Para não dizer que não falei dos cravos 06 |Uma Crônica e um Conto de MÜLLER BARONE
Para não dizer que não falei dos cravos (06)
Uma Crônica e um Conto de
MÜLLER BARONE
HOMEM NÃO CHORA
"Corram livres as lágrimas que choro,
estas lágrimas, sim, que não desonram."
(I-Juca Pirama - Gonçalves Dias)
Sem qualquer inspiração, lancei o tema, quase como um desafio a mim mesmo, a este marasmo que nasceu de olhar em volta, de esperar em vão do céu, do inferno e dos homens.
Tenho andado retraído, desconfiado, com uma estranha sensação de desamparo, seco, não reajo ao amor, nem ao ódio e nem mesmo à indiferença. Olho em volta, vejo, escuto, sinceramente presto atenção, mas não relevo. Falta-me coração, creio, para ir adiante da mera função prática dos sentidos, sobra-me nada para aceitar, sobra esta desilusão que estanca as lágrimas. Sinto-ne quase um Teseu sem Ariadne, sem linha, quase no centro do labirinto, já percebendo o cheiro assustador do Minotauro.
Sempre estive esta estranha mania de esperar que as pessoas sejam mais do que acreditam ser. Antes julgava que era fé no homem, hoje estou quase achando que é insanidade ou cupidez, como diria meu amigo Cláudio, embora ele jamais fosse capaz de usar o termo por julgar afetado demais.
Minha terapeuta ficou quase dois anos tentando me ensinar a não exigir que as pessoas andem na mesma velocidade que eu. Depois que aprendi, o choro se foi, porque fiquei desapontado ao perceber que elas nem mesmo são capazes de pisar no próprio acelerador.
Vejo-me, agora, no Arcano XVIII, na Lua, no meio do caminho entre o lobo e o cão, ambos uivando, ambos famintos. Por isso não choro, apenas percebo o que vai à minha frente e o que se passa em volta. Sinto-me só e a hora é asssim, a hora interessante de encarar a si mesmo e de contar acertos e erros.
"Diga-me algo, qualquer coisa diferente do que a maioria, na linha óbvia de um raciocínio que mata crianças de fome ou de explosão, diria. Diga sorrindo que há esperança, ainda que faltem lágrimas de alegria ou de dor, porque se a esperança se for não será preciso chorar." Um apelo inútil, claro, porque não me dirão algo assim, se disserem, como estou, descrente a ponto de mal dar enredo a uma crônica, talvez não ouça.
Neste apartamento em que o barulho mais alto é o da fonte escorrendo aos pés do Buda que pende naquele nicho, tranco a porta e sinto o vazio. Uma espantosa metáfora encarnada de como meu coração, agora, se sente no corpo, uma bomba que se presta apenas para fazer o líquido circular para cima e para baixo.
Não posso chorar, sou homem, homem não chora. "Sou bravo, sou forte." Bem que eu gostaria. Uma lágrima, quem sabe, regasse o solo que sob meus pés parece árido e brotasse em mim, mais uma vez, o grito de rebeldia que sempre me moveu, a força para dizer a todos o quanto podem ir além do que pensam ou que me sinto traído, certamente por mim mesmo, porque esperei demais, porque, confesso, amei demais. Mas mesmo aquela que não desonra parece estar distante.
Guerreiro Tupi, volto à selva emaranhada do meu espanto, ao encontro do velho cego, fraco e já sem glória que parece ser, hoje, o retrato daqueles que, um dia, achei que seriam também guerreiros.
Amores se foram, amigos também, a Lígia, por fim. Alguém me disse que é duro viver ao meu lado, que exijo demais. Discordei, disse apenas que estimulo aquele passo além da linha, que nos faz melhores, se não por ganharmos, por termos tentado, como sempre tentei e, às vezes, ganhei.
Mas me resta o horizonte que sempre miro da sacada, talvez ele me mostre que posso voltar e ser bravo outra vez, e chorar no meio deste desenredo que fez nascer esta crônica, quem sabe a mais meleca e sem sentido que escrevi até hoje, imprudente como parecem as apostas que fiz.
(crônica publicada no livro Desajustado Emocional)
capa do livro Desajustado Emocional
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A NOIVA
Um dia, fomos ao encontro do Velho e percebemos, assim que avistamos o terreno baldio, que ele não estava, porque não havia fogueira acesa.
Receosos, paramos como se tivéssemos levado um susto coletivo, ficamos paralisados, sem dizer nada, sem ao menos nos olharmos. Pareciam sete estátuas de adolescentes no meio da rua. Acho que o único barulho que ouvíamos era do turbilhão de pensamentos de cada um.
Depois de uma breve eternidade, nos movemos e caminhamos em direção ao local de encontro, ao mesmo tempo, com a mesma determinação. Nenhum de nós pensou em voltar.
Ao chegarmos, acendemos uma fogueira, sentamos nos lugares de sempre e ficamos lá, em silêncio, voltados para o lugar em que O Velho sempre ficava, com a mesma atenção, como se ele estivesse ali contando uma de suas histórias. Voltamos para casa sem dizer uma palavra e, durante a semana, nada comentamos sobre a sua ausência. Foi como se ele não tivesse faltado. Falamos sobre ele e suas histórias, mas não sobre aquela ausência.
E ele também não apareceu nas duas sextas seguintes. E mantivemos o ritual. Não aceitávamos que ele tivesse partido, não sem avisar. Fingíamos até para nossos corações e mentes que ele tinha vindo.
Na quarta sexta-feira, fomos ao seu encontro quase certos de que ele não estaria lá. Ao avistarmos a fogueira e a silhueta do Velho sentado a nossa espera, todos sorrimos e fomos contaminados de alegria, felizes com a sua volta e percebemos como era grande em nós o vazio da sua ausência.
Chegamos, dissemos olá, sentamos e não fizemos uma única pergunta, pois seria admitir que ele não esteve lá e para nós a ausência nunca existiu, seria desfazer o ritual das três noites em que vivemos o seu espírito entre nós. Percebemos de vez, naquela noite, que ele não era uma presença física e estava muito além deste plano triste em que vivemos, ele era livre, livre de tudo, nem a existência o aprisionava. Naquela noite, encantado de alegria, acho que aprendi o que é ser pleno. Era isto que ele nos passava, plenitude.
O Velho nos olhou, sorriu com os olhos que eram uma ponte entre nós e outros mundos, e a luz daquele olhar forte e amoroso nos iluminou mais que a luz da fogueira, da lua, que era cheia, e das estrelas. Amávamos O Velho e ele nos amava e cada encontro, cada gesto e especialmente cada uma daquelas três ausências reforçavam aquele amor diferente, quase irreal, sobrenatural, improvável e pleno.
Depois de dar um gole no seu refrigerante, começou a contar mais uma história.
A história
Esta é uma daquelas histórias estranhas e assustadoras. Tem gente que diz que é lenda, folclore, coisa pra se passar o tempo na frente d’uma fogueira. Mas também tem gente que diz que é verdade e diz que é só ver o que acontece no lugar pra saber que não é lenda.
Numa cidade há um lugar, que foi um sítio, um bom sítio, dois hectares. Por perto tudo se valorizou, mas ali ninguém construiu nada desde aquele dia. Dos lugares mais altos era possível ver aquela terra toda seca, triste, abandonada como uma morta nos fundos de uma igreja, primeira construção mais próxima dali. Aliás, só os padres é que visitavam a casa que o tempo acabou consumindo.
A única filha dos donos do lugar, um casal que a vila inteira amava, estava pronta para casar naquela igreja próxima do lugar. Contam que ela e o noivo eram realmente apaixonados um pelo outro e sabia-se que seriam felizes, eram, segundo os mais poéticos, uma verdade do amor, não havia alguém conhecido ou na história do mundo capaz de amar como eles se amavam.
Dizem que, sem razão alguma, a parteira que trouxe os dois para o mundo, assim que viu o noivo sentado na charrete, pronto para ir à igreja, pulou da rua sobre ele e apunhalou seu coração sete vezes com um crucifixo de parede que acabou se quebrando. Com o pedaço que ficou em sua mão, ela se matou cortando a garganta.
Dizem que o noivo morreu só espantado. Não havia dor ou tristeza em seus olhos, só espanto. Contam, ainda, que seu coração era tão preso à amada que não sangrou, dizem que um halo de luz brotou dele como um último suspiro e voou em direção à casa da amada.
No mesmo instante, a noiva, que sorria no meio da sala com o buquê nas mãos, paralisou, deu um grito de desespero, deixou cair as flores que imediatamente morreram, e nunca mais se mexeu ou falou com ninguém.
Todas as plantas e animais do lugar foram morrendo, depois daquele grito. Não brotou mais flor alguma também no chão ao redor do lugar em que o noivo morreu.
Durante anos, quem passasse por ali, próximo da hora fatal, podia ouvir o grito da noiva que ecoou naquele dia. Há quem jure ter visto, nas madrugadas dos dias dos namorados, uma noiva vagando com ar de dor e desencanto por aquele descampado.
Seus pais morreram de tristeza, uma semana depois da morte dela, aos 49 anos. Era a missa de sétimo dia, realizada no horário fatal. Só o padre e os pais estavam lá e ouviram o grito e morreram naquele mesmo instante, com as cabeças baixas, as mãos unidas para a prece e os olhos cheios de lágrimas que pingaram no chão e nunca mais secaram, voltam assim que são varridas ou lavadas.
Todas as tentativas de construir algo ali falharam. Ousada e desrespeitosa com a história, uma construtora levantou o esqueleto de um prédio. Quando o cobriram com redes brancas de proteção, operários começaram a ouvir gritos e ver sombras andando por lá e deixaram a obra depois que dois deles morreram. Todos acham que o prédio tomou a forma da noiva abandonada, incompleta, vazia, sem vida, sem beleza, morta e só por isso chegou até ali e ainda está lá, uma lembrança da dor, um aviso da vida, da morte, do amor que vive, que mata, que morre e do inexplicável.
Há boatos que afirmam que, muito tempo depois, assim que a alma dele se livrou do espanto e a dela da tristeza, eles se reencontraram em outra esfera e viveram felizes. Mas o local ficou marcado para sempre pela dor de todos aqueles que sofreram com os fatos, e muito pela insanidade da parteira cuja alma ainda vaga por lá cheia de remorsos.
Naquela noite percebi algo diferente no Velho, ele falava melhor, tinha mais leveza nos gestos e notei que, ao lado do lugar em que sempre sentava, havia um cravo vermelho que, não sei por que, achei que era um daqueles que os padrinhos colocam na lapela dos ternos em casamentos.
Voltei para casa pensando na ausência e na volta do Velho, assim sem dado algum, só a ausência e a volta, só o vazio e o preenchimento. Pensei na história. Teríamos algo a aprender com ela? Sempre havia, mas o que era naquela vez? Então, pela primeira vez, só guardei a história, como ausência e presença, nada além da história.
Muito tempo depois, percebi suas palavras. E se eu espero o amanhã como esperei o Velho durante aqueles dias sem ele, o amanhã virá? E se ele não tivesse voltado, nós teríamos morrido como a noiva? O que em mim é amor, o que é espera? Quem amava mais, o coração que nem sangrou ou o grito que matou tudo a sua volta?
O Velho tinha voltado em grande estilo.
(conto publicado no livro Histórias do Velho)
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MÜLLER BARONE (Silviani Iwerson Barone) é advogado, diretor de cinema, roteirista e escritor. Estudou Cinema Digital na instituição de ensino Centro Europeu. É sócio-gerente da Vento Negro Produções (produção de Cinema, Teatro e Artes). No cinema, teve seus filmes indicados a prêmios em festivais de todos os continentes. Ganhou o I e o II Concursos de Poesias da Faculdade de Direito de Curitiba em 1984 e em 1985.
Livros publicados: Desajustado Emocional - Crônicas do Palanque (crônicas, Curitiba/PR: Estúdio Protexto, 2008); Histórias do Velho (contos, Guaratinguetá/SP: Penalux, 2020).
Filmes/documentários: Alegria (roteiro e direção de Müller Barone, vencedor da categoria Melhor curta-metragem no "Festival Internacional Cine al Mar de Santa Marta", Colômbia, 2014); Hoje Jesus não vem (curta-metragem com produção 100% independente, escrito e dirigido por Müller Barone, selecionado no "Artículo 31 Festival de Cinema Documental, Videoperiodismo y Derechos Humanos", de Madri, Espanha, 2017); Choque (curta-metragem escrito e dirigido por Müller Barone); Dor, Fé e Andorinhas (longa-metragem em produção).
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