Minha Lavra do teu Livro 06 | "O LUTO DA BALEIA", de SOLANGE CIANNI, por Nic Cardeal
Minha Lavra do teu Livro 06
- resenhas afetivas -
"O LUTO DA BALEIA":
PORQUE VIVER
TAMBÉM É DAS ÁGUAS
Porque viver
tem dessas coisas:
é preciso esperar que passem as águas
- todas as águas:
rasas ou fundas
revoltas ou inconclusas
mal paradas ou moribundas -
[ou entender que nunca]
porque viver
tem dessa coisa:
é preciso voltar a ser a água
do oceano do templo
- sem tempo -
é preciso morrer por fora
para sobrar por dentro
(Nic Cardeal, Viver)
Um livro [azul] em minhas mãos. Um azul atravessando abismos tão profundos, indo dar [em braçadas exaustivas] em outros azuis - céus que sonham pássaros em voo.
Abro o azul. Encontro mães humanas, mães baleias, mães de todas as naturezas. Encontro vazio de filho - uma ausência resultante de inesperada [e tão prematura] partida.
Leio o azul - O LUTO DA BALEIA (SOLANGE CIANNI, Brasília/DF: Maria Cobogó Coletivo Editorial, 2022). A apresentação, de João Paulo Oliveira, é um alerta - que me arranca da quietude e me avisa que o mergulho será muito, muito mais fundo do que eu esperava:
"O coração de uma baleia azul mede um metro e meio. Dá uma mãe, dessas pequenininhas e ferozes que a gente encontra por aí aos bandos. Cardumes delas. Diante de um coração assim, a anatomia louca maiakovskiana - aquela que o fazia, por inteiro, um coração - já não parece tão absurda.
Olhando bem de perto (ou mais ainda: de dentro) um coração revolto - que quer dizer, também, revoltado, revoltoso - é pura fúria oceânica: fluxos e empuxos, afogamentos e refluxos, ora força titânica, ora lassidão superficial que oculta o crescente das correntes mais recônditas. Uma mãe oceânica carregou seu filhote morto por meia lua, mantendo-o à tona, atravessando quase uma Belém-Brasília inteira d'água. E você sabe: orcas nem têm braços, dedos, garras. Mas têm muito peito, isso elas têm. E aleitam.
[...]"
Sofro no azul. Várias e várias vezes eu choro no azul. Fico sem respirar. Literalmente. Mergulho no profundo sofrimento da mãe pela perda do filho - sem eu nem saber o que é parir, sem eu nem saber o que é perder [um filho]. É azul o luto da protagonista [sem nome, porque é o nome de uma por uma], que a dilacera em corpo, coração e alma. Sofro no [escuro] azul da jornada de uma mãe em busca da cura [sim, é preciso encontrar a cura de uma dor, são tantas as dores...] depois do suicídio de um filho. Mas, como curar o impossível?
Perco-me em todos os azuis dessas águas - as lágrimas não cessam tão cedo: uma mãe que, sozinha, parte para uma missão quase absurda, não fosse a fé profunda: num gesto insano [mas perfeitamente compreensível], amarra o corpo do filho às costas e atravessa [a nado] o lago Paranoá noite adentro, para entregá-lo à orixá Nanã Buruquê - "a grande senhora da vida e da morte":
"[...] O canto de todas as baleias das águas de dentro e de fora, doces e salgadas, ecoou terreiro de água e lama. Um ritual doloroso e amoroso com todas as mulheres da sua linhagem que perderam o filho como ela. Estavam todas ali.
[...]
Uma grande bolha de água e luz o envolveu e o sugou pelo canal vaginal do Lago Paranoá. Agora estava livre do fogo do inferno. Podia brincar em paz eternamente.
Olhou para trás, para um lado e outro, e de novo frente e trás, novamente porque girava tão rápido que não conseguia fixar o olhar no filho que estava partindo. Levada pela correnteza girando e se afastando como que empurrada pelas águas que agora queriam que ela se fosse.
O filho já não era mais dela.
Boiando de olhos fechados esperou as águas se acalmarem, seu coração e respiração normalizarem. Tonta, pensou na vida, sobrou nada.
Foi o coração que começou a batucada do terreiro de dentro. Ela achou que era maluquice de mulher se afogando. As carnes e o couro começaram a sacudir. Depois ouviu do alto de fora. Abriu os olhos para conferir e escutou claramente que era batucada de lama e céu.
A voz veio sozinha, com vontade própria, e cantou agradecida.
O medo não era mais dela.
- Saluba Nanã Buruku! Salve Sant'Ana vovó Buruquê!
[...]"
(pp. 68-69)
Navego com a mãe [e o corpo do filho] em todos os possíveis azuis - eu, que nunca nadei, vislumbro-me afogada - e me perco em suas lembranças: mosaicos de filho criança, de filho adolescente - tão necessários à sua própria sobrevivência: "Demorou para entender que seu filho já não estava mais ali. Foi impotência mesmo. Ela não sabia o que fazer. Confiou no amor que os unia e, calada, esperou passar. - Quero conhecer meu pai. - Ele morreu. - Mentira! Eu te odeio! - Eu te amo, meu filho!" (p. 24).
Nem mãe nem filho são nominados, quem sabe, propositalmente? Bem certo que sim - só assim para ser possível abarcar todas as mães [e mesmo as mulheres 'nunca mães'] e todos os filhos já findos. Sim, há quantos filhos já findos de mães qu'inda não foram? São incontáveis [e inconclusas] as dores desses azuis... "o filho já não era mais dela / já não era mais"... Sufocamos em azuis [eu e todas as mães], quando vislumbramos a baleia carregando o filhote morto por mais de mil quilômetros através do Oceano Pacífico - a jornada de luto das mães baleias, das mães humanas, das mães. A jornada de atravessar o fundo, o abismo, o medo, a dor.
Um livro [azul] em minhas mãos - terminado em vermelhos. Porque são vermelhos os líquidos que jorram dos nossos rios de dentro. Até que a vida se nos estanque e sejamos tão somente, outra vez, uma [nova] quimera.
Não. Não deixem de conhecer [e mergulhar] (n)O LUTO DA BALEIA. Porque, para compreender o vazio, é preciso sentir "a vida escorrer pelas águas de dentro e a escuridão se agigantar pelas de fora. Um complô das profundezas que guardam as almas dos mortos de morte escolhida" (p. 17).
(Nic Cardeal)
Um capítulo do livro O luto da baleia:
"[...]
SUFOCADA
Sozinha, sentada de pernas abertas, largada num velho e descascado banquinho de madeira, debruçada na pequena mesa da cozinha perto da janela, acaba de escrever algo com um toco de lápis de ponta gasta num pedaço de papel enrugado. Dá um último gole no gargalo do vinho tinto barato. Sacode a garrafa com tapas no fundo e passa a língua numa gotícula que escorreu tímida. Ensaia um sorriso seco, quase um lamento. Lê mais uma vez o bilhete: quando eu morrer...
Enrola bem fininho e enfia desajeitada na garrafa. Encaixa a rolha com um soco e dá um beijo nela como se fosse a sua melhor amiga. Mete debaixo do braço e sai sem calçar os sapatos ou fechar a porta. Não tinha ideia das horas, mas tudo era escuro e deserto. Caminha em direção ao Lago Paranoá, tonta, trôpega. Era como se o planeta Terra tivesse sido cuspido do sistema solar e girava largado e sem rumo, no universo escuro e gelado. E ela girava igual, sem chão, sem teto, sem paredes. Rumo tinha. Sabia muito bem aonde queria chegar: à parte mais alta da ponte JK, que une o centro de Brasília ao bairro chique da cidade. Olha para baixo sem medo da altura ou da água turva. Primeiro joga a garrafa com o bilhete dentro, faz o sinal da cruz e se joga atrás.
Tudo tão rápido!
Fez isso não apenas para se afogar. Não se tratava simplesmente de morrer, e sim de uma maneira complexa e desafiadora de sobreviver. Estava sufocada de ar. Precisava da água para respirar.
Afundou.
[...]"
(pp. 13-14)
fotografia do arquivo pessoal da autora
SOLANGE CIANNI é natural do Rio de Janeiro/RJ, e reside em Brasília desde menina. É graduada em Pedagogia, e pós-graduada em Psicopedagogia e Linguagem, Comunicação e Expressão, pela Universidade de Barcelona/ES. É terapeuta holística, membra do 'Colégio Internacional dos Terapeutas' da Unipaz/DF. Ainda criança começou a dançar e na adolescência passou a fazer teatro. Participou de vários espetáculos dirigidos por Hugo Rodas, Bibi Ferreira, Marcia Duarte (coreógrafa), Fernando Villar, Jonathan Andrade e Guilherme Reis, no Rio de Janeiro e em Brasília. Participou, como atriz, da peça “Gota D’Água”, ao lado de Bibi Ferreira, inaugurando o teatro Dulcina em Brasília, nos anos 80. Na dramaturgia infantil escreveu e produziu “Quem Tem Medo de Ter Medo” (direção de Fernando Villar, apresentada na Funarte, em 1995). É voluntária da Unipaz/DF e do Coletivo Editorial Maria Cobogó (www.mariacobogo.com.br). Escritora de livros infantojuvenis e para adultos - contos e poesia. É integrante do movimento 'Mulherio das Letras'.
Livros publicados: Clodoaldo Pé Descalço (infantil, LGE Editora); Doce Princesa Negra (infantil, LGE Editora/2006); O Presente do Pajé (infantil, Franco Editora/2007); Dentro da Flor de Pequi vive a Fadinha Vivi (infantil, LGE Editora/2009); Aída Colorida (infantil, Coletivo Editorial Maria Cobogó); Cigarras, Lagartas e Outras Marias (coletânea de contos eróticos e românticos, Coletivo Editorial Maria Cobogó/2019); Bailarina do meu Jardim (poesia, Coletivo Editorial Maria Cobogó/2020); e O luto da baleia (romance, Coletivo Editorial Maria Cobogó/2022).
Participação em antologias e coletâneas: Antologia de Poesias Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, Costelas Felinas/2017); Mulherio das Letras Contos e Crônicas - Volume 4 (org. Henriette Effenberger, Mariposa Cartonera/2017); 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, ABR/2018); Mulherio das Letras Portugal - Prosa e Conto (org. Adriana Mayrinck, In-Finita/2020); entre outras.
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