A ESCRITA MÚLTIPLA DE LUNNA GUEDES | PROJETO 8M
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão,
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Mergulhe e reflita na palavra sempre instigante - em crônicas, contos ou romances - de LUNNA GUEDES:
NÃO ESTAMOS TODOS NUS
Convidados para uma vernissage no coração da metrópole mais contraditória da América... se acotovelavam... equilibravam-se ao redor do homem-artista em performance circense, quase mambembe.
Muda e atenta... prestava atenção à cor da pele - branca -, à força dos músculos e nervos, aos movimentos certamente ensaiados... e tentava não me dispersar da proposta, tampouco me distrair com o som dos flashes, risos e comentários - alguns impróprios.
A mente humana é tão poluída de emoções e sensações... tão inquieta, que me fez sentir inveja de uma menina e seu silêncio natural... a viver do pouco que é muito - e é tudo.
A menina que eu fui - saltou de minhas entranhas -, com todos os desaforos no bolso da pele... e me levou para longe.
Voltei no tempo.
Visitei outras instalações-manifestações.
Fui à Grécia antiga...
- passei por Roma,
Berlim,
... e tantos outros países.
Avistei Marina Abramovic e sua força propulsora diante do pior que somos. Ela se ofereceu ao toque - e me assustou... não ela - os que a agrediram, quando a proposta era interagir.
O toque é natural - ou deveria ser... me lembro dos exercícios de olhos vendados para adivinhar o que chegava às mãos. As sensações se misturavam na pele-alma-memória. Um misto de desespero-estranheza-conforto. Como saber - apenas - através do sentir? Não é nada fácil, porque somos orientados apenas pelo olhar. Alcançamos o que a luz reflete... mas as texturas se oferecem a nós a cada passo. Aprender a desfrutar do tato é uma arte. O toque deveria ser próprio, característico humano... no entanto, a cada dia se torna mais estranho-bruto.
Voltei para mim - figura-mulher-adulta - e pensei: que pena ser apenas um homem nu. Deveriam ser muitos mais: negros, índios, orientais... para que pudéssemos compará-los... senti-los em nós, como parte da matéria da qual somos feitos. Um espelho a nos mostrar diferentes ângulos - a pele que nos é dada ao romper das barreiras de luz e trevas... quando passamos a habitar, sem consciência de vida-e-morte, esse corpo. Somos pedra-bruta... até ser bicho astuto.
A pele que habitamos é tão incrivelmente artística... a vida vai ali habitar com toda a sua força e fragilidade e se transmuta e transforma - se expande.
Somos o próprio Big Bang.
E como é lindo apreciar a pele que escondemos com vestimentas de momentos. É incrivelmente lindo apreciar as dobras, curvas, retas, filamentos por entre os tecidos... em toques, cortes e retoques.
E pensar que aquela menina enxerga tudo isso... livre de malícias, superficialidades. Que inveja senti de seus olhos pequenos.
Será que nos damos conta do que somos feitos?
Lygia Clark definiu divinamente: somos Bicho.
Que lindo isso. Somos humanos - inexatos - como disse Elisa, em sua poesia...
E, se ali estivessem um homem e uma mulher - de novo - a descobrir-se?
Figuras impermeáveis.
Figuras (?) humanas.
Figuras.
Formas.
Fôrmas.
Pessoas!
Mas... o que sentimos quando diante de nós mesmos?
Pavor, pelo visto... fechamos os olhos e nos recusamos a ver o que é pele-matéria-o-quase-nada. Por isso, queremos tanto mudar o que vemos... não sentir o que somos... não provar o que sentimos. Não aceitamos nossa própria condição. Mutilamos a pele... porque não nos agrada a máscara que enterramos na cara.
O que será que vemos que tanto medo nos causa? De que espécie de horror somos feitos?
Os demônios são todos horrendos... e a face do terror é a escuridão para onde nos recusamos a olhar. Inventamos credos para suportar o pior que somos... e nos libertar.
Por isso, Deus é perfeito-maravilhoso... e o diabo, o seu contrário. E - ironicamente - somos a imagem e a semelhança de uma figura Perfeita... reta, acima do bem e do mal. Talvez, por ser assim... ficamos à vontade para julgar e condenar os pecadores - impuros-imorais-indecentes - porque o Bicho precisa ser domesticado e entender que não se pode fugir do que é Divino e Sagrado.
Que fique bem claro:
... existe Perigo na Nudez do homem!
Despir-se de si é encarar a si mesmo, sabendo-se... e isso não deve - não pode - ser permitido... porque é inaceitável compreender que somos Bicho... quase nada.
Curioso reparar que uma das mais graves doenças do mundo contemporâneo se descobre justamente através do Tato... e quantas doenças mais passam por nós, enquanto nos ocupamos de educar e repreender o outro?
Estamos doentes... e um único toque poderia nos salvar a pele, a alma e nos devolver a humanidade.
Mas não estamos nus.
(* crônica publicada na Revista Plural MMXVII - Wild Nights, org. Lunna Guedes, Scenarium Livros Artesanais/2017, pp. 14-18).
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(1)
A cidade é um chão de palavras pisadas
NA PRIMEIRA PÁGINA ela anotou o ANO em letras grandes, como tinha se acostumado a fazer ao longo dos últimos anos. Era o seu oitavo caderno; sempre de capa preta, com folhas brancas e linhas retas...
Ela ainda se lembrava do primeiro: um velho caderno de anotações, com algumas folhas arrancadas, outras dobradas... a maioria, no entanto, estava preenchida com as medidas de cada mulher da cidade de Teodoro.
Alexandra gostava de pensar que tinha sido presente de sua mãe, mas era apenas um refugo. Meia dúzia de páginas vazias, que poderiam ser facilmente descartadas, pois não fariam falta alguma à Maria costureira.
A menina Alexandra não se coube em si depois disso... a mãe não tinha por hábito lhe dar presentes. O dinheiro era sempre pouco, sendo necessário, às vezes, fazer certos malabarismos, como deixar de pagar uma conta, para poder comprar a mistura.
Com o velho caderno em mãos, a menina do interior - a bordo de seus nove anos - começou o que seria o ritual de uma vida inteira: sentou-se em sua cama, com as costas contra a parede, os pés enfiados em um par de meias brancas e os dedos em movimentos ali dentro...
Respirou fundo, como se fosse possível escolher a melhor porção de ar e, por alguns segundos, permaneceu imóvel, com os olhos bem fechados.
Sentiu o silêncio imperfeito tomar posse de seu velho quarto escuro e a pele inundar-se de uma sentimentalidade arredia-afoita-insana...
E, no lugar das lágrimas, aconteceram as primeiras palavras... escritas como se fossem um diálogo solitário. Uma confissão, na primeira pessoa do singular.
COM O PASSAR DO TEMPO... ela aprendeu a revisitar seus cenários mais comuns dentro do silêncio - antes de iniciar sua escrita -, tornando-os apenas seus, numa espécie de apropriação indevida.
Era tão fácil para ela velar a cidade com um suspiro próprio... conhecia tão bem aquele lugar, que mesmo com os olhos e a janela fechados, seguia revisitando-os, como se os pés pisassem suas ruas em pares.
Ela tinha suas desordens pessoais; uma espécie de mapa particular, que começava sempre na estrada de terra entre plantações que levava à represa.
Já tinha percorrido aquele pedaço de chão, com suas imensas árvores se encontrando no alto - como num abraço -, centenas de vezes!
... era sua rota de fuga daquele lugar!
SEUS PLANOS TODOS PASSAVAM POR ALI...
Depois... invadia o prédio da escola... porque sua vida aconteceu entre os corredores-salas-cadeiras-e-lousas daquele lugar, que se tornava silencioso quando o sinal gritava mais alto que os alunos que, em fila dupla, marchavam para as seis salas de aulas do prédio de dois andares...
Seu lugar favorito era a biblioteca, com suas mesas redondas sempre vazias e o cheiro de que tanto gostava, de madeira-papel-e-tinta devidamente misturados.
Era seu segundo refúgio na cidade.
Gostava de se sentar entre as prateleiras e devorar seus livros favoritos, sem ser incomodada por ninguém... "orgulho e preconceito ", de Jane Austen, "noite e dia", de Virginia Woolf e "malditos paulistas", de Marcos Rey...
E, por fim, a memória lhe acenava como os contornos da represa - uma espécie de casa-refúgio -, onde passava suas horas inteiras... as mais felizes.
Alexandra sabia os cenários mínimos de Teodoro de cor: o banco da praça em frente à Igreja, o coreto... e a velha avenida - uma espécie de linha reta - com suas casas em pares, devidamente enfileiradas, um velho armazém de grãos, uma beneficiaria e a padaria. Era aquele traço mal feito que sempre a conduzia de volta para casa.
Perder-se em Teodoro era totalmente impossível e esse era seu maior lamento. Todas as direções perseguidas ao longo de uma vida inteira lhe devolviam sempre ao mesmo lugar...
(...)
(* excerto do 1° capítulo do romance Lua de Papel - livro um, pp. 9-11)
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
LUNNA GUEDES é natural de Gênova, Itália, e reside em São Paulo/SP desde 2002. Assim se apresenta a múltipla Lunna: "nasci em Gênova (cidade italiana) no ano de 1981, o mês era novembro e vim ao mundo sob a regência de sagitário, numa casa com três números, cuja soma sempre me intrigou. Aprendi a ler na mesa da cozinha e a escrever também. Fui para a escola aos seis anos e não me saí muito bem, mas conclui todos os estudos... até o Doutorado em Psicanálise. Amante da escrita, mudei de vida-profissão-país-cidade. Moro em São Paulo desde 2002, mas não tenho endereço fixo por muito tempo. Sou uma navegadora, a flecha em constante voo... e gosto de experienciar os cenários que a cidade me oferece. Desde que aqui cheguei, me aventurei pelo universo da escrita... onde me encontrei: comigo e com os meus pares. Escrevi para o teatro, televisão e para as páginas dos livros que eu mesma inventei de costurar por ser uma apaixonada por estilo underground de publicações... Descobri a costura oriental e me aventurei por esse processo... já costurei (um a um) centenas de exemplares meus e de autores que resolveram estar a bordo desse Scenarium. Nos últimos tempos, fui convencida a dividir minhas experiências com outros e, desde então ministro cursos e workshops para novos escritores."
Formação acadêmica: Doutorado em Psicologia Forense pela Universidade de Coimbra, Portugal.
É proprietária da 'Editora Scenarium Livros Artesanais', tendo publicado livros de vários autores, como, por exemplo: 'Lado de dentro'; 'Corredores - codinome: loucura'; 'Desvios para atravessar quintais'; e 'Portas abertas - codinome: lucidez' (de Mariana Gouveia); 'Realidade'; e 'Rua 2' (de Obdulio Nuñes Ortega); 'Amor Expresso'; 'O sol da tarde'; e 'A construção da primavera' (de Adriana Aneli); 'Dentro de um'; e 'Diário das coisas que não aconteceram' (de Aden Leonardo); 'Mia - a holandesa dos pés descalços (de Anselmo Vasconcellos); 'Gota a Gota' (de Chris Herrmann); 'Sapatos Vermelhos' (de Thais Barbeiro); 'Abecedário'; e 'Diário do fim do mundo' (de Caetano Lagrasta); 'Detalhes intimistas' (de Tatiana Kielbermann); ' Receituário de uma expectadora'; e 'Equação infinda' (de Roseli Pedroso); 'Labaredas' (de Kátia Castañeda), entre muitos outros. Também editou e publicou diversas antologias, tais como: 'Marielle's (org. Andri Carvão, 2018); 'Feliz Ano Velho - crônicas' (org. Lunna Guedes, 2018); Projeto Coletivo 'Sete Luas' (org. Lunna Guedes, 2018). Também é editora da 'Revista Literária Artesanal Plural'.
Livros escritos por Lunna Guedes: Septum (2013); Trilogia Lua de Papel (2014, 2015 e 2016); Vermelho por dentro (2017); Meus naufrágios (2018); Alice - uma voz nas pedras (2019); e Aos sábados (2020), entre outros.
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