"COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS", ARTIGO DE ISABEL CORGOSINHO
O livro de Nic Cardeal Costurando ventanias me acompanhou na
volta de João Pessoa para Brasília, as suas páginas vieram impregnadas da
maresia de Jampa e agora experimentam o ar seco e a energia revitalizante do
cerrado candango. Tive que interromper a leitura várias vezes em virtude da
organização desse retorno. A cada retomada, experimentei novos sentidos em suas
particulares costuras, por isso fui tomada pelo desejo de escrever sobre elas.
Nas
costuras da prosa, as ventanias da poesia
O escritor Julio Cortázar[1], ao refletir sobre as características do conto, afirma que escrever contos e
poemas é algo parecido, quase um estado de transe. Esse estado seria provocado
pela escolha de um material significativo. O livro Costurando ventanias conjuga-se no hibridismo de gêneros, ao
associar acontecimentos da realidade (crônicas) com elementos fictícios
(contos), desvelando, assim, uma misteriosa propriedade de irradiar alguma
coisa para além dele mesmo. Irradia ventanias que informam e conformam um
breviário da condição humana, principalmente no que se refere ao embate do ser
e o cosmo, o ser e o tempo, a materialidade das coisas dissolvidas pelas
ventanias da temporalidade. É ainda o contista argentino que nos diz que a
gênese do conto e do poema assemelha-se, porque nasce de um deslocamento
provocado pelo estranhamento, um deslocar-se que altera o regime “normal da
consciência”.
Enxergamos, ainda sob o
ponto de vista de Cortázar, um perfil de contista, uma mulher que
repentinamente cercada pela imensa algaravia do mundo, comprometida em maior ou
menor grau com a realidade histórica que a contém, escolhe um determinado tema
e faz com ele um livro de contos e crônicas. O tema parece se impor
irresistivelmente por cima ou por baixo de sua consciência, e a quebra do
silêncio da folha em branco vem pela música, e tudo aquilo que a eleva como
linguagem das subjetividades.
Dito isso, é importante ressaltar as afinidades dos contos de Cardeal com a poesia. A poesia é um dos mais importantes destinos da palavra, a palavra poética nesse livro não se limita a exprimir ideias ou sensações apenas, almeja, na tomada de consciência da linguagem, se lançar ao futuro. Com notável precisão, Gaston Bachelard[2] declara que a imagem poética, em sua novidade, abre um porvir da linguagem.
A prosa de Ventanias é tecida em quatro redes aéreas que modulam a sua arquitetônica: Eu quero a música que mora dentro da flauta; Então proponho um faz-de-conta que me avizinha: paradoxos dessa dança chamada vida; Mas o tempo passou muito... passou ligeiro. A função poética nos contos e crônicas é marcada pela projeção do ícone sobre o símbolo, pela presença de códigos não verbais como a música, a dança, as imagens visuais sobre a linguagem verbal.
A poesia presente nos contos de Cardeal chega aos nossos ouvidos energizada pela melopeia, assim como a entende Ezra Pound[3]. Se trouxermos, como aliada, a experiência de sua obra poética, não seria inadequado afirmar que as frases nesses contos e crônicas estão carregadas, acima e além de seus significados comuns, de marcantes qualidades musicais que dirigem o propósito ou tendência desses significados, basta escutar a temática que abre os primeiros contos Eu quero a música que mora dentro da flauta: O som inaudível, o sopro, as batidas do coração que ressoam na caixa torácica, no som que repercute nas vértebras.
Lista de desejos
Eu
não quero só a flauta. Eu quero a música que mora dentro da flauta. Cada nota
escondida em sustenidos sentidos. Eu quero os acordes da poesia virando canção
– e a voz que a faz palavra entoada. Sim, sou egoísta por querer a flauta e a
moradora da flauta. [...] (CARDEAL, p. 15,
2021)
A musicalidade é composta pela exploração das
paranomásias, das aliterações, assonâncias, trocadilhos nos títulos e,
principalmente, nos versos rimados, ritmados no interior dos contos.
Títulos de contos
Tralhas fora dos trilhos de dentro
Os olhos chuvosos de Deus
Do barro ao berro
Fragmento do conto A linha
[...] Empenho-me,
assim, no ofício de pescar palavras no vasto mar que navega, para lá e para cá,
dentro do meu peito, feito da mesma água que invade meus olhos fundos, bem
distante da superfície do mundo [...] (CARDEAL, p. 14, 2021).
Sobre a influência da
melopeia, a prosa de Nic comparece nas fronteiras da música, e a música aqui
talvez seja a ponte entre a consciência e o universo sensível não pensante, ou
mesmo não sensível. Ainda nesse conto, a
contista afirma que os poemas a descrevem, que os poemas são a alma, as
palavras seu corpo. Sim, pois que seus poemas transmitem uma vertente peculiar
de sensibilidade, são mais que ideias transmitidas, são imagens que devem ser
sentidas, tocadas na corporeidade das palavras.
Ao lado da função poética, concorre a função metalinguística que comparece em lances certeiros de autoconsciência do fazer literário, metapoética. Na composição do sensível conto A palavra, todas as características do sentimento são expressadas pelos movimentos dos sentidos e pelos traumas da ausência, da distância, das separações, da perda vivenciadas pela infância e pela vida afora. Todas as metonímias, eufemismos são empregados para dissipar a inalcançável compreensão dos sentimentos gerados pela separação, pelo luto ou pelo amor. Tudo circunda essa coisa, palavra esquisita, multifacetada, adjetivada, jamais nomeada. Apenas ao final, a palavra que, pela dor se vela, enfim se desvela – saudade – a palavra pronunciada em coro pela aldeia tinha o dom de dividir e curar a dor, como uma hóstia em forma de pão, alimento coletivo do amor.
A gente tinha um nome para essa coisa que apertava o peito e fazia doer os olhos até a lágrima cair. Dizia-se na aldeia que era uma palavra esquisita, mas que pronunciá-la de um certo modo até aliviava um bocadinho a dor. [...]
Porque
a saudade precisava ser dita, ainda que fosse na aldeia uma palavra
esquisita... (CARDEAL,
pp. 55-57, 2021)
No conto (A)porte de poesia as funções poética e
metalinguística andam entrelaçadas, enamoradas, ocupando singular equidade de
posição e isonomia de valor. O leitor pode se deliciar com os jogos metalinguísticos,
a começar pelo próprio título, que é um verdadeiro slogan pelo desarmamento. A
prosa encena o nascimento da paz no corpo potente da poesia.
Sou
a favor do porte de poesia. Carregá-la desde a semente, até que a palavra infle,
insufle, percorra o caminho do ventre, saia do ninho, alce voo em direção ao
céu do meu/teu/nosso coração. Ali aportada a poesia, que ela absorva a empatia,
a boemia, a leveza ou a entropia, a expressão, a expansão, a exuberância da
própria vida. E, quando pronta a atingir o alvo, aponte a poesia na direção da
alma! [...] (CARDEAL, p. 61, 2021)
Nas
ventanias dos devaneios
As camadas sonoras e
imagéticas da música e da dança em Costurando
ventanias compõem, junto a outras figurações, notável relação com a Poética do devaneio, de Gaston Bachelard[4], mas é precisamente no
capítulo V Devaneio e cosmo que
encontramos a trilha interpretativa. Nessa obra encontramos verdadeiras
constelações de imagens de elevada cosmicidade: fogo, terra, ar e água estão
disseminados em outras imagens que fazem da leveza o contraponto da
petrificação, do pesadume do mundo (pássaros, ninhos, borboleta, árvores, céu,
estrelas, astros, asas, chuva, lágrimas, chapéu, horizontes, barro, sementes etc),
revelando extraordinária imaginação criativa.
É a ênfase no devaneio operante que nos
interessa na travessia interpretativa. O devaneio cósmico que experimentamos
nos contos de Cardeal é aquele ao longo do qual o universo sensível se
transforma em universo de opostos complementares, cuja ambivalência das sombras
soma-se à luz irradiada da poesia. Os contos trazem fragmentos do universo: a
unidade da beleza se concretiza nos elementos água, ar, fogo e terra. O cosmos
em Ventanias é constituído de palavras
grávidas. Segundo Bachelard:
Um
devaneio falado transforma a solidão do sonhador solitário numa companhia
aberta a todos os seres do mundo. O sonhador fala ao mundo, e eis que o mundo
lhe fala. Amando as coisas do mundo, aprendemos a louvar o mundo: entramos no
cosmos da palavra. (BACHELARD, p. 179, 1996).
Na
esteira de Bachelard, Nic Cardeal reafirma em sua obra o clímax do devaneio
cósmico, que é o de constituir um cosmos da palavra. É pela função poética da
linguagem que seus leitores são seduzidos, arrebatados da inércia, conduzidos
por uma espiral de louvores que transforma o universo sensível em universo de
beleza.
A leveza, num mundo cada
vez mais empobrecido no falar, no expressar, saturado por imagens que poluem e
avassalam nossa visão, parece se sustentar em palavras primeiras, em imagens
primeiras. Os poetas dos devaneios cósmicos, para calar o barulho ensurdecedor,
recobrem o mundo com a musicalidade das palavras que sonham. É assim que um
sonhador de palavras reconhece, numa palavra do homem aplicada a uma coisa do
mundo, uma espécie de etimologia onírica, como nas belas frases poéticas:
[...] Pois, de que será feita a poesia, senão da veia aorta que nos conduz ao peito – do lado esquerdo de dentro – na emoção da palavra gasta, apontada sobre o alvo a flecha? Depois do alvo, da flecha, por certo que estarão felizes os operadores de sonhos a recortar palavras – exaustas – em algodão: poesia qu'inda flutua, aportada ao cais da alma...
Finalmente então, depois desse tempo cinza, haverá um lugar no refazer do amor. N'alguma estrada aberta, onde plantações extensas de esperanças, por ordem dos poetas (esses operadores de sonhos a portar palavras!) – serão colhidas aos montes em novas eras. [...] (CARDEAL, pp. 61-62, 2021)
É extraordinário o
encontro das duas poéticas no que se refere o agenciamento de palavras
cósmicas, imagens cósmicas que costuram os vínculos do homem com o mundo, mais
precisamente da mulher com o mundo. Nas epifanias, a poeta nos arrebata com as
duas tonalidades, humana e cósmica, que ao se encontrarem se transfiguram:
Eu
tenho um céu que mora em mim. Ele amanhece e anoitece vez por outra. Gosta de
salpicar-se de estrelas, receber algum sol de visita, tem na lua uma amiga
confidente pra tristezas escondidas. [...]
No
meu céu de estimação os horizontes são fios compridos, feito linhas em novelos,
que se estendem desenhando lindos montes, que passeiam sorrateiros, inventando
as paisagens dos meus sossegos.
Eu
não sei o que se dá em mim para ter um céu inteiro inquilino dos meus anseios. Mas
eu amo de paixão esse meu céu de estimação. Nele eu penduro estrelas cadentes e
sei que um dia elas germinarão desejos inusitados transformados em viventes. Vou seguir acreditando. Porque um céu de estimação é muito mais repleto de
infinitos, e os infinitos são maiores, são inteiros. (CARDEAL, p. 28, 2021)
O
olhar fenomenológico da contista nos convida a vivenciar os paradoxos de uma
tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas da
natureza e, ao mesmo tempo, a confrontá-las com o mundo em plena crise com um
modelo de civilização que nos empurra para a barbárie.
[...] Não
sei dizer se essa rota será promissora... é o meu delírio do verbo resistir no
mundo. Como a lira que delira nas cordas até encontrar o sentido de ser
instrumento. Do verbo 'ser delírio' ('de-lira'): a palavra primeira da lira ao
dizer o som do mundo.
Sem
o GPS das minhas preces a ninguém, serei tão somente um arado ressoando o chão – suprema ausência de sentido nesse
imenso mundo cão. (CARDEAL, p. 27, 2021)
O confronto acontece no interior da linguagem,
por meio de uma consciência crítica criativa. Dentro das imagens poéticas pode
estar o germe de um mundo, ou como diz Cortázar, essa fabulosa abertura do
pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da
condição humana. Todo conto que se lança no tempo grande da literatura, é como
uma semente onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós,
inscreverá seu nome em nossa memória.
Árvore sementeira
Às
vezes me lembro de um tempo em que fui árvore. O momento em que a semente tocou
o chão, adormeceu na terra quente, germinou tão de repente, esticou raízes em
seu ventre. O tronco subindo em direção aos céus, galhos seguindo livres para
todos os lados, folhas verdes abrindo-se em leques sem receios. [...] (CARDEAL, p. 29, 2021)
No conto In-finitudes, o eu que narra contém
infinitos particulares que se comunicam entre si e com o mundo:
[...] Mesmo
assim, seguirei descosturando a linha. Desfazendo os nós. Até que todos nós
sejamos sonhadores de novos gestos – e uma luz se acenda na cabeceira de uma
outra história que se avizinha.
Sonhar
é o que importa – ainda que seja um bom retrato em branco e preto pendurado na
parede da imaginação. Porque comporta um infinito inteiro. Abaixo. Acima.
Dentro. Além das beiras. Bem profundo. Ao abrir das portas de um novo mundo. (CARDEAL,
pp. 20-21, 2021)
Bachelard assevera que
uma imagem poética nova pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo
imaginado diante de um devaneio de um poeta. Mas Nic Cardeal não se molda
totalmente ao perfil do sonhador de Bachelard, que se entrega de corpo e alma à
imagem que acaba de encantá-lo. A personagem que narra em primeira pessoa nos
contos é parte encarnada das imagens cósmicas, com as quais opera suas
metáforas, seus dialogismos da parte no todo e do toda na parte. O
embelezamento se faz nessa relação sistêmica da gênese primordial do planeta,
do sistema solar, da Via Láctea:
De
passagem
[...] Estou
à procura da melhor parte, em que em mim se acenda a palavra propícia para os
sentidos da vida. Estreita correnteza de vida própria que me enquadra criatura
terrena – do barro, da pedra que veio do alto, do pó respingado do universo, da
teia do milagre moído que sobrou dos ossos daqueles tantos vindos ao mundo
antes de mim. Sou aos pedaços. Quebra-cabeças em estilhaços. Sou de pedra, também
sou aço. Sou rio seco sem fundo, mar salgado, ardido, abismo profundo. Sou
folha verde, folha seca, grão germinado, semente. Do pó das estrelas dizem que
vim. Daqui a pouco vou além, para bem adiante do fim [...] (CARDEAL, pp. 18-19,
2021)
A cosmicidade das imagens
nos convida para experiências simbióticas com o mundo, para além de sua
materialidade palpável. Não exatamente um lugar onde o sonhador possa descansar
tranquilo, mas onde certamente se sentirá largo, expandido em todos os
elementos terra, fogo, ar e água. Fica
patente o devaneio dos ares em todos os seus redemoinhos, bem como as
peripécias de uma dialética que vai do universo líquido ao universo aéreo.
Chuvas guardadas
[...] Já não sei se amo mais as chuvas externas ou internas. Ambas solicitam rios. Águas que correm em direção aos mares.
As
águas do mundo querem seguir.
Minhas
aguas internas pedem passagem.
Se
chorei mares outrora, por ora só rio rios. Entre um e outro, meu barco vazio
transborda de mim. (CARDEAL, p. 31, 2022)
Os olhos chuvosos de Deus
Eu imaginava que águas caíssem dos céus porque Deus também sentia dores intensas e precisava chorar algumas vezes. Às vezes, muitas vezes.[...]
Naquele
dia aprendi a lição, não por Deus, mas por minha própria solidão a fazer
desaguar o coração – foi meu primeiro sintoma de amor. A lição? Em chuvas
internas de amor nem Deus se atreve a querer entender a linguagem inútil das
lágrimas.
Hoje
chove muito. O dia inteiro. Sempre que chove, lembro adessa minha imaginação de outrora
– quase criança – e posso ver aquele meu Deus imaginário todo encharcado,
espiando d'alguma janela do céu, para ver se estendo meus olhos molhados de
tanto enxugar sua dor. (CARDEAL, pp. 32-33, 2021).
Ao alçar as asas imaginárias, o devaneio do voo nos abre um mundo, portal de desmesurada abertura, o céu é a janela do mundo, e a poeta nos ensina e nos convida a mantê-la aberta de par em par:
Asas a gosto
[...] Há
dias em que me sinto exausta. Pudesse deixar, por um dia apenas, 'a roupa de
viver' pendurada no varal, tomando um ar, um vento, ao sol, sairia apenas com a
alma (e suas asas), a passear entre as árvores, as folhas, as flores e as
águas! Ah, seria tão delicioso esse dia! Um dia de leveza, sutileza, calmaria, em que ela – eu – a alma, compreenderia,
enfim, a amplitude, o sentido, o motivo da vida, para muito além dessa
concepção limitada e tão paradoxal que nos foi imposta nesse tão raso objetivo
do existir...
Confesso.
Não sei dizer por que às vezes cansa. Quero minhas asas. E um agosto diáfano,
com gosto de brisa. 'Porque eu continuo a
acreditar em anjos, sei que eles existem'. (CARDEAL, p. 43, 2021)
No inspiradíssimo conto
intitulado Lista de desejos, observamos
uma importante declaração de poética, ao mesmo tempo sentimos sopro alusivo dos
versos da Flauta-vértebra, do
altissonante Vladímir Maiakóvski[5]:
[...] Sim,
sou egoísta por querer o órgão febril do coração da flauta. Eu quero o outro
lado da lua. Esse lado da rua. O meio da rua. A avenida. Estrada de terra
batida. A ponta da estrela iluminando o caminho. Os passos tão gastos em
perfurados sapatos.
Essa
é minha pauta – a música da (tua) vida. No toque sutil (ou áspero) da flauta.
(CARDEAL, p. 16, 2021)
Quando leio essas frases
poéticas (ou versos?), lembro-me de passagens do filme Easy Rider [6],
ou reminiscências da geração beat,
e sua vertente na contracultura dos anos 50. Mas os parágrafos seguintes nos rementem ao repouso projetado pelas
imagens cósmicas que correspondem, seguindo o alegre paladar Bachelardiano, a
uma necessidade, a um apetite. Ao invés do mundo como vontade de representação,
o mundo como apetite. É o que demonstra o eu narrativo: uma relação antropofágica
com o mundo, sem outra preocupação a não ser o desejo de mordê-lo, devorá-lo:
[...] Eu não quero apenas a roupa da carne. Eu quero o corpo, o osso, a veia repleta de vivo vermelho, a seiva que alimenta o peito e lateja o doce e o amargo. Eu quero conhecer tua ferida. O corte da pele, o sangue jorrando em gotas, o choro do ventre, a semente parindo o futuro do indicativo. Eu quero a ruga, a curva, o passo apressado, o olhar tão cansado, a ira impulsiva, a angústia desmedida, a saudade guardada na vértebra esquerda de desesperos entorpecidos. Eu quero o riso, a gargalhada, a alegria, o sonho louco na medida exata. Ou perdida.
Eu
não quero apenas a solidão da palavra. Nem somente a flauta. Eu quero a curva do rio
escorrendo enchentes em desejos tão urgentes. E a paciência do tempo
favorecendo o despertar da semente. Eu quero o amor que mora na semente – da
flauta. [...] (CARDEAL, pp. 15-16, 2021).
O paladar se mostra em
potência: cada apetite, um mundo. O sonhador bacherladiano participa então do
mundo alimentando-se de uma das substâncias do mundo, substância densa ou rara,
quente ou doce, clara ou cheia de penumbra segundo o temperamento da sua
imaginação. E a poeta Nic Cardeal certamente vem na pele do sonhador, vem
transfigurar em belas imagens o mundo exaurido de realidade, só assim pode
compartilhar a saúde cósmica com seus leitores, porque nas imagens cósmicas
parece que as palavras do homem infundem energia humana no ser das coisas:
[...] Ao
corpo que me leva de um lado ao outro eu sou deveras grata. Não fosse ele, que
seria de mim – solta no ar, diáfana, fora da gravidade, rarefeita, quem sabe
líquida – a olhar por olhos inexistentes a vida a vagar desde a terra removível
até a semente? [...]
Este corpo que me carrega – a minha casa de viver a vida – porção considerável de resistir no mundo até a última gota do sopro de vento que há de virar chuva fininha: garoa miúda lavando a calçada, por onde outrora pisou um dia, feliz, este corpo que me carregou de um lado ao outro das minhas esperanças tão ávidas de existência... (CARDEAL, p. 17, 2021).
De mãos dadas com a tese
de Bachelard, enfatizamos que, no grande como no pequeno, o devaneio é uma
consciência de bem-estar. Numa imagem cósmica, assim como numa imagem da casa
ou da casa almejada pela nossa alma, estamos no bem-estar de um repouso, é o
que a narradora de Ventanias propõe a si e aos seus leitores.
[...] As
fadas? Ficaram do lado de lá. Os duendes continuam no jardim. Quando chegar
minha hora de voltar para casa, eles sabem muito bem que serão outra vez
visíveis as minhas asas. Afinal, de que são feitos os sonhos? Eles são feitos
de medidas de eternidade, costurando ventanias em asas de borboletas. (CARDEAL, p. 44, 2021)
Podemos assegurar que as
imagens extremamente significativas dos contos e crônicas atuaram como uma
espécie de abertura, projetando nossas inteligência e sensibilidade em direção
a algo que vai muito além do argumento literário. Ao ecoar Shakespeare nos seus
versos, Nic Cardeal costura suas Ventanias em nossa memória. Como assegura Cortázar, os contos que perduram em nossa memória são aglutinantes de uma realidade
infinitamente mais vasta que a do seu mero argumento. Ainda é o contista
argentino que nos assevera que um bom tema é como um sol, um astro em torno do
qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência
até que o contista, astrônomo de palavras, nos revela sua existência. E é assim que me sinto: girando maravilhada
nos devaneios das Ventanias cósmicas.
Referências bibliográficas
BACHELARD,
Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A
poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, pp. 165-205.
CORTÁZAR,
Julio. Alguns aspectos do conto. In.: Valise
de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo:
Perspectiva, 2006. pp. 154-157.
POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39.
[1] CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do
conto. In.: Valise de cronópio. Trad.
Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. pp.
154-157
[2]
BACHELARD, Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A
poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1996, pp. 165-205.
[3]
POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios
escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1998. pp. 37-39.
[4]
Para girar com segurança as
chaves interpretativas do livro de Nic Cardeal, valemo-nos da imprescindível
intertextualidade parafrásica de fragmentos do Capítulo V Devaneio e cosmo, do livro A
poética do devaneio, de Gaston Bachelard.
[5] Hoje executarei meus versos na flauta de minhas próprias vértebras. (Trad. Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman).
[6] Filme de Dennis
Hopper, EUA - 1969. Elenco: Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson.
ISA CORGOSINHO (Isabel Cristina Corgosinho) é natural de Brasília/DF, e atualmente reside em João Pessoa/PB. É graduada em Letras Português e Literatura, mestre em Teoria da Literatura, e doutora em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília e Università di Roma, Sapienza. Professora universitária aposentada, poeta, autora de artigos e ensaios sobre literatura nacional e italiana.
Livros e outras publicações: Os Bandoleiros e O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll (dissertação); Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino (tese); Memórias da pele (livro individual, integrante da Coleção III Mulherio das Letras, Venas Abiertas Editora Popular, 2021).
Participação em antologias e coletâneas: Coletânea Colheita 5 (org. Celeiro Literário Brasiliense Leia-me, Art Letras, 2020); Coletânea Enluaradas I: Se essa Lua fosse nossa (e-book, org. Marta Cortezão e Patrícia Cacau, Ser MulherArte Editorial, 2021); 1ª Coletânea de Poesia Mulherio das Letras na Lua (org. Chris Herrmann e Adriana Mayrinck, Ser MulherArte Editorial e In-finita, 2021); Coletânea Enluaradas II: Uma ciranda de Deusas (e-book, org. Marta Cortezão e Patrícia Cacau, Enluaradas Selo Editorial e Sarasvati Editora, 2021); Mulherio das Letras Portugal Poesia & Prosa (org. Adriana Mayrinck, In-finita, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para Elas (e-book, org. Vanessa Ratton, Amare Livros e Ser MulherArte Editorial, 2021); Coletânea Salvante IV: Entre Eixos (Saravasti Editora, 2022); Mulherio das Letras Portugal Poesia & Prosa (org. Adriana Mayrinck, In-finita, 2022); Coletânea Enluaradas III: I Tomo das Bruxas: Do ventre à vida (e-book, org. Marta Cortezão e Patrícia Cacau, Enluaradas Selo Editorial, 2022).
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