo
pois enquanto eles seguem desesperados buscando um caminho encontrar
eu caminho plácida a seguir buscando o desencontro trilhar.
-*-
LÉXICO DOS SENTIDOS
Cansei de regras
Teoremas
Cansei das ênclises
Próclises
E sempre detestei
as mesóclises
Querer-te-ei?
Como poderia
querer-te no futuro?
Ter você agora
seria o único presente mais que perfeito aceito pelas minhas linhas
Preciso criar um
novo tempo pro pretérito
Um que eu possa
usar em qualquer texto
E sirva para todos
os momentos com você
Eu quero rasgar o
verbo
Expulsar todas as
minhas hipérboles
Como alforria
Quero gritar
interjeições
Sem analogias
Quero a palavra nua
E sentir todos os
paradoxos da minha existência saindo pela boca
Não quero o uso
correto do idioma
Quero gaguejar
Me lambuzar nos
erros
E delirar entre as
palavras tão livres expressadas
Quero cuspir
palavrões
Buscar o sentido pejorativo
Escrever fora das
linhas
Rabiscar tudo
escrito
E quem sabe rasgar
a folha
Quero me libertar
da minha forma humana
Amar outras
espécies
Afiar minhas presas
Usar minha
prosopopeia
E me transformar em
quem
talvez seja quem de
fato sou
Eu quero a sinestesia
Aprender
Prender
A tua língua em mim
E jamais usar amar
no verbo oculto
Eu quero abusar dos
neologismos
E encontrar a
palavra exata que sirva como palíndromo
Que mesmo que você
leia de outras direções, o sentido será o mesmo
Mas antes, não se
esqueça de respeitar meus parágrafos
Pois são eles que
definem o começo
das minhas
histórias
Então, engula
minhas reticências
Não pause nas
vírgulas
Saboreie cada silêncio
E você estará
sentido o verdadeiro gosto do meu léxico
E o que vem depois
serão palavras sinceras
sem pontos finais.
-*-
VERBORRAGIA
É nos confins das
mentes silenciosas
Que adormecem os
verbos pungentes
Inflamados por
salivas raivosas
São ricos em
sentimentos latentes
Os sons que os
ouvidos guardam
Reverberam pelos
séculos encerrados
Emergem em meio a noites
nubladas
E transbordam nos
travesseiros
As noites longínquas
agonizam em meio às luzes oscilantes da lua cheia
Solitária e flutuante
Despede-se no raiar
do dia enquanto deixa seus apaixonados carentes
No embalar da
melancolia
Em meio aos minutos escorridos
Com a cabeça
latejando o vácuo
O grito se torna
inaudível
O peito refreia todas
aquelas emoções
Adormecidas
Mas os ouvidos
inocentes
Não possuem proteção
contra os sentimentos penetrados
E no epílogo do corpo
Eles são apenas a
porta de entrada das emoções
Não são eles que
sentem
Os sons são
carregados pelas veias que os levam até o coração
Esse quieto e
dormente
Sente mesmo com sua
derme grossa
Roupa que o veste
E sua clava de ossos
na frente
Sua eclosão se dá
para o corpo inteiro
Da ponta dos dedos
Percorrendo pela pele
Passa pelo rosto
Chega até a cabeça
Assim seus circuitos
são acionados
Suas sinapses erram
os trajetos corriqueiros
Uma tropa de
pensamentos de berço
Voltam a sibilar
raivosas na mente
As letras liquidificam-se
Perdem-se entre as
vísceras
Preenchem os espaços
Até não mais caber e
sair pelas chuvas torrenciais do corpo
A alma não escuta,
não fala,
Pois quem sente é a
carne
Que se desmancha em
gotas pela face
Quando as palavras
perversas,
Deveras diretas, a fazem
pingar.
-*-
MERCADOR DE CORAÇÕES
Amores crescem nas calçadas
comércios e escolas
aqueles que atravessam o peito,
nascem em pessoas, mas alguns ficam apenas da pele pra fora do corpo
como flor do asfalto
que vive no raso, deixa rastro pelas ruas:
pétalas, sementes e galhos
Que não se encontra em cada esquina
mas chama a atenção de todos que passam
vive na pedra, ostenta beleza para quem não sabe,
que flores que nascem no cimento
são aquelas que vivem a qualquer preço
independentemente de quem as rega
Como ambulante de sentimentos
a cada hora liquida, grita a duas ou três coronárias desavisadas,
que não veem as etiquetas colocadas pelas mãos de caixa-rápido
Que sonham contos
não imaginando estarem escritos
em folhetos de produtos
tão baratos e distribuídos
feito simples queima de estoque
na competição travada
com outros mercados
Que promociona eternos,
até o próximo cliente
baixa os preços:
"compre em doze vezes e leve um brinde"
na lei da oferta e procura
para manter a demanda de pessoas
Muitos sonham ser amantes,
desmancham-se em paixão,
desconhecendo serem apenas fregueses
diante de um mercador de corações.
Amores crescem nas calçadas
comércios e escolas
aqueles que atravessam o peito,
nascem em pessoas, mas alguns ficam apenas da pele pra fora do corpo
como flor do asfalto
que vive no raso, deixa rastro pelas ruas:
pétalas, sementes e galhos
Que não se encontra em cada esquina
mas chama a atenção de todos que passam
vive na pedra, ostenta beleza para quem não sabe,
que flores que nascem no cimento
são aquelas que vivem a qualquer preço
independentemente de quem as rega
Como ambulante de sentimentos
a cada hora liquida, grita a duas ou três coronárias desavisadas,
que não veem as etiquetas colocadas pelas mãos de caixa-rápido
Que sonham contos
não imaginando estarem escritos
em folhetos de produtos
tão baratos e distribuídos
feito simples queima de estoque
na competição travada
com outros mercados
Que promociona eternos,
até o próximo cliente
baixa os preços:
"compre em doze vezes e leve um brinde"
na lei da oferta e procura
para manter a demanda de pessoas
Muitos sonham ser amantes,
desmancham-se em paixão,
desconhecendo serem apenas fregueses
diante de um mercador de corações.
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ESPELHO DE AFRODITE
Entre constelações, esferas rochosas, violentas estrelas mortiças e cintilantes cometas, nascer Vênus pode ser considerado uma afronta ao restante dos planetas.
Pisando em trompas, ventres, ovários e vulvas e aquela mistura que poucos sabem ao certo o nome, lambuzo-me de sangue menstrual derramado nas ruas.
Pisando em trompas, ventres, ovários e vulvas e aquela mistura que poucos sabem ao certo o nome, lambuzo-me de sangue menstrual derramado nas ruas.
Há polícia? O que há? Será que alguém me escuta? É claro que não, eu sou notícia corriqueira de uma realidade fantasticamente banal.
O sangramento da violência não é repudiado, apenas é visto com asco aquele que mostra que sou um ser próprio, forjada em minha natureza sem ser sexy, sendo apenas espécie,
e que sinto por fora e por dentro me desmanchando em vermelho.
A liberdade nas linhas sinuosas das páginas Legais só existe por lá.
Lá, lá onde a lei é dos homens e julgada por eles, onde ela morre sem ser usada, enquanto a sociedade ainda não evoluiu ao ponto de efetivá-las nas calçadas, nas pedras soltas que marcam, dentro de casa, que muitas vezes machuca mais que as ruas desconhecidas.
Há alguma que diga que de fato sente-se livre? Tem certeza? Grite para o mundo! Veja as mãos lhe tapando a boca!
Mas eu nasci sob este manto, eu sou pudica para quem decide que sou, mas sou promíscua por pouco, pois não nasci com respeito em mim, eu preciso me dar, preciso me encaixar no que consideram uma mulher correta antes,
pois sou espelho de Vênus, Afrodite, com Ártemis escondida na mente,
na beleza estranhamente contraditória dos males do mundo que em meu colo foram jogados.
Sou Eva, Pandora, Lilith,
atiramos fogo nos deuses,
só servimos quando somos santas e não como seres.
A causadora não foi a maçã, a caixa, ou a força,
mas a liberdade, que é a verdadeira desgraça causadora de tudo desde os primórdios, para quem não aceita que existimos por nós mesmas.
Eu não vim de uma costela, você veio de um útero!
Sou espelho de Afrodite, ensinada desde a infância a ver o outro refletido nele,
que tem dentro do peito contos de fadas, o amor idealizado, as belezas, mas sempre encontrando pelo caminho tudo aquilo que prefere deixar esquecido no passado.
O papel feminino delicado criado socialmente não condiz com a realidade.
Ser mulher é violento, feio, pesado!
Não por nós mesmas, mas pelo que nos é ofertado.
Que minhas características não sejam consideradas fraquezas, uma vez que ser forte não é apenas criar dor, mas também aguentar, ultrapassar, superá-la.
Quero ser considerada louca, histérica, desequilibrada,
pois a mudez me rasga e aquelas que a utilizam não se personificam em ser, elas nunca vivem suas próprias vidas pois nessa realidade o tom de voz que chega aos tímpanos é apenas o grito.
Quero o luxo de desagradar, de não servir, de não me preocupar com os reveses de apenas existir.
Não quero ser tocada, chamada,
quero passar despercebida nessa jornada,
quero ser o centro do meu problema, quero falar de mim, não do outro.
Agora sou eu, fique em silêncio e espere a sua vez!
Desejo não ser considerada complicada, complexa, incompreensível, pois julgam-me a partir deles mesmos e não a partir de minhas próprias características.
Eu existo, eu existo!
Eu possuo vontades,
eu não quero ter filhos, não quero casar, quero liberdade,
pois sem ela, tudo que eu fizer apenas me aprisionará mais dentro do gênero dessa casca.
E a pergunta que nunca quis calar: desde Nietzsche até Freud, ninguém conseguiu nos entender, será que ao menos tentaram?
Pois respondo:
O que quer a mulher? Poder ser ela e dela mesma!
Somos a mater dolorosa que sangra pela vida, sem vontades, que é usada ao bel prazer alheio, aberta quando necessária, fechada para si mesma, sem nunca dar à luz a sua própria existência no mundo.
Em uma constelação escura de galáxia sem saída, ou então, debaixo do mesmo teto, em plena luz do dia, eu não estou segura,
não interessa a idade!
Como de costume, no caminho, olhos maliciosos, boca salivando, espreitando coxas, seios e nádegas. Na mira, a passos rápidos pela rua, ela questionava-se: o que mais precisaria fazer para demonstrar ser apenas uma criança voltando pra casa?
E aquelas ruas nunca mais a viram passar por lá.
Há pouco tempo, a poetisa que vos fala, inundada em preconceito, estaria assinando esse texto apenas com as iniciais do seu nome ou com um pseudônimo masculino.
Hoje em dia, bato no peito e digo: — SOU LUA! — em caixa alta!
Sou mulher escritora! Escrevo porque quero, escrevo porque acredito que a arte muda a realidade e embeleza o mundo, escrevo porque sinto e as letras são a minha voz,
escrevo para não ser só mais uma nas estatísticas de um país omisso a nós!
Mas enquanto redijo torto e coloquialmente sobre ser mulher,
buscando as palavras necessárias para findar a poesia,
só encontro significados dolorosos em cada linha do dicionário feminino.
-*-
imagem Wolffox, via Pinterest
MARIA GABRIELA CARDOSO - LUA PINKHASOVNA é natural de Montenegro/RS, e atualmente reside no litoral norte de Santa Catarina. É graduada em Administração Pública e Auxiliar de
Contabilidade. Escreveu seu primeiro conto
“Ela Era Eu” aos quinze anos, mas só passou a pensar na possibilidade de ser
escritora aos dezenove anos, após ler a biografia de Clarice Lispector.
Escreve
contos, poesias, crônicas e novelas com o pseudônimo Lua Pinkhasovna para
revistas, podcasts e antologias, assim como também para seus canais próprios
intitulados Excertos Diários. Foi vencedora do 1° Concurso de Itapemirim/ES, em
homenagem a Newton Braga, e do II Concurso Literatura de Circunstâncias,
organizado pela EdUFRR.
É participante das antologias Poesia Minimalista,
Infâncias, Comer é Um Ato Político, Chorando Pela Natureza: Poesias sobre a
Geopolítica Ambiental, A Poesia Não é Inofensiva e, entre outras, da
Editora Toma Aí Um Poema, assim como também da Coletânea de Poemas Bertha Lutz,
e Até Quando o Carnaval Chegar, da Editora Persona.
Muito bom ver que a poesia está bem representada com a nova geração que vem aí. Salve!
ResponderExcluirGostei. Vc tem sacadas diferentes. Muito legal
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