Minha Lavra do teu Livro 07 | "TEMPO DO TEMPO SER", de SONIA REGINA BISCHAIN, por Nic Cardeal
Minha Lavra do teu Livro 07
- resenhas afetivas -
"TEMPO DO TEMPO SER":
ENTRE LEMBRANÇAS, REFLEXÕES E TRANSBORDAMENTOS DO TEMPO E DO SER
TEMPO DO TEMPO SER
é o primeiro livro de crônicas da escritora SONIA REGINA BISCHAIN (São
Paulo/SP: Edição da autora, 2022), onde a narrativa é permeada de lembranças de
tempos idos, mas também de reflexões sobre o presente, e é justamente na
palavra “tempo” que ela se agarra, “com unhas e dentes”, para manter-se sã e
suportar os dias cada vez mais obscuros e difíceis, diante da realidade
do país.
Na crônica Rio das
Pedras, por exemplo, Sonia recorda-se criança e, observando as mudanças
pelas ruas – paralelepípedos trocados pelo asfalto, as casas substituídas
por barracos, a fumaça, as mudanças nas pessoas, a loucura desses tempos, o
rancor, o ódio, as distâncias humanas – ela se pergunta, aflita: “Que mundo
haverá depois de nós?” (p. 17).
A crônica intitulada Sobrevivendo
demonstra que as memórias prosseguem no coração de Sonia, uma criança
sempre frágil – entrando e saindo de hospitais por problemas respiratórios, e
outras questões de saúde – talvez por isso, sempre teimosa e resistindo pela
vida. O livro é, portanto, o próprio tempo revelado entre idas e vindas, pois
as recordações estão em todos os âmbitos dos sentidos – desde a visão da primeira
enchente na casa à beira do rio (“(...) O rio transbordou. A água foi
entrando em minha casa, foi subindo, subindo, subindo, subindo rapidamente. Em
cima da mesa da cozinha estavam meu irmão de quase três anos, minha prima com
sete anos e eu, um bebê, no colo da prima. O medo estampado no olhar do meu
irmão (...)”, in: De enchente em enchente, p. 21); até os
receios constantes de desmoronamentos – pois a vida é sempre frágil para as
maiorias ‘minorizadas’ pelo capitalismo – na falta de água potável, de
transporte público, de saneamento básico.
A obra mergulha nas dores
humanas, nas perdas – em Tempo devorador de sonhos, a autora registra a
dor pela morte da avó materna, e o pensamento viaja até essas lembranças por
causa do casaco de lã bordô que veste, herança deixada por ela: “Saudade
de seu rosto vincado de anos, de seu sorriso contagiante, do seu olhar marcado
de histórias” (p. 24). E sua narrativa expõe o sofrimento da avó em tempos
de trabalho semiescravo, da exploração em plantações de café ou algodão, ou
mesmo na capital, em fábricas de tecido, de linhas, em fábricas de doces, de
brinquedos ou vidros... As lembranças doces guardadas para sempre: “(...) É
culpa dela que eu goste tanto de viajar, ver mato, montanha, rio, mar,
estrelas, nuvens, sol, lua, outros céus. Estradas e caminhos tão dentro de
minhas lembranças. Partes de mim que vou levar por onde pisarem meus pés (...)”
(p. 26). Até que o tempo acelerado pelo vírus veio e não poupou sua avó: “(...)
Ela não queria partir, era cedo para ela e para tantas outras pessoas vítimas
de descaso, incompetência, negação. Ah, ela não queria mesmo partir, preocupada
com a minha sobrevivência (...)” (pp. 28-29). Sonia
também descreve com saudade o amigo socialista que se foi – o morador da
periferia, sindicalista, agente pastoral, sempre perseguido pela polícia. Ela
fala sobre a morte do amigo, a dor por sua perda, e lembra que ele tinha “um
brilho de quem conheceu a dor, a miséria, a fome e, por isso sempre se colocou
ao lado dos mais necessitados. Sentiu fome de justiça e sede de liberdade. Na
ansiedade de encontrar respostas e soluções, gritou nas praças em favor dos
injustiçados (...)” (in: Meu amigo socialista, p. 41).
Em As mãos de meus
pais, Sonia recorda do seu legado mais especial: as mãos sempre abertas
para o auxílio dos mais necessitados, a partilha do pão de cada dia, a
generosidade como lema: “(...) As generosas mãos de meus pais, nunca vazias,
alimentavam sonhos, anunciando, construindo a cada nova manhã pontes de
benevolência e solidariedade” (p. 33). Também não pode deixar de dizer
sobre os vazios que urgem ser preenchidos por manifestações populares de
revolta, diante do 1º lugar em mortes por Covid-19 na Brasilândia, bairro da
zona norte de São Paulo, onde mora, logo no início da pandemia, em 2020 (É
hora de preencher os vazios, pp. 45-46). Do mesmo modo, é urgente a
indignação diante de tantas outras mortes, crimes impunes ceifando inocentes,
tragédias anunciadas: “O mundo se tornou um lugar perigoso para se viver, ou
o homem é um animal perigoso para o mundo?” (in: Olhar perdido no
além, p. 50).
Porém, ainda que o
desalento pareça ocupar todo o espaço de sua alma, Sonia busca esperança
durante a pandemia, em Canções de cura: na ausência do Estado, “homens,
mulheres, adultos, jovens periféricos estendendo mãos e braços. Tirando e
partilhando do nada o alimento que sustenta a sobrevivência” (p. 52). Porque
ela sabe, ela conhece o verso e o reverso da mesma ‘moeda capitalista’: “Entre
vãos e abismos, solidários, reinventamos a realidade para que nela possamos
caber todos nós” (p. 53).
Sonia é Regina, mas é também Maria, pois sente na pele a mesma dor das mulheres pobres de todos os tempos e lugares – as Marias de todas as fomes: “Seu relógio não marca as horas do dia, mas as horas do abandono, do estômago a reclamar por comida, dos pés que anseiam por outros e novos caminhos” (in: Amanhecerá, p. 56). Sonia sabe de si e sabe do outro, de todos os outros, dos segregados e não tolerados pelas classes dominantes (Diferenciados, pp. 61-62); das mulheres sempre à beira do medo, do pavor do assédio dos homens machistas e violentos (Fronteiras do medo, pp. 75-76).
Há que se pousar o olhar atento e profundo sobre essas linhas, pois a autora está de corpo e alma na palavra – e é hora de conhecer sua melhor escolha:“Esperança: minha chama onde a dor não vinga. Na bagagem sonhos, sementes de mim, beleza de quem sonhou revertendo o andar do tempo. Os sonhadores são o equilíbrio entre a loucura e a sanidade” (in: O não e o sim da escolha, p. 128). Sonia é uma sonhadora, vive mergulhada na utopia. Mas também segue com os pés bem fincados ao chão – conhece a dura realidade como raros de nós: ativista social desde tenra idade, segue resistindo por todos os tempos, mesmo nas intempéries mais difíceis desse ‘agora’ em que é mais do que urgente conjugar o verbo Ser!
Uma crônica do livro Tempo do tempo ser:
"O não e o sim da escolha
Sumo, cresço ou me dissolvo em lamentos dementes. Renúncia, fera de afiadas garras a aprisionar o desejo.
Solidão, secreta chama engolindo palavras, partes tão minhas, fez do canto
espera
silêncio
vento
reza
lágrimas.
E eu só. Quando o corpo afoga o medo do breu, desato meus nós. Temperos noturnos a me despertar num sorriso de sol.
Não me rendo. Não me entrego à primeira lágrima. A noite às vezes longa. Outras vezes pequena demais para as minhas ansiedades.
Aurora fluindo no ventre da manhã. Descubro tão bela vida. Recomeço.
Meio gesto ou gesto inteiro. Na boca o gosto do riso. Desafio de encontrar bocas dispostas a compartilhar palavras novas.
Esperança: minha chama onde a dor não vinga. Na bagagem sonhos, sementes de mim, beleza de quem sonhou revertendo o andar do tempo.
Os sonhadores são o equilíbrio entre a loucura e a sanidade. Desafio de entender, de achar um sentido e seguir compartilhando histórias."
(p. 128)
fotografia do arquivo pessoal da autora
Livros publicados: Rua de trás (poemas, São Paulo/SP:
Coletivo Cultural Poesia na Brasa, 2009); Nem tudo é silêncio (romance, São
Paulo/SP: Coletivo Cultural Poesia na Brasa, 2010); Vale dos atalhos (romance,
São Paulo/SP: Editora Sundermann, 2013); Olhares da Brasa - fotografia, cultura
daqui (livro de fotografias, em coautoria com Avelino Regicida e Enver
Padovezzi, São Paulo/SP: SD Edições, 2015); Viandante, labirintos
entressonhos (romance, São Paulo/SP: Círculo Contínuo Editorial, 2017); Olhares que devoram sonhos (contos, Jaú/SP: 11 Editora, 2019); Tempo do tempo ser (crônicas, São Paulo/SP: Edição da autora, 2022).
Participação em antologias e coletâneas: Brasil Periférica
- Literatura Marginal de São Paulo (antologia bilíngue, org. Lucía Tennina,
publicada na Argentina e no México, em 2014, e no Chile, em 2016); Antologia
de Poesias Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: Costelas
Felinas, 2017); 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras (org. Vanessa
Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2018); I Coletânea Contos & Poesias
Mulherio pela Paz (org. Alexandra Magalhães Zeiner e Vanessa Ratton, São
Paulo/SP: ABR Editora, 2018); Sou Mulher, Logo Existo! Amor, Liberdade, Luta e
Resistência - 3a. Coletânea de Poesias e Prosas Mulherio das Letras (org.
Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2019); Antologia Comemorativa Dia
Internacional da Mulher Mulherio das Letras Portugal - Prosa e Conto (org.
Adriana Mayrinck, Lisboa-PT: In-finita, 2019); Coletânea de Poesias e Contos O
Livro das
Marias (org. Jeovânia Pinheiro do Nascimento, São Paulo/SP: Editora
Ixtlan, 2019); Coletânea A Obra de Maria Valéria Rezende - Resenhas e Variações (org. Adriana
Mayrinck e Vanessa Ratton, Lisboa/PT: In-finita, Santos/SP: Amare Livros,
2021); entre outras.
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