Minha Lavra do teu Livro 12 | "MINOTAURAS", de LÍGIA SAVIO, por Nic Cardeal
Minha Lavra do teu Livro 12
- resenhas afetivas -
"MINOTAURAS":
O LABIRINTO GENUÍNO DA FÊMEA EXISTÊNCIA
"Rica de silêncios" (*)
ela tingiu os dedos
com a tinta mais profunda
em matizes do azul.
Sim.
'Os labirintos são azuis', pensou.
Ela sabia da urgência
do seu "manifesto" (*):
era preciso buscar
o forte e o solto,
a luz e a amplidão,
para desamarrar
seu grito.
Por isso, ela insistiu:
entre sonhos, insônias e pesadelos,
rabiscou luas, sóis,
'remexeu-se toda em estrelas' e constelações.
A "limpeza" (*) foi tamanha
que o lixo de suas entranhas
transfigurou-se
em "lixa" (*):
"ainda bem que existe
esta pedra chamada tempo" (*)
que atordoa,
mas delira
entre lírios e liras,
sussurros e palavras raras,
e atende ao chamado
mítico
daquela que se devora na
'antropofagia' da palavra dita
- reverberado eco do labirinto feminino!
Haverá poema mais 'subtextual'
do que a probabilidade que nos habita,
tecida do "tear" (*) dos tantos fios
que se aventuram na corda bamba
do que é a vida?
"À beira do penhasco" (*)
ela largou a corda
e se segurou nas palavras:
a viagem desta vez será sem volta!
(Nic Cardeal, Mergulho)
(*) títulos e/ou versos dos poemas em "Minotauras"
Na 'orelha' do livro eu já havia escrito:
"De quantos labirintos serão feitos os caminhos percorridos pela alma feminina? Seremos mosaicos costurados pelo tênue fio da esperança, resistindo ao tempo e às eras, às dores e aos abusos da dominação patriarcal que desfila perante nossos olhos há séculos?
Leio Minotauras e essas questões pululam em minha mente. Nos labirintos da alma feminina habitam quantas minotauras, tentando resistir aos tempos machistas que se perpetuam, que as engolfam, as sufocam, as dominam e, repetidas vezes, as destroem violentamente? O mito, um ser híbrido, quer se mostrar ao mundo tal como é, sem subterfúgios, máscaras ou disfarces, dotado de todos os opostos possíveis, não gerado da costela do primeiro homem, mas de sua própria essência única – seu lugar de origem: o labirinto genuíno da fêmea existência.
A viagem por Minotauras é fascinante, tal como mergulhar em abismos, em solos estrangeiros, em desvios necessários, para depois retornar ao cimo, “retornar sem pressa / de uma viagem reversa”. Há facas afiadas, há mudez e há vazios. Mas também há borboletas, flores, e o sonho abaixo da epiderme na poesia de Lígia, porque “poesia não se faz com sentimentos, mas com sentidos”.
Você encontrará nas mãos de Lígia todos os tamanhos necessários de formões para entalhar a palavra – até que na fauce da garganta o grito mais profundo ecoe “na respiração da terra”, selvagem e latejante.
Assim é Lígia – com “mãos de seda” / e suavidade de ferro” – a própria força vital de Minotauras. E nós, mulheres, fazemos questão da resistência, pois somos muito de Minotauras na contínua luta, ainda que instintiva ou selvagem, pelo direito à sobrevivência. Afinal, “todo poema é uma sobrevida”!
Retomo a leitura de MINOTAURAS (Porto Alegre: Casa Verde, 2022), agora com outro ritmo, no intuito de prolongar o mergulho e absorver ainda mais os poemas do novo livro de Lígia Savio. Porém, antes deste mergulho, trago o poema publicado em seu primeiro livro, "No dorso da palavra":
Oração para chamar o Minotauro
Convoco
do terror
do fogo
este bicho
esta fera
que não me apavora.
Tem uma saída.
Cada dia
que passa,
que começa
rezo de novo.
É assim.
O poço era raso
e o tanque fundo
(que mergulho devo dar?)
(Lígia Savio, in: "No dorso da palavra", p. 58)
Quem sabe a autora, neste poema –"oração para chamar o Minotauro" – tenha premeditado o seu retorno, convocado agora para seu novo livro, no intuito de traduzir-se numa proposital perspectiva do feminino? É bem possível, pois a poesia de Lígia é densa, cortante, instigante, libertária, e o simbolismo da mitologia grega parece envolver (e, de fato, envolve!) as dores e os labirintos da alma feminina.
Em um labirinto da ilha de Creta habitava o Minotauro – sim, talvez Lígia tenha tido exatamente essa intenção: interpretar o mito [na perspectiva do feminino] – “um ser híbrido”, já que a maior parte dos poemas deste livro constitui-se de personagens mulheres – as várias Minotauras de nós mesmas que se questionam sobre esse viver antagônico, por isso mesmo híbrido – entre o que de fato é e o que se mostra ser, na realidade do mundo patriarcal: “...tinha padres que pegavam as crianças/ e depois ensinavam o catecismo/ tinha um mundo que diziam como era/ e outro que acontecia de verdade por trás do altar/ por trás da estátua de Maria/ por trás das mulheres que sabiam/ e dos homens que faziam/...” (p. 16).
Como eu já disse antes, aqui é possível encontrar formões de todos os tipos e tamanhos – aqueles 'objetos sagrados' destinados à arte de entalhar palavras, na medida certa e na hora exata, aquelas lâminas que produzem cortes, que retiram entulhos, que trazem à superfície as verdades, as mentiras, detritos, farpas, disfarces, contrários e avessos: todas as metáforas que nos devoram a alma, em busca de transformá-las nos líquidos que nos constituem em corpo e alma. Até que nos descubramos em terra, sol e lua: “tenho mil bocas / mil poros / pra escorrer palavras” (p. 47). Até que nos tenhamos 'nossas', mulheres fortes para os 'absurdos' do mundo e das palavras do mundo, e possamos ouvir, pela boca de uma, de todas, o melhor poema da descoberta:
"Recolheu as palavras
num pedaço de pano
e eram todas pesadas.
Não deixavam de ser
palavras de amor
um amor às avessas.
Recolheu as palavras
para tempos melhores
mas eram todas duras
e não prenunciavam auroras.
Recolheu as palavras,
destruiu um mundo
pra criar outro mundo
de seres capazes
de aguentar as palavras
de mover as rochas
e descobrir a Terra."
(p. 36)
Já disse Lou Andreas-Salomé: “Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o passar do tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser entendido como uma força vital”. É o que a autora em Minotauras faz para a outra, para nós outras, através de sua palavra poética: Lígia simboliza a vida, a resistência feminina perante a vida, ainda que em ásperos caminhos, ou no choro das poetas, porque quem vive de palavras precisa não morrer - até que todas juntas saibamos responder: quantas mulheres habitam o coração de apenas uma?
(Nic Cardeal)
capa do livro Minotauras
Seis poemas de MINOTAURAS:
BOIA
Nomeávamos o mundo
e as palavras tinham peso certo:
silêncio, solidão, raiz, estrela,
água entre seixos,
água da chuva caindo no rosto,
pedra nua, ramos e brotos.
Aprendi contigo a consistência dos vocábulos
a densidade do abandono.
Senti no corpo a dureza da lonjura
me vi no deserto do amor
e descobri que viver entre palavras
era a única boia
num mar de incertezas.
[p. 32]
*
PLUTÔNICA
Sinto te dizer:
sou movida a fuligem.
Esgravato o inconsciente
e dali tiro a matéria
que me alimenta os dias.
Sou movida a paredes escuras.
Limpadora das chaminés
de dentro de mim,
extraio esses rios cinzentos
das minhas veias
e é assim que fertilizo palavras.
Nos detritos subterrâneos
e nas fontes mais turvas
eu descubro meu plasma.
[p. 33]
*
TEMPO DE FERRO
Estas tiras que enfaixam-me o corpo
prendem-me à terra mais do que nunca.
É preciso ficar como se estivesse no campo
a apascentar um rebanho de ovelhas perdidas.
É preciso empurrar o tempo com mãos de seda
e suavidade de ferro.
As vozes antigas
encerrei-as numa garrafa que jogo ao mar
e que não me preocupo onde irá aportar.
Desprendo-as de mim sem tristeza:
única maneira de habitar o hoje.
Quero brincar de novo entre as flores
mesmo com cascavéis passeando entre meus pés.
[p. 69]
*
DESCOBERTA
No centro do labirinto
ninguém quer chegar.
Se não tem como voltar
se perde entre as paredes traiçoeiras.
No centro do labirinto
o cheiro de sombras da noite
o gosto de terra, o gosto das trevas.
Ali o mais terrível irresistível que devora
fauces abertas
ali te espera - fêmea eterna -
pra completar a tua história.
Minotaura.
[p. 79]
*
TERRA
Sou de terra.
Sou de chão.
Ser de Capricórnio.
Já deixei véus e luvas delicadas.
Podes me chamar
pra enfiar as mãos no barro
e encontrar pedras estranhas.
Podes me chamar
pra descobrir as frutas
de caroço mais duro,
mas com mel por dentro.
Podes me pedir para assumir
tarefas ímpares:
escalar rochas
ou escutar os rios profundos de tua mente.
Cabra marinha é bicho
que também tem cauda de peixe(s).
[p. 80]
*
DEPOIS DO VENDAVAL
Você era do povo da chuva, lembra?
Gente arisca
gente cinzenta
gente que sai de manhã pelas ruas lavadas
com os olhos franjeados de água
gente que foge sempre
gente que nunca fica nos lugares
gente que nunca fica com ninguém.
E então um dia
você entrou numa mandala
você entrou num tempo redondo
você entrou num tempo mítico.
Tudo era agora.
O presente instantâneo:
presente dos deuses.
Também mudou o espaço:
havia um entrelugar.
A casa era um círculo.
A cama girava.
Estrelas caíam.
Você se ampliava.
Você se estendia.
Você amanhecia
a todo momento.
Se fosse comparar tudo isso
com fenômenos climáticos e metereológicos
se você fosse falar em catástrofes
se você fosse falar em transbordamentos da natureza
você pensaria numa tempestade
você pensaria num vulcão
você pensaria numa inundação
você pensaria numa explosão atômica
mas tudo dentro de uma esfera
tudo contido numa esfera suspensa
tudo contido numa esfera de luz.
Depois... você voltou a pensar em depois.
O mundo voltou a ter arestas.
Você voltou às três dimensões.
Você voltou ao estado
que permite levar adiante a vida.
Mas você voltou de olhos lavados
e não pertencia mais ao povo da chuva.
[pp. 84-85]
*
LIGIA SAVIO é natural de Porto Alegre/RS, onde reside. Graduada em Letras pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFSC, e doutora em Letras pela UFRGS. Foi professora de Língua Portuguesa, de Língua Francesa e Literatura, no magistério estadual do Rio Grande do Sul. Também atuou como professora adjunta de Teoria da Literatura e Literaturas Portuguesa e Brasileira, na Faculdade Porto-Alegrense de Ciências e Letras. Por dois anos participou do "Sarau das Seis" na Palavraria, onde também ministrou os cursos "O duplo na Literatura" e "Representações do Feminino na Literatura Grega", com as professoras Mara Jardim e Clotilde Favalli. Publicou em jornais e revistas literárias, integrando-se ao movimento alternativo ou independente das artes, na década de 70. É integrante do Movimento Mulherio das Letras Nacional e Mulherio das Letras/RS.
Participação em coletâneas e/ou antologias: Teia (contos e poesias, vários autores, Lume Editora/1975); Teia 2 (contos e poesias, vários autores, Lume Editora/1976); 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, ABR Editora/2018); Conexões Atlânticas (org. Adriana Mayrinck, In-Finita/2018); I Tomo das Bruxas - do Ventre à Vida (org. Marta Cortezão e Patrícia Cacau, @enluaradas); entre outras.
Livros publicados: No dorso da palavra (LiquidBook/2018); Fios de aço (Letramento/2019); Minotauras (Casa Verde/2022).
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