A PROSA E A POESIA DE IZILDA BICHARA | Projeto 8M


fotografia do arquivo pessoal da autora 


8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)


Mergulhe na palavra sempre surpreendente - em prosa ou verso - de IZILDA BICHARA:

NOVELA 

O passo na escuridão da esquina. A chave na porta de entrada. O corredor ocupado pelo vazio.
E o jantar atrasado.
É num instantinho que fica pronto. Vai tomando banho, enquanto eu ponho a mesa. Foi tudo bem na repartição?
A cebola espirra no óleo quente. Ela corre a ajeitar a toalha. O prato no lugar de sempre, o copo d’água, o guardanapo.
Enquanto coloca o arroz quentinho na travessa de vidro, ele se senta.
Ela pergunta se ele quer tomar uma sopinha antes.
Quer. Claro que quer. Se não quisesse, franzia o cenho e só grunhia qualquer coisa.
Assim tá bom? Só duas conchinhas. Espera que eu vou cortar umas fatias de pão. Não come muito que tem outras coisas. Hoje fiz picadinho com vagem. Aquele que você gosta.
Ele toma só a metade. Afasta o prato e espera.
Quer que eu coloque a carne do lado do arroz ou por cima? Come a salada também. A alface está fresquinha. Foi dona Maria quem trouxe. Veio hoje à tarde com a filha me visitar. Precisa ver como a menina cresceu! Ela falou que tá adorando o bairro novo. Tem de tudo por lá. Escola, sacolão, posto de saúde. Condução pra tudo quanto é lado. Uma beleza! Ela disse que o seu Dezinho tá muito contente. Largou até de beber e agora entrou pra Igreja. Acredita que a danadinha da menina me quebrou a asa da xicrinha azul? Sabe aquela que a gente ganhou de casamento? Mas tudo bem. Eu já colei. Dona Maria ralhou com ela. Disse que quando vier me visitar de novo vai me trazer outra xícara de presente. Imagine. Eu disse que não foi nada, que não precisava se incomodar. Mas bem que seria bom ganhar logo um jogo inteiro. Novinho.
Tá bom de sal? A menina chorou, dona Maria ficou sem graça e eu disfarcei. Mudei de assunto. Fingi que não tava nem aí. Mas, no fundo, eu fiquei triste. Logo essa que a gente ganhou de casamento.
Você se lembra quem deu? Foi a tia Guiomar. Levou na Igreja. Nossa, quanto tempo! Eu já nem sei o que virou da tia Guiomar. A última vez que eu soube dela, continuava morando com a Rita, naquela casinha de nada, lá em Serrinha. Parece que tava muito doente. Tadinha. Uma mulher tão alegre, tão cheia de vida, acabar assim. Também não foi fácil perder o marido e o filho único, assim, tudo de uma vez só. É de enlouquecer qualquer um. Não quero nem lembrar. A Ritinha vai direto pro céu, viu? Só ela é que teve coragem de cuidar da tia. Eu nem cheguei a me oferecer. Você não ia aguentar, eu sei. Você tem seu trabalho. Gosta da sua vida regrada, tudo direitinho. Imagine eu com a tia Guiomar, daquele jeito, aqui em casa?
Um pouquinho mais de arroz? Diz que ela ficou um tempão completamente largada. Não comia, não falava. Pra tomar banho era um custo. Parece que ela ficou igualzinha à mulher do seu Manoel da farmácia. Outro dia fui lá comprar os seus remédios e o homem tava acabado. A Mirtes me falou que a dona Dalva tá que é só pele e osso. Agora também deu pra vomitar. Não para nada no estômago. Eu respondi que, qualquer dia desses, a gente vai lá fazer uma visitinha. A gente devia ir mesmo. Mais por causa dele. Tão bom o seu Manoel, né? Sempre cuidando de todo mundo.
Terminou?
Quer doce de abóbora, agora? Fiz hoje. Ainda bem que já é tempo de abóbora. Na feira é o que mais tem. A dona Maria adorou. Já a menina, nem quis provar. Não parou quieta um minuto, aquela danadinha. Eu fico com uma saudade dos nossos meninos, quando vejo criança! Agora tudo marmanjo, morando longe. Nem pra visitar a mãe. Você tem falado com eles no telefone?
Bobagem. Imagine se iam ligar lá na repartição! Antes, o Marcelo ligava toda semana. Agora só uma vez por mês e olhe lá. O Mauro nunca foi muito de ligar. Sempre foi mais quieto.
Tava bom? Não coloquei coco porque não achei do fresco. Não gosto de coco de pacotinho no meu doce.
Quer café? Melhor não, né? Já é tarde. Depois você fica muito agitado e não consegue dormir.
Já vai subir? Deixei a água e seu comprimido no criado-mudo. Não esquece. Ah! Amanhã é dia de gás. Mas não precisa deixar dinheiro, não, que ainda tem um pouco na gavetinha.
Daqui a pouco começa a novela. Você não sabe o que tá perdendo. Hoje vão descobrir que o Gustavo está traindo a Helena com a Nicole. Não se fala de outra coisa por aí. Não dá pra perder de jeito nenhum.
O passo na escada. A porta fechada. O corredor vazio.
Na sala, Gustavo e Helena, Nicole e Gustavo e a louça toda para lavar.

(* conto publicado no livro Desculpa o atraso e outros contos, pp. 70/73)

capa do livro Desculpa o atraso e outros contos 

-*-


TENTATIVA

     
      Tíbia.
tenta afastar a tarde
que não tarda

       Trêmula .
tenta sequestrar
a estrela matutina

        Tola.
tenta remendar
a trama do destino

        Trágica.
tenta suportar
a dor do desatino

        Dócil.
tenta alimentar
a deusa decadente

        Triste.
tenta aquilatar
a dádiva restante

        Trôpega.
teAINDAnta experimentar
rotinas sem intento

        Doida.
tenta resistir
à batalha contra o tempo

(* poema publicado em agosto/2019, no blog antoniomiranda.com.br)

-*-


BUSCA

Ainda procuro.
Sobrevoo os campos tépidos
do encontro
e alcanço distâncias
nunca percorridas
por meus pés.
Descanso com calma
nos pequenos infinitos
de que sou feita.
Sou mulher.
Consigo transformar
a palavra em voz,
a farinha em pão,
o sêmen em criatura.
E faço do raso altura
jamais transitável
para quem não me merece.

(* poema publicado em agosto/2019, no blog antoniomiranda.com.br)

-*-


POEMA DO DESALENTO

Neste dia, um poema.
Um só poema,
que pede para ser escrito,
que pede para ser o grito
das vozes que nunca falam,
dos estômagos vazios,
das crianças sem escola,
daqueles que dormem nas ruas,
daqueles que morrem de frio,
dos que se escondem do medo,
dos que madrugam nas filas,
das mulheres espancadas,
dos inocentes tombados.
Um poema sem futuro
àqueles a quem tanto faz,
já que não têm amanhã. 
Nem hoje.
Nem nunca. 
Neste dia, um poema.
Só este poema-grito.
Um poema silencioso,
sem rima, sem esperança.
Um poema sem poesia.

(* poema publicado na Antologia Comemorativa Dia Internacional da Mulher- Mulherio das Letras Portugal - Poesia, p. 83)

capa da Antologia Comemorativa Dia Internacional da Mulher 

-*-


TANTAS

Em mim uma criança dança descalça
na sala
toma sol num sofá-praia
quer sair para brincar
Uma velha prende a criança 
em casa
peço que tenha modos
a vida é perigosa
há um vírus à espreita

Quero silêncio para ler e escrever
mas me distraio com os chamados da velha
já tomou o seu remédio?
precisa beber mais água 
e o lixo, já tirou?

Às vezes, acordo animada
planejo aspirar os quartos, lavar cozinha,
banheiros 
mas logo volto a dormir.
A velha então me chacoalha, limpeza acima de tudo
passo cloro nos sapatos
álcool em gel nas maçanetas
e higienizo biscoitos

Em algumas manhãs raras,
caminho cinco mil passos
de uma parede a outra
às quartas, mexo na terra
faço bolos, bolinhos e pão
sigo cursos inusitados
troco lâmpadas queimadas
derrubo a panela de arroz

Por chamada de vídeo, a mãe conversa com a filha,
a filha cuida da mãe, a avó brina com o neto,
a amiga consola a outra
Foto feliz nos stories
unhas pintadas
pijama

À noite, uma grande cama
vazia e cheia de sonhos
estranhos
Sendo uma, à própria sorte,
a driblar saudade e medo
Somos tantas.

(* poema publicado no livro Colectânea Pandemia de Palavras, pp. 88/89)

capa da Colectânea Pandemia de Palavras 

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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.

fotografia do arquivo pessoal da autora 


IZILDA BICHARA é natural de São Paulo/SP, onde reside. É graduada em Letras e Direito pela USP. Foi Professora de Língua Portuguesa e Procuradora do Município de São Paulo. Aposentada desde 2007, dedica-se exclusivamente à literatura. É escritora, revisora de textos, orientadora de Oficinas de Criação Literária e contadora de histórias. Durante 8 anos foi orientadora voluntária da 'Oficina de  Poesia do Centro de Convivência e Cooperativa- CECCO Ibirapuera'. É integrante do 'Coletivo Literário Martelinho de Ouro' desde sua fundação (em 2012), e faz parte do 'Movimento Mulherio das Letras'. Finalista do Prêmio Off Flip 2015, com o conto 'Macarrão e vinho'. 

Participação em antologias e coletâneas: Achados e perdidos (contos, Coletivo Martelinho de Ouro, e-galáxia/2014); Serendpt (contos, Martelinho de Ouro, Livrus); Sub (contos, Martelinho de Ouro); 50 anos daquele 64 (fanzine, Martelinho de Ouro); Fancine (fanzine, Martelinho de Ouro); Flipzine (fanzine, Martelinho de Ouro); Mulherio das Letras - contos e crônicas (vol. 2, org. Henriette Effenberger, Mariposa Cartonera/2017); 2a. Coletânea de Prosa Mulherio das Letras (org. Cleonice Alves Lopes-Flois, Indicto/2018); Antologia do desejo - literatura que desejamos - Paraty 2018 (org. Eduardo Lacerda, Patuá/2018); Antologia Comemorativa Dia Internacional da Mulher - Mulherio das Letras Portugal - Poesia (org. Adriana Mayrinck, In-Finita Lisboa/2019); Colectânea Pandemia de Palavras - prosa e versos em tempos se quarentena Brasil-Portugal (org. Adriana Mayrinck,  In-Finita Lisboa/2020).

Livros publicados: Térreo (novela, Casa Impressora de Almeria/2012); Desculpa o atraso e outros contos (contos, Link/2017); Quarto minguante (romance, Patuá/2022).



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